Opinião
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9 de setembro de 2020
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11:00

Santiago, setembro de 1973: A desmobilização. Discos e livros queimados. Sem saída (por Mário Maestri)

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Sul 21
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Estádio Nacional foi usado por militares como prisão de opositores, após o golpe (Reprodução/Youtube)

Mário Maestri (*)

Minha Participação na Resistência Armada ao Golpe de 11 de Setembro (V)

A derrota se instalara. Ouviam-se apenas tiros isolados. A ordem peremptória era de desmobilizarmos. O que já ocorria nos fatos. De nosso comandante Pato Malo não tivemos notícias precisas. Recebi ontem, da Flaca e do Flaco Magasich, a informação de que se chamava Mario Maureira Vasquez, aprisionado, preso, torturado e desaparecido em agosto de 1976. Ou seja, seguiu militando e combatendo ainda por três anos. Ao ser detido, portava uma arma sem munição. É fabular muito poder ter sido a minha Beretta 3.65? Tinha, então, 23 anos. Dezenove, em setembro de 1973. Pato Malo era daqueles que não articulavam as palavras rendição e desistência. Escreveu com fogo seu nome na história da resistência chilena.

Leia também:
Minha participação na resistência armada ao golpe de 11 de setembro (I)
Santiago, 11-12 de setembro: o armamento da revolução, a morte de Allende (II)
Santiago, 12-13 de setembro: O refúgio evangélico. O prato de canja (III)
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A informação era que os militantes miristas ficassem no país, mesmo os mais conhecidos. Deviam se preparar para a luta armada dura, irregular e prolongada, que se transformou em um massacre de militantes que tentavam ofensiva irreal, sob o refluxo popular total após a terrível derrota. Tornaram-se peixes grandes e destemidos nadando fora da água. A exceção eram os militantes estrangeiros, como os brasileiros, que deviam se arranjar na procura de um consulado ou embaixada. Mas como e onde encontrar refúgio! Não tinha a mais puta idéia.

Pela manhã, bem cedo, Pablo me acompanhou até quase a entrada da vila Torres de Macul, já que morava, acho, nas proximidades. Para disfarçar, portávamos a tradicional sacolas para comprar pão, de fio de náilon, com argolas coloridas de plástico. Cruzamos sem sequer trocar olhares com companheiros conhecidos do MIR, do PS, do PC, do MAPU, cada um com sua sacolinha na mão, tentando também passar despercebidos, no meio dos moradores assustada que ia realmente à procura do pão.

Mario Maureira Vasquez, o “Pato Malo” (Reprodução)

Era uma manhã triste e fria. Para fazer um pouco de literatura, diria que levava a morte no coração. A grande possibilidade era que tudo terminasse mal, para o Chile, a médio e longo prazo, e, no imediato, para mim. Mas tudo que é ruim pode piorar. Ao passarmos por dois pacos, a fifty-fifty que levava na cintura escorregou por dentro das calças, ao longo da perna direita. Quando parei imobilizado, Pablo deve ter visto ela quase à mostra, mal coberta pela bainha da calça. Se pôs diante de mim e eu, fazendo que atava o cadarço, coloquei-a no bolso largo da japona que vestia. O espalhafatoso poncho não sei onde deixara.

Nos despedimos ao pé da vila Torres Macul. Passei-lhe a granada artesanal, a Beretta 6.35, cinquenta dos cem dólares que portava. Naquele momento, a cotação da moeda no mercado negro despencara. Pablo quis saber o que faria. Perguntei-lhe onde ficavam as embaixadas. Também não tinha a menor idéia. E o problema era como chegar até elas! Disse que me arranjaria. Eu me encaminhei para o meu lado, ele para o dele, sem olharmos para trás.

Desde a manhã do dia 11, a Junta Militar abrira caça aos estrangeiro, sinalizando que o golpe era contra os não-chilenos marxistas, sobretudo os cubanos, que descaminhavam Chile. Para comprometer os soldados na repressão, liberaram o roubo, o estupro, distribuíram anfetaminas. Estudantes, turistas, visitantes estrangeiros conheceram vexames inimagináveis e mesmo a morte. Naqueles dias, todos os gatos passavam por lebres.

Já no dia 11, as embaixadas e consulados, sob a pressão internacional, abriram-se para receber seus nacionais e refugiados de todas as as origens, muitos com suas famílias. Mesmo as representações diplomáticas de ditaduras bestiais deixaram os portões semi-abertos. Muito logo, as próprias residências dos diplomatas estavam entupidas de refugiados.   Apenas duas nações mantiveram cerradas as portas de suas representações em Santiago.

A colônia brasileira, pouco articulada com a realidade chilena, reagiu em forma diversa ao golpe. O querido João Heredia, esperou em casa, como muitos outros, firme, o desdobramento dos fatos. Terminou preso ao sair à rua para comprar cigarros. No Estádio Nacional, em uma salinha, um enorme sargento lhe mandou tirar as botas e passou a atirá-las contra as paredes e a chutá-las, enraivecido. Heredia teria pensado assustado o que o homenzarão faria com ele, se tratava tão mal seus sapatos! Um pouco cansado, o sargento mandou-lhe calçar-se e o despediu. No mesmo dia, um companheiro chileno comentou-lhe a sorte de ter sido interrogado por seu irmão, sargento não me recordo de que arma, militante socialista raiz.

Houve brasileiros solidários com o país que os recebera. O saudoso Paulo Roberto Telles Frank, ex-sub-oficial, participara em ações armadas no Sul, antes de ser preso e terrivelmente torturado. Tiroteou longamente com companheiros socialistas em prédio cercado por fascistas, na região onde trabalhava como eletricista. Como Pato Malo, era um duro. Nascera em Pelotas, em 1942. No outro extremo houve aqueles, como um refugiado do Sul, que se apresentou, com diversas malas, já na manhã do dia 11, diante de casa consular, onde creio que já o esperavam.

Entrei na vila Torres de Macul. As casas estavam de portas fechadas, com apenas uma e outra mulher circulando nas ruas. Já no impasse El Remanso, uma chilena, que conhecia pouco, me chamou. Pensei que era para dar notícias. Perguntou-me se podia deixar a minha casa para sua cunhada. Segui adiante sem responder. Durante a crise habitacional, sob a forte inflação, era um problema encontrar casa para alugar. A vila Torres de Macul, recém concluída, sem árvores, pertencia à Caixa dos Trabalhadores do Salitre, que cedera moradas para muitos refugiados.

Casa onde Mário Maestri morou no Chile (à direita), cinquenta anos depois. (Reprodução)

Minha casa era a última da calçada direita. A seguir, havia duas outras, de frente para a boca do impasse. A porta da casa estava arrombada. Não longe da porta, haviam queimado meus discos e livros. Choro até hoje a edição da História da Revolução Russa, publicada pelo Quimantú, editorial fundado pela Unidade Popular. A publicação causara pequena crise na UP, com o Partido Comunista se opondo e os socialistas apoiando a iniciativa. Até o embaixador da URSS interpelou Salvador Allende, que explicou enfadado ser presidente e não coordenador editorial, ou coisa semelhante. Mandara encadernar os livros, com artesão magistral, já que as folhas se despegavam com facilidade.

No fundo do impasse, tinha uma vizinha com quem mantínhamos ótimas relações. Ela saiu para me informar que minha casa fora allenada duas vezes. Mostrou preocupação com minha sorte. Ela era muito próxima de um dirigente máximo de partido comunista maoísta que combatia a Unidade Popular, sem que ninguém notasse, de tão minúsculo. Eu vira o dirigente de poucos dirigidos visitar nossa amiga duas ou três vezes. Sobre ele, há uma história, que talvez me foi contada por ela, apressada, ou soube mais tarde. Mas vale o registro.

O dirigente maoísta telefonara pedindo refúgio na embaixada da China. Disseram que não estavam dando. Ele enfatizou que era amigo da China. Mantiveram a negativa. Desesperado, dissera ser “muy amigo” da China, para não falar no telefone que era dirigente com contato com a alta direção chinesa. Disseram-lhe que, se fosse, realmente, “muy amigo” da China, ficasse no país. Sem saída, o marxista-leninista enfurnou-se em outra embaixada. Na América Latina, o governo da UP fora o primeiro a estabelecer relações com aquela República Popular, que, em resposta, para ocupar o vácuo deixado pela URSS, manteve suas portas fechadas e as relações com a ditadura pinochetista. Tudo no reino do “Grande Timoneiro”

As publicações de minhas recordações dos sucessos de setembro de 1973 estão se fundindo com as de companheiros e companheiras da época, que me enriquecem, precisam e antecipam fatos que vivi. Destaca-se certamente o depoimento enviado pela querida companheira Elisa, chilena radicada há décadas em Porto Alegre, de ex-colega do secundário, em Santiago, hoje radicada no Canadá, que, vivia na casa 5042, anterior à minha!

No dia 11, angustiada com o golpe – sua mãe era comunista – enquanto cozinhava, ouviu golpes duros das culatras dos fuzis de soldados da Força Aérea, na porta de sua casa, que vasculharam rapidamente, perguntando sobre as atividades dos “brasileiros” da casa ao lado. A seguir, saltaram do pátio de sua casa para o da nossa, que foi invadida. Foi nesse então que teriam queimado livros e discos. A tropa teria voltado no dia seguinte, realizando nova procura, sempre perguntando sobre os “brasileiros” vizinhos.

Os dois allenamientos sempre me pareceram estranhos. As datas precoces das visitas e o interesse com minhas atividades eram desproporcionais, considerando tratar-se de um jovem militante estrangeiro do MIR, sem tradição e importância. A insistência em me encontrar, reafirmada mais tarde por brasileiros presos, se explicaria apenas se conhecessem a compra das minhas poderosas armas. Se houve soplón, é maior a possibilidade que fosse tupiniquim. Entre os milhares de brasileiros refugiados, havia informantes, o que angustiava sobretudo os grupos armados brasileiras com militantes no Chile.

O que fazer? Não podia ficar em minha casa, já visitada duas vezes, com fogueira de livros e discos diante da porta. Não conhecia ninguém em Santiago que não estivesse se escondendo. Não sabia como chegar a uma embaixada ou consulado, ainda mais com os controles de identidade em cada esquina. Falava espanhol corrente, com sotaque que revelava imediatamente minha origem. Encontrava-me em mato desconhecido, sem bússola ou cachorro.

Fui até o outro lado da avenida Macul, em uma botilleria popular (venda de vinhos). O proprietário, assustado, perguntou-me pelos brasileiros, fregueses como eu habituais da cerveja e do vinho baratos. Não sei onde arranjei o número da Embaixada do Brasil. Pedi refugio, como cidadão brasileiro. Perguntaram-me se tinha passaporte. Disse que não. Responderam-me que precisava apenas a cédula de identidade para retornar ao Brasil. Disse que, se me encontrassem, temia pela minha vida. – “Devia ter pensado antes” – foi a resposta que tive.

As representações diplomáticas brasileiras funcionaram durante todo o golpe de 1964 como extensão da polícia política, o que era contra as próprias leis nacionais. Brasileiros morreram no Chile por não terem onde se refugiar. Os governos que se seguiram a 1985, fecharam os olhos, garantindo total impunidade aos diplomatas do Itamaraty, que progrediram, se aposentaram, morreram respeitados e com seus magníficos salários.

Voltei para casa. Estava congelado. Não via saída. Se me encontrassem, rezava para que me levassem preso. Tendo militado no Brasil em fins dos anos 1960, mais do que a morte, temia a tortura. Nem tento descrever como me sentia. Não via luz no fim do túnel escuro como breu. Mas havia, sim. Logo vi os faróis piscando de um magnífico Mercedes Bens, que se aproximava de mim, após entrar no impasse.

O que era, ou quem era, fica para o próximo capítulo.

(*) Mário Maestri, 72, rio-grandense, é historiador. Em 1971-73, estudou, viveu e militou, como refugiado político do Brasil, em Santiago do Chile. E-mail: [email protected]

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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