Opinião
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7 de setembro de 2020
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10:52

Santiago, 12-13 de setembro: O refúgio evangélico. O prato de canja (por Mário Maestri)

Por
Sul 21
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Moradias populares urbanizadas, em Santiago (Reprodução/Youtube)

Mário Maestri (*)

Minha Participação na Resistência Armada ao Golpe de 11 de Setembro (III)

Pato Malo explicou o plano: atacaríamos de todos os lados e nos apoderaríamos das armas em combate, como na bela canção “Oltre il Ponte”, de Italo Calvino, sobre jovens guerrilheiros comunistas italianos, entre os quais ele se encontrava, que descem a montanha com poucas armas, mas armas que funcionavam, para atacar destacamento alemão. Como as nossas armas eram pra lá de poucas, e de funcionamento apenas provável, Pato Malo escolheu cinco ou seis do seu grupo original, armados com os revólveres e espingardas de que dispúnhamos. E logicamente nossas granadas. Vejo-o ainda saindo pela porta. Talvez me engane, mas acho que foi a última vez que vi o companheiro e, com ele, meu fuzil semi-automático 22!

Nosso sub-grupo de quatro companheiros procurou um primeiro abrigo em uma moradia da población. Uma casa simples, popular, ao igual que todas as outras. Não recordo bem quem nos acolheu, apenas que permanecemos ali por pouco tempo. O toque de queda fora estabelecido. Gritos eram ouvidos durante a noite. Os disparos, talvez apenas menos fortes, seguiam intermitentes. As notícias poucas que recebíamos eram desencontradas. Fala-se de resistência no Sul, às vezes no Norte.

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Esperávamos ansiosos notícias do grupo de ataque comandado por Pato Malo e do resultado da ação planejada. A expectativa era que tivesse sido um sucesso e os companheiros voltassem portando alguns fuzis dos carabineiros. Com eles, reunidos os três-sub-grupos, passaríamos talvez a ações mais ambiciosas. Realista, eu esperava com o coração apertado companheiros feridos e talvez mortos no ataque quase suicida. Não acreditava ser possível pescar sem rede.

Pouco antes de abandonarmos a casa-abrigo, um companheiro chegou com a informação. Na boca da noite, o grupo tentara se aproximar do Retén. Na esquina de uma avenida, depararam-se com uma patrulha do exército, não muito longe. Pato Malo teria dado ordem de fogo ou o grupo disparara com o que tinha sem esperar, para dar imediatamente meia-volta e correr por onde tinham vindo. Por sua vez, o sargento e os soldados teriam corrido em direção oposta, talvez sem sequer fazer uso de suas poderosas armas.

Bandeira do Movimiento de Izquierda Revolucionária (MIR). (Reprodução)

Fiquei contente que ninguém tivesse sido ferido e que meu fuzilzinho tivesse tido seu batismo de fogo! Muito barulho não teria feito, o coitado. Até a desmobilização do nosso grupo, uns três ou quatro dias mais tarde, aquele teria sido o único confronto. A partir dali, nosso grupo -e certamente os dois outros-, dedicaram-se a escapar do rastreamento que destacamento da Aeronáutica fazia na población, informado sobre nossa presença, a espera de podermos dar um bote, que já sabíamos ser impossível.

Recordo-me mal dos companheiros do meu grupo, à exceção de um jovem, em torno dos dezoito anos, operário da construção, morador da población na qual nos movíamos. Nos fatos era ele que comandava o grupo, estabelecendo contatos com amigos de sua idade, apontando as casas em que podíamos chegar e locais em que podíamos nos esconder. Porém, tudo me comunicava e para tudo me consultava, disciplinado. Não me recordo seu nome político. Podia ser Pablo ou qualquer outro.

Levávamos conosco minha pistola, um pequeno e velho revólver sem munição, se não me falha a memória, e umas seis indefectíveis granadas fifty-fifty.

Pela tardezinha, Pablo me apresentou dois jovens, em torno dos dezesseis anos, mal vestidos, mal calçados, magros mas elétricos, falando um castellano pra lá de popular. Disseram-me que vinham informar aos companheiros miristas que um pequeno grupo de jovens cogoteros “momios” estavam informando os pacos sobre os locais em que nos encontrávamos.

Cogotero, em chileno popular, tinha o sentido de assaltante de rua. A explicação folclórica que me deram, logo que cheguei ao Chile, em fins de 1970, era que os cogoteros se escondiam entre as ramagens das árvores para te pegar pelo “cogote”, ou seja, pela nuca, para te assaltarem. Em Santiago não há muitas árvores. Mas confesso que, nos primeiros tempos, olhava para elas, com dificuldade de saber como alguém podia se esconder entre seus ramos!

Os dois rapazes estavam exultantes por estarem em contato com um grupo do MIR e, ainda mais, conversando com um guerrillero estrangeiro, falando em espanhol com um sotaque miserável. Perguntei se eles não podiam dar uma sacudida nos soplones (informantes). Disseram que sim, qualquer coisa como al tiro, ou seja, é pra agora, e saíram ainda mais excitados. Pablo me explicou que os jovens desviados, da población estavam havia muito rachados, com uma forte ala allendista e um núcleo pequeno de direitistas! Aquela história terminou, talvez, em forma dramática, como veremos oportunamente.

Quando saíram, começara a anoitecer. Sem esperar muito, Pablo nos conduziu para uma casa ao fundo da “población”. As casas pelas quais passavam estavam na escuridão. Raramente se via alguém na rua. Por fora, a moradia diferia-se apenas das demais por seu pequeno pátio dianteiro repleto de objetos usados dos mais variados tipos. Atendeu-nos à porta e nos fez entrar um senhor, já idoso, magro, alto e ereto, de clara ascendência espanhola.

Villa Torres de Macul, onde Mário Maestri residiu em Santiago. (Arquivo pessoal)

A casa denotava uma pobreza maior do que as demais. Na sala, havia apenas uma mesa, rodeada por cadeiras irregulares. Uma porta dava para a cozinha, ao fundo, e duas outras para os dois quartos. Havia um velho sofá, meio estropiado, coberto por um cobertor, e uma cômoda, onde depositamos nossas fifty-fifty.

O senhor se dirigiu a mim pedindo que cobríssemos as “granadas”, pois sua “companheira” era muito nervosa. Ele não tinha medo delas, disse sorrindo, pois trabalhara por longos anos, quando jovem, nas minas do norte, como dinamitero. Levantei-me e cobri as meninas com meu poncho colorido, cheio de franjas.

A esposa do nosso anfitrião, pequenina e magra, apenas um pouco mais jovem que o marido, nos trouxe da cozinha xícaras de um chá que já era quase apenas água quente. Ela portava tranças, tinha fortes traços somáticos e se vestia como mapuche, o povo originário do sul do Chile que conquistara, na esteira da Unidade Popular, parte das terras que lhes haviam sido roubadas, desde a colonização espanhola. Elas seriam perdidas, com o golpe, e os mapuches seguem até hoje na mesma luta, sob enormes dificuldades.

O senhor se desculpou por não haver mais açúcar. E disse algumas palavras para a esposa que, muito tímida, serviu-nos e voltou para a cozinha, sem proferir uma palavra. Aos poucos, foram chegando três ou quatro crianças, de uns seis a doze anos. O senhor contou-nos que eram seus netos, que ele criava. Trabalhara no salitre, no cobre, na construção, quando se mudara para Santiago. Agora, sem pensão, trabalhava de “papeleiro”, ajudado pelo neto mais velho.

Levantou-se, buscou na cômoda uma Bíblia e perguntou se queríamos rezar. Não insistiu, quando viu nosso embaraço. Disse que era evangélico e, desde jovem, comunista. Apontou para a parede onde havia uma imagem, muito colorida, de Jesus Cristo e, ao lado, uma gravura emoldurada de Recabarren, o fundador do Partido Comunista de Chile, que conhecera, nos disse orgulhoso. Confessou que tinha mais de oitenta anos mas continuava rijo.

Enquanto falava de sua vida, sua companheira colocara na mesa quatro pratos. Fomos convidados a nos sentar. O velho senhor desculpou-se pela cazuela rala – o tradicional ensopado chileno de carne ou peixe, com verduras, batata e arroz. Qualquer coisa como uma canja brasileira incrementada. Lembro que tinha algumas batatas, um pouco de arroz, ervas. Diante do prato servido, me desculpei por não ter, realmente, fome. O senhor, sorrindo e paternal, me disse que comera, gostaria. Não necessitava ser muito sensível para notar nossa enorme tensão.

Levei a colher à boca e foi como se provasse o néctar dos deuses escorrendo, quente e substancioso, por minha garganta. Quando me preparava para me lançar voraz sobre meu prato e atacar a batata que me coubera, Pablo me assinalou, em voz baixa, a senhora e as crianças, ao longo da sala, encostados na parede. Ninguém aqui comeu e essa é a comida que há – completou, quase murmurando.

Observação discreta de jovem trabalhador com sensibilidade aguçada para a situação dos segmentos mais pobres da população. Em verdade, o único que começara a comer era eu. Envergonhado, me dirigi ao nosso anfitrião, na cabeceira da mesa, com o prato vazio, já que não se servira, pois a cazuela realmente era pouca. Disse-lhe que as crianças não tinham comido. Que não podíamos comer. E mais uma vez, conheci reeducação proletária sumária, diante do melhor caldo que comi durante toda a minha vida.

O senhor falou alto e forte, quase autoritário, para mim e para os três outros companheiros: – Comam. Vocês têm que se alimentar. Vocês estão lutando por nós!

Era ainda cedo, mas não me aguentava acordado. Não dormira nada na noite anterior, a razão, não me lembro. Tiroteio, gritos, o golpe avançando, e eu sem saber onde me meteria a seguir.

O senhor propôs que repousasse no quarto. Havia diversas camas, quase uma ao lado da outra, onde dormiria toda a família. Ao ir ao banheiro, mais tarde, me enganei de porta, e vi que o outro quarto servia de depósito sobretudo para velhos trapos e papel. A limpeza dos cobertores sobre a cama era precária. Apesar de as noites de setembro serem frias no Chile, estendi meu poncho sobre a primeira cama e me deitar sobre ele, calçado. Creio que durante todos aqueles dias, jamais descalcei a bota que portava.

Pensei que não dormiria. Seguiam-se escutando tiros, rajadas de metralhadora, gritos agudos de mulheres. Caí em um sono profundo, enquanto era devorado por todos os tipos de insetos domésticos possíveis. Dormi talvez duas horas. Pablo veio me acordar. Tínhamos que abandonar a morada. Um dos jovens cogoteros revolucionários viera avisar que os pacos sabiam que estávamos naquela zona da “población”, devido ao soplones. Mas que isso não se repetiria. Eles se ocupariam – dissera.

Juntamos nossas granadas e partimos. E, já sem muitas alternativas, nos dirigimos para uma casa-refúgio do MIR, que fora abandonada, ao início do golpe, por estar possivelmente “queimada”, não muito distante, em um bairro mais remediado. Na porta, o velho senhor, desejou-nos sorte na luta e despediu-nos com um: – !Váyanse con Dios!

Caminhamos pelas ruas da “población”, iluminadas por uma lua maravilhosa, correndo rente às casas, por ruas estreitas, semi-abaixados, parando nas esquinas, atravessadas um por um, para não sermos abatidos, todos, no caso de uma rajada. Eu ia na frente, de pistola em punho, já semi-consciente da situação sem volta em que nos encontrávamos. Seguiam os tiros e os gritos.

Duas vezes vimos passar, lentamente, poucas quadras distantes, pelas ruas mais largas, veículos das forças armadas, de luzes apagadas. Entretanto, não sei por que, a angústia que sentia, entre as paredes das casas onde nos abrigávamos, desaparecia, como por encanto, ao sairmos à noite, em pleno toque de queda. Sentia um enorme alívio, como se a aragem fria e a semi-escuridão da noite nos abraçasse e protegesse.

Na casa-refúgio se encontravam dois outros companheiros, não me lembro se de nosso grupo original. Nos dividimos em turno, para vigiar a entrada, agachados junto ao muro, com a Beretta 6.35, pronta, em teoria, para disparar, se necessário. A via de retirada era pela porta dos fundos, saltando o quintal da casa lindeira, em direção a um arroio próximo.

Pablo veio me encontrar, no meu turno, trazendo alguns cigarro, com filtro, de um maço que os dois companheiros haviam trazido e socializaram com os que fumavam. Um verdadeiro tesouro. Naquele então, eu fumava como um morcego. De Pato Malo e seu grupo, não tínhamos notícias. Acendi um cigarro, procurando que ele não denunciasse nossa presença. Subitamente, vi um vulto se aproximando em nossa direção, na escuridão, desde o outro lado da rua, a uns cem metros.

Quando meu coração já disparava, Pablo me tranquilizou. Eram companheiros do MAPU, que tinham uma sede na casa de janela semi-iluminada por uma réstia de luz, na esquina. Em verdade, era a única que não estava mergulhada totalmente na escuridão. O MAPU era um grupo de esquerda, com alguma força entre a classe média e no campo, que rompera com a esquerda da Democracia Cristã e integrara a Unidade Popular.

O companheiro caminhava pela rua, com passos pequenos e tranquilos, em nossa direção, o que já era pra lá de estranho. Mas sobretudo me causava curiosidade os volumes que trazia, na mão direita, com o braço levantado, e na esquerda, rente à perna. Seriam armas? Não eram, não! Era coisa melhor. Mas o que era, revelaremos apenas, no nosso próximo capítulo.

(*) Mário Maestri, 72, rio-grandense, é historiador. Em 1971-73, estudou, viveu e militou, como refugiado político do Brasil, em Santiago do Chile. E-mail: [email protected]

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