Opinião
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11 de setembro de 2020
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21:28

Os milicos armando o golpe e a gauchada jogando bola (por Paulo de Tarso Riccordi)

Por
Sul 21
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Reprodução (Jorna Clarín/Santiago)

Paulo de Tarso Riccordi (*)

Na noite da segunda feira 10 de setembro de 1973 a seleção de futebol do Brasil jogaria em Santiago contra a seleção do Chile. “Esta noche a las 20,00 horas: Chile se despide ante Brasil”. Expectativa de um bom espetáculo para sua torcida, antes do embarque para a primeira partida, em 26 de setembro, em Moscou, pela disputa com a União Soviética da vaga para o mundial do ano seguinte.

A torcida seria grande. Desde a posse do socialista Salvador Allende na presidência, no final de 1970, centenas de militantes de esquerda caçados pela ditadura brasileira haviam buscado exílio no democrático Chile. Rever a seleção tricampeã mundial, no mesmo estádio em que Garrincha fez o que quis em 1962, seria uma forma reencontrar a melhor parte do país do qual haviam sido banidos ou forçados a fugir.

O jogo já havia sido transferido do sábado, 8. A seleção viajou em conexão por Montevidéu, mas lá não conseguiu seguir até Santiago por greve na Línea Aérea Nacional (LAN), no corpo da onda de paralisações dos transportes, organizadas pela oposição ao governo de esquerda e financiadas pela CIA.

No domingo, 9, estabeleceu-se uma nova crise entre militares e políticos governistas. Num ato dos partidos da Unidade Popular, o secretário geral do Partido Socialista, senador Carlos Altamirano, rechaçou as violentas invasões de fábricas por militares, sob o pretexto de apreender armas de grupos paramilitares. Ele também denunciou o plano para um golpe de Estado liderado pela Marinha. Dias antes, ele e dirigentes do MIR e do MAPU receberam de marinheiros baseados em Valparaíso o relato sobre uma reunião da alta oficialidade da Armada, em que trataram detalhes da ação contra o presidente Allende. Não por acaso, no oceano Pacífico, navios chilenos e da marinha norte americana estavam realizando exercícios de combate; exatamente como no Atlântico, diante do Brasil, nas vésperas do golpe de 1964. Se tal acontecesse, ameaçou Altamirano, o Chile “se converterá em um segundo Vietnã heroico”. Ainda no domingo, os militares pediram licença à Justiça para processá-lo.

Jornal chileno noticiou jogo da seleção chilena com os “negritos de Porto Alegre” (Reprodução)

Enfim, o jogo das seleções foi transferido do sábado para a segunda feira, péssimo para se ir a estádio à noite e madrugar para o trabalho ou escola. As previsões de público despencaram. Mas os gaúchos Raul Ellwanger e Roberto Metzger perseveraram.

Viviam num apartamento de primeiro andar no bairro Ñuñoa, Raul e a noiva, Eliana (Nana) Lorentz Chaves, músicos, e Bob, gráfico na Faculdade Latino Americana de Ciências Sociais (Flacso), com a esposa Vânia Steigleder Metzger, o filho Charles Hugo (Bito), de quatro anos. Ela estava no início de gravidez de Edouard (Dudu). Já amargavam um longo exílio.

A apropriação propagandística da camisa da seleção e da bandeira do país pelos militares, a partir do começo dos anos 70, provocou um crescente afastamento e desprezo das pessoas de esquerda. Mas aí já estavam fora do país, depois da clandestinidade interna.

Sentiam saudades. Precisavam ver o Brasil tricampeão em campo. Não tinham mais Pelé nem Garrincha, mas ainda era um timão. E pelo Chile talvez jogasse o Elias Figueroa, dono da grande área do Internacional de Porto Alegre. Quando Raul e Bob foram para o estádio, no final da tarde de segunda feira, ao presidente Salvador Allende Gossens restavam somente 19 horas de vida.

Sem que ninguém percebesse, o comandante das Forças Armadas, Augusto Pinochet, já havia assumido o comando do golpe de Estado, tomado o juramento de silêncio de todos os generais seus aliados, ordenado o cerco do Palácio La Moneda por tanques naquela madrugada e determinado o aquartelamento de todas as tropas, sem o conhecimento do ministro da Defesa ou do presidente.

Numa caminhada de menos de quatro quilômetros, praticamente em linha reta até os portões do estádio, no mesmo bairro de Ñuñoa, as coisas pareceram esquisitas. Descendo a avenida Antonio Varas, até que havia gente a caminho do jogo, mas nada das multidões que acorriam a ver a canarinho em qualquer país em que se apresentasse. Nas arquibancadas, os pingados assistentes eram um triste contraste com as mais de 85 mil pessoas haviam assistido a Universidad de Chile vencer por 4 a 1 a Universidad Católica naquele mesmo estádio, nove meses antes. Só 21.915 assistentes para um Brasil e Chile? Jogo noturno em dia útil, mais o acentuado aumento da temperatura política no final de semana, explicavam, mas não suficientemente.

Um dia depois de jogo do Chile com a seleção do “sul do Brasil”, Estádio Nacional foi usado por militares como prisão de opositores (Reprodução/Youtube)

Então, já sentados Raul e Bob souberam que do Brasil chegara apenas uma “representação”. Nada de Piazza, Clodoaldo e Dirceu, ou o colorado Valdomiro, Rivelino, Jairzinho e Paulo Cézar Caju. Apareceu foi uma equipe arranjada entre times do interior do Rio Grande do Sul, dirigida pelo treinador do Grêmio Bagé, Paulo Cesar Lobo. Nem jogadores do Internacional e do Grêmio participaram. A comitiva foi chefiada pelo presidente da Federação Gaúcha de Futebol, o folclórico Rubens Hoffmeister, que viajou acompanhado da esposa.

Os narradores chilenos não sabiam como nominá-la: “selección de sur de Brasil”, “Rio Grande de Sur”, “selección brasileña de Porto Alegre”. O misto do interior gaúcho formou com Ferreira; Carlos Miguel, Roubillard, Ciro e Humberto; Paulo Araújo e Zico; Sidney, Bebeto, Neca e Décio (depois substituído por Derli).

Tomaram cinco a zero. No primeiro tempo.

O “conductor del ataque chileno” Sérgio Ahumada, saiu de campo incomodado. Tinham desejado que o jogo fosse um teste do nível de sua equipe para o jogo dali a 16 dias, em Moscou:

– Francamente, estou decepcionado com o rival. Por um lado, a goleada estimula, mas por outro, talvez desejasse um examinador mais forte, mais drástico. Nesse sentido, a seleção do Sul do Brasil me decepcionou muito”.

Júlio Crisosto, autor do quinto gol, bateu forte:

– Enfrentamos um rival medíocre”.

O capitão, Francico Chamaco Valdés, autor do primeiro gol, aos seis minutos de jogo, odiou a retranca:

– Me decepcionou o rival. Veio só para se defender”.

O jornal El Mercúrio abriu na capa: “Ganó a Porto Alegre 5-0. Com uma goleada se dispidió la selección”. “Los delanteros chilenos abandonaron el campo del Estadio Nacional en medio de una tremenda ovación”.

Os locais sob ovação, os torcedores brasileiros completamente decepcionados, a “selección de sur de Brasil” lambendo as feridas, iniciavam então os últimos momentos de relativa tranquilidade antes que fossem sacudidos por um pesadelo de quase 17 anos.

Raul e Bob voltaram a pé para casa. Dormiriam menos de seis horas antes que começasse a caçada aos estrangeiros – cubanos e brasileiros em particular – pelos militares vitoriosos.

Já os jogadores gaúchos nem deitaram. Chegaram em torno das 23 horas ao Hotel Carrera Hilton, na rua Teatinos, uma das laterais da Plaza Constitución, diante da qual está o Palácio de La Moneda. Jantaram, beberam e antes que se recolhessem começou a agitação do staff. Haviam recebido “do além” ordens muito explícitas: todos os hóspedes deveriam ser levados para as áreas abaixo no nível da rua, onde funcionavam oficinas e a lavanderia. Entenderiam o porquê só no final da madrugada, quando tudo tremeu pela execução da ordem dada pelo general Augusto Pinochet ao comandante do Exército, general Javier Palacios:

– Quero que assuma o 2º Regimento Blindado e cerque com tanques La Moneda”.

Raul dormiu pouco. Às 7 horas chegou ao Instituto Pedagógico da Universidade do Chile, onde encontrou tudo vazio e fechado. Ainda sem saber o que estava acontecendo, voltou para casa pela avenida deserta, por onde raramente passava algum ônibus. Em casa, ligou o rádio. Várias emissoras já haviam sido invadidas e tiradas do ar. Até que, às 8h15, pela sobrevivente Rádio Magallanes, ouviram o presidente Allende informar que estava em curso um golpe de Estado contra seu governo, mas que mantinha confiança nos “soldados da Pátria”.

Das amplas janelas envidraçadas, vizinhos pró golpe apontavam para os Ellwanger e os Metzger e faziam com as mãos o gesto a significar “espera que o que é teu está guardado”. Na segunda declaração da Junta Militar explicitou-se a ameaça. Os golpistas determinava que todos os estrangeiros deveriam apresentar-se espontaneamente à delegacia de polícia mais próxima. E orientavam a população a denunciar vizinhos cubanos e brasileiros, “terroristas que vieram ao Chile para assassinar nosso povo”.

Ainda pela manhã, Vânia, o filho Charles, Nana e Raul atravessaram a cidade para se esconder em casa de amigos chilenos, até poderem decidir o que fazer. Bob ficou para trás, para destruir documentos, mas acabou ficando para dormir. Às 21 horas os militares invadiram o apartamento, o prenderam e transferiram para um caminhão tudo o que havia no apartamento. Livros, discos, violão, móveis, berço de bebê, nada escapou ao butim.

Roberto Metzger voltou, 24 horas depois de terminar o jogo da seleção, ao Estadio Nacional, que fora transformado em campo de concentração de presos políticos.

No subterrâneo do hotel, o time de gaúchos, Rubens Hoffmeister, sua esposa, e dezenas de estrangeiros permaneceram trancados por três dias. Nas primeiras horas, ouviram o bombardeio por aviões e tanques e o metralhamento pesado contra o palácio e o presidente Allende. A partir do final da tarde e pelos dias e noites seguintes, ouviram o contínuo tiroteio trocado entre os militares e franco atiradores no centro de Santiago e nos prédios do entorno de La Moneda. Os hóspedes foram autorizados a sair do porão somente para entrar apressadamente nos ônibus militares que os levaram diretamente à pista do aeroporto de Pudahuel, onde o avião já os esperava para decolagem imediata rumo Porto Alegre.

Já na seleção chilena seu maior astro começou a ter problemas com a ditadura em ascensão. Carlos Caszely, 22 anos, artilheiro do Colo Colo, finalista da Copa Libertadores, era declarado apoiador do governo Allende. Menos de duas semanas após o golpe, ele recusou-se a estender a mão a Pinochet, na despedida da equipe para o embarque para o jogo contra a União Soviética.

A segunda partida deveria acontecer em Santiago, em 21 de novembro de 1973, mas a União Soviética decidiu que “os atletas soviéticos não poderiam, por razões morais e em respeito ao sangue derramado de patriotas chilenos”, jogar em um estádio que até poucos dias antes havia sido um campo de concentração. Sem conseguir convencer a Fifa a transferir o jogo para um país vizinho, pagou uma multa e abriu mão da possibilidade, provável, de conquistar a vaga para jogar o mundial da Alemanha.

No ano seguinte, enquanto Caszely estava na Alemanha disputando a copa, sua mãe, também militante de esquerda, foi detida e torturada pelos militares. Caszely só soube ao voltar do Mundial. Logo tratou de transferir-se para o time espanhol Levante, de Valência, e tirar a família do Chile.

O pesadelo iniciado na noite daquele jogo com gaúchos só terminou 16 anos e meio depois, com mais de três mil assassinados, 30 mil torturados, 80 mil presos.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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