Opinião
|
8 de agosto de 2020
|
11:35

Muito além de 100 mil mortos: o projeto de naturalização da bárbarie (por Lucas Fogaça)

Por
Sul 21
[email protected]
Muito além de 100 mil mortos: o projeto de naturalização da bárbarie (por Lucas Fogaça)
Muito além de 100 mil mortos: o projeto de naturalização da bárbarie (por Lucas Fogaça)
Foto: Alex Pazuello/Semcom/Manaus

Lucas Fogaça (*)

O Brasil chega a pelo menos 100 mil pessoas mortas pelo coronavírus. O número de vítimas certamente é superior já que a quantidade de pessoas contaminadas pode ser 7 vezes maior que os números oficiais [1]. Porém, se considerarmos “apenas” os números governamentais em sua dimensão do núcleo familiar mais estreito – viúvos(as) e filhos –, são pelo menos 400 mil pessoas diretamente atingidas pela pandemia.

Ocorre que além das vítimas fatais e seus familiares, há uma escala de desempregados sem precedentes: pela primeira vez na história recente do Brasil há mais pessoas sem emprego do que trabalhando [2]. E a despeito do que os números subnotificados podem apontar, há uma dimensão da crise praticamente impossível de se medir em cifras: o processo de desumanização dos seres humanos que vivem no Brasil.

Quando o número de mortos e contaminados não para de crescer mas contraditoriamente todos os governos (ainda que uns mais outros menos, mas todos os governos) em todos os âmbitos impõe o relaxamento das medidas de distanciamento social (a única arma que temos no momento para enfrentar a pandemia), não realiza testagem em massa, não garante condições mínimas de subsistência para a grande maioria da população ficar em casa, cria-se um cenário que se torna indispensável pra racionalidade burguesa a instituição de uma grande empreendimento: a naturalização da morte. Porque se não houver indiferença com o genocídio, o povo pode se revoltar e isso se tornar um problema para os negócios.

Os brasileiros, sobretudo os que vivem nos territórios periféricos – em sua maioria negros e negras –, sempre foram submetidos a níveis absurdos de violência e mortalidade. São heranças da sociedade colonial escravocrata. A operação de naturalização em marcha, liderada pelo bolsonarismo em associação com a direita “liberal”, e conduzida pelos grandes monopólios de comunicação em conluio com o empresariado rural e urbano, traz consequências profundas e será um passo a mais na brutalização dos brasileiros. Não é uma operação simples nem indolor tornar milhares de mortes como algo do cotidiano. Já são mais vítimas que a Bomba de Hiroshima e Nagazaki!

E poderia ter sido diferente: a Argentina, para citar um país com condições econômicas e sociais não tão distantes, não tem 5 mil mortos. Se multiplicarmos pelo número de habitantes em comparação com o número de habitantes no Brasil seria algo em torno de 20 mil. Veja-se a tão caluniada Venezuela, a África do Sul. Os exemplos são muitos já que no nível do Brasil só os EUA e daqui uns tempos a Índia.

O fato é que se esse plano de naturalização vencer e acharmos normal conviver com um número de mortes nessa escala o Brasil sairá profundamente abalado. As condições de vida e existência das próximas gerações estarão seriamente desgraçadas. E mesmo que afete de forma muito diferente ricos e pobres, negros e brancos, homens e mulheres, afetará a todos os brasileiros. Afeta o Brasil como projeto de país, afeta os brasileiros em sua subjetividade nacional se quiserem. A escravidão degrada a alma do escravo e do senhor disse Joaquim Nabuco ao seu tempo. Não se pode deixar enganar, o projeto de naturalização em curso nessas proporções afetará a todos. O convívio indiferente com a morte em tal profundidade, o desdém, a barbarização da condição humana que está nascendo contaminará todas as instâncias da sociedade brasileira.

Que país será o Brasil depois da pandemia? É cedo pra dizer. É cedo porque como afirmou o professor Silvio Almeida a História não transita em julgado. Dependerá em alguma medida do que formos capazes de fazer daqui pra frente.

(*) Lucas Fogaça é advogado.

[1] https://wp.ufpel.edu.br/covid19/ufpel-na-midia/

[2]  Números inéditos na história recente do Brasil.

§§§

As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora