Opinião
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11 de julho de 2020
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13:36

“O documento faz o cidadão” (por Cláudio Machado)

Por
Sul 21
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“O documento faz o cidadão” (por Cláudio Machado)
“O documento faz o cidadão” (por Cláudio Machado)
Reprodução/TV Globo

Cláudio Machado (*)

Cidadão não: engenheiro civil, formado, melhor do que você.” Esta frase, dita por uma mulher sobre seu marido em uma matéria do programa Fantástico[1], incomodou muita gente. Repercutiu até mais do que o desrespeito às regras sanitárias de controle à propagação do COVID-19, tema da reportagem. Neste breve texto, exploro o vínculo entre o conceito de cidadão e a documentação civil básica no Brasil.

Originalmente, cidadão era todo aquele com plena capacidade política de votar e ser votado. Entretanto, o conceito de cidadania não é estático, tornou-se mais sofisticado ao longo do tempo. Em Cidadania no Brasil: o longo caminho, o historiador José Murilo de Carvalho apresenta um conceito abrangente de cidadania que vêm funcionando como bússola:

Uma cidadania plena, que combine liberdade, participação e igualdade para todos é um ideal desenvolvido no Ocidente e talvez inatingível. Mas ele tem servido de parâmetro para o julgamento da qualidade da cidadania em cada país e em cada momento histórico.

A Constituição Federal de 1988, conhecida como a Constituição Cidadã, estabeleceu um horizonte amplo de direitos civis, políticos e sociais para o cidadão brasileiro. No entanto, não encontramos uma definição positiva, explícita, do cidadão que abarque o rol de direitos que lhe é atribuído.

Esta não é uma questão simples. Ainda em 1984, Dalmo de Abreu Dallari [2] apontou para a imprecisão no uso da palavra cidadão na legislação brasileira, defendendo que fosse adotado o conceito mais amplo de pessoa humana:

(…) É preferível falar-se na pessoa humana, mais do que no cidadão. Este é criação da vontade do Estado e pode ser facilmente reduzido em sua medida e sua importância.

Em sua conclusão, Dallari destaca de forma muito clara o vínculo entre cidadania e documentação civil, reforçando que o emprego do termo cidadão poderia ser restritivo no Brasil, dadas as limitações do acesso da população à documentação civil básica:

Para se ter uma ideia dos efeitos dessa concepção restritiva basta lembrar que, no Brasil, existem milhões de pessoas que nem sequer têm registro de nascimento, não existindo para a lei, a par de milhões de analfabetos, excluídos do corpo eleitoral.

O título deste texto, tomei emprestado de uma frase da antropóloga Mariza Peirano[3], que apresentou de forma clara o papel dos documentos na mediação entre o Estado e os indivíduos:

“O documento, assim, legaliza e oficializa o cidadão e o torna visível, passível de controle e legítimo para o Estado; o documento faz o cidadão em termos performativos e obrigatórios.

Por outro lado, Mariza nos alerta que devemos prestar atenção não apenas ao lado formal dos documentos, mas também aos seus usos cotidianos:

Ao examinar alguns deles em sua ocorrência rotineira, procuro indicar como situações que os têm como protagonistas tanto revelam quanto põem em movimento essas entidades que concebemos abstratamente como nação, Estado, cidadania.[4]

Voltemos à cena da reportagem do Fantástico para refletirmos sobre ela, sem o risco de a simplificarmos, reduzindo-a à uma arrogância individual ou estigmatizando um determinado grupo político.

O diálogo deu-se da seguinte forma:

Homem: Não vai falar com seu chefe, não?

Mulher dele: A gente paga você, filho. O seu salário sai do meu bolso.

Homem: Cadê sua trena? Quero saber como você mediu sem trena.

Fiscal: Tá, cidadão.

Mulher dele: Cidadão, não. Engenheiro civil, formado. Melhor do que você.

A forma como o fiscal dirigiu-se ao homem no diálogo, o “tá, cidadão”, pode ser entendida em alguns contextos como intimidatória, pois é frequente que os agentes do Estado assim o façam quando querem impor sua autoridade a uma pessoa. “Cidadão” também é utilizado em contexto em que uma pessoa trata outra com reserva /desconfiança.

A reação da mulher claramente foi de repelir as possíveis conotações negativas expressa por um uso comum e popular do termo “cidadão”, para referir-se à um desconhecido, adicionando que o marido é um “engenheiro civil, formado.” Há aqui a expressão de uma pretensa superioridade individual, como outro antropólogo, Roberto Da Matta, havia explicitado na pergunta frequente “Você sabe com quem está falando?”. A conversa mostrada no Fantástico é uma versão desta pergunta. Mas ela revela também uma dimensão pouco visível da concepção formal de cidadão.

Pergunto, então: afinal, o que faz de um indivíduo formalmente um cidadão no Brasil? Qual ou quais documentos comprovariam essa condição?

Sem dúvida, legalmente a pessoa é reconhecida perante o Estado brasileiro por meio do registro civil. Hoje, apesar dos problemas, o acesso da população ao registro civil é muito maior do que na época em que Dallari escreveu seu artigo. A gratuidade do registro contribuiu decisivamente para tal, mas também o esforço de modernização e integração dos serviços que vem sendo realizado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em especial/ ou por exemplo, a área de Direitos Humanos do Governo federal e os próprios oficiais delegados que operam o dia a dia dos serviços do registro.

O registro civil é o primeiro passo, no entanto, não é suficiente. O documento de identidade é o outro documento civil imprescindível para que uma pessoa cumpra com os requisitos documentais exigidos para o pleno exercício da cidadania, entendida em seu conceito amplo.

Infelizmente, em relação à identidade civil, o país vem avançando muito lentamente. A maioria da população continua tendo acesso aos serviços de identificação civil em delegacias de polícia, o que reforça uma percepção autoritária e negativa do documento de identidade. Não há padronização ou integração entre os serviços de identidade entre os estados, com graves consequências para o Estado e para o cidadão. Não existem estatísticas oficiais, mas os indícios apontam para o fato de que muitas pessoas não têm acesso aos serviços de identificação, especialmente os mais pobres e vulneráveis.

A Lei 12.037/2009 reconheceu que outros documentos podem ser utilizados para atestar a identidade civil, além da própria carteira de identidade: carteira de trabalho, carteira profissional, passaporte, carteira de identificação funcional, documentos de identificação militar e qualquer outro documento público.

Numa sociedade marcada pela desigualdade econômica e social, os documentos civis refletem e podem reforçar essa mesma desigualdade. Os documentos constituem o cidadão e mediam as relações sociais. Assim, a fala espontânea “cidadão, não. Engenheiro civil, formado”, não nos remete a uma carteira de identidade que todos os cidadãos indistintamente deveriam ter acesso, mas sim ao documento corporativo do Conselho Regional de Engenheiros e Agrônomos (CREA), que faz com que alguns sintam-se mais do que um cidadão.

Sinceramente, não é o único nem será o último a utilizar um documento de classe para diferenciar-se. Num país dominado pelas corporações, o desafio da identidade civil no Brasil não é apenas a criação de um documento único para todos, mas de um documento de igual valor para todos.

Notas

[1] Programa Fantástico da Rede Globo em 05/07/2020 

[2] Dalmo Dallari – Ser cidadão

[3] Mariza Peirano – “De que serve um documento“. 

[4] Mariza Peirano – “Sem lenço, sem documento”. Versão publicada em “A Teoria vivida e outros ensaios de antropologia”. Jorge Zahar Editor, 2006.

(*) Especialista em Gestão da Identidade do Cidadão. Consultor independente e pesquisador associado do ITS (Instituto de Tecnologia e Sociedade)

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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