Opinião
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29 de julho de 2020
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17:38

A fome como subjetividade perpétua ou sobre como objetivar a crueldade (por Gustavo Comanchi)

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Sul 21
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A fome como subjetividade perpétua ou sobre como objetivar a crueldade (por Gustavo Comanchi)
A fome como subjetividade perpétua ou sobre como objetivar a crueldade (por Gustavo Comanchi)
Prefeitura de Novo Hamburgo não usa recursos do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) para compra de cestas básicas. (Arquivo EBC)

Gustavo Comanchi (*)

O título deste pequeno artigo faz alusão a parte das ideias do filósofo argentino, radicado no México, Enrique Dussel [1] (reconhecido teórico latino-americano por sua importância à Filosofia da Libertação e ao pensamento crítico original de nossa região). Tive a oportunidade de ver e escutar Dussel ao vivo em minha recente passagem pelo México, enquanto cumpria as atividades de meu estágio doutoral no colorido país-irmão norte-americano. Sou privilegiado por vários motivos, um deles é o de ter estado com Dussel por três vezes durante os dez meses em que estive no país de Emiliano Zapata e do potente movimento neozapatista Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN).

Na última vez que o escutei e o vi no México, na oportunidade de uma aula pública na Universidad Nacional Autónoma de México (UNAM), fiz a seguinte anotação: “a necessidade surge quando objetivamos o que é subjetivo e o consumo é o que torna subjetivo o que antes era objetivo”. Parece complexo e realmente é. No entanto, este texto é justamente uma tentativa de elucidar aquele pensamento do filósofo de “Nuestra América Latina”. Naquele 8 de fevereiro de 2019, uma sexta-feira, com a sala lotada e gentes sentadas pelo chão, por todos os lados, Dussel se referia a como o que é subjetivo (“sinto fome”) se torna objetivo (ato de comer); e, por outro lado, o professor explicava também como o que é objetivo (ato de comer) se torna subjetivo (“sinto-me satisfeito”) outra vez.

Para o argentino-mexicano, as quatro necessidades básicas do ser humano, todas ligadas à manutenção e reprodução da vida, são: comer, beber, vestir-se e proteger-se das contingências da natureza. Parece simples e realmente é. Dussel não utilizou o exemplo da fome, do ato de comer e da satisfação por ter comido, atoa. E, da mesma forma, eu não os repito aqui de maneira aleatória. Mas eu, ao analisar a realidade das estudantes de Novo Hamburgo no contexto da pandemia da Covid-19, estou falando da fome, da necessidade de comer e não poder e da insatisfação por não ter comido. Aos fatos…

Mesmo diante da permissão legal a partir da publicação da Lei Nº 13.987, de 7 de Abril de 2020, e da Resolução Nº 2, de 9 de Abril de 2020, do Ministério da Educação/Programa Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), para utilização dos recursos do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) para compra de cestas básicas a serem distribuídas para as estudantes da rede pública federal, estadual e municipal, a Prefeitura Municipal de Novo Hamburgo permanece imobilizada em relação a essa possibilidade desde que as aulas foram, acertadamente, suspensas. Em outras palavras: a lei acima citada libera o uso, ainda que facultativo, dos recursos do PNAE, que em “tempos normais” é restrito à compra de alimentos para a merenda escolar, para aquisição de cestas básicas. E o que faz a Prefeitura de Novo Hamburgo diante de tal faculdade? Deixa os recursos imobilizados em seu caixa “para quando as aulas retornarem”, nas palavras da própria secretária de educação Maristela Guasseli, em reunião ordinária do Conselho Municipal de Segurança Alimentar (Consea) realizada na tarde desta terça, 28.

Antenadas à possibilidade garantida pela Lei 13.987, no já longínquo dia 08 de abril, uma série de organizações da sociedade civil apresentaram uma carta de reivindicações à prefeitura. Na carta, um dos pedidos era o da utilização dos recursos do PNAE para tal fim. Passados três meses e sem qualquer resposta, iniciamos novas articulações. De um lado organizados na Articulação Municipal Ação Popular Vida e Democracia e, de outro, em uma movimentação de parte das organizações da sociedade civil que integram o Consea (Grupo Araçá de Consumo Responsável, Associação Cultural Cantalomba e OCS Sinos), juntamos forças e enviamos uma carta-convocação para vários setores da prefeitura, para a Comissão Especial de Enfrentamento ao Coronavírus da Câmara de Vereadores e para vários conselhos municipais gestores de políticas públicas para que a reunião ordinária do Consea fosse transformada em uma plenária ampliada dada a urgência do tema.

Na reunião, com destaque para a participação da secretária de educação, já citada, e do secretário de desenvolvimento social, Roberto Daniel Bota, o que vimos e escutamos desde nossas telas de computador foi um misto de esquivos e subestimação. Entre uma série de argumentos desencontrados, ouvimos de Guasseli que os recursos não estão sendo utilizados para aquisição de cestas básicas porque a Lei 13.987 faculta ao invés de obrigar e, além disso, porque todas as estudantes teriam de ser atendidas pelas cestas e que, diante disso, os recursos não alcançariam para tanto. A verdade é que, como sabemos, nem todas as estudantes e suas famílias percebem as mesmas necessidades e condições de vulnerabilidade, ou seja, as cestas poderiam ser direcionadas às famílias com maiores necessidades. Importa destacar, ainda, que nem a Lei 1.987 e nem a Resolução Nº 2 do FNDE deixam margem à interpretação de “ou todas ou nenhuma”.

Dussel talvez diria que a Prefeitura Municipal de Novo Hamburgo se esforça para perpetuar a subjetividade da fome mesmo diante da possibilidade de transformá-la na subjetividade da satisfação de comer, tendo como centro o momento objetivo que é o ato de comer em si. Eu, por outro lado, entendo que o que a prefeitura protagoniza é um descabido processo de objetivação da crueldade: o ato de impedir que nossas estudantes cumpram seu direito básico à alimentação. Entre os dois polos das subjetividades de Dussel – o sentimento de fome, de um lado, e o de satisfação por comer, de outro –, poderia estar a objetividade da comida na mesa mas o que vemos é outra, a da crueldade do dinheiro imobilizado no caixa.

Nota

[1] Aqui é possível encontrar toda a obra de Dussel: https://enriquedussel.com/Inicio_cas.html

(*) Comanchi está presidente municipal do PSOL Novo Hamburgo, partido pelo qual é pré-candidato a vereador (plataforma Se a cidade fosse nossa); é parte da Produtora Cultural Coletiva e Independente Outro Mundo Acontece, do Grupo Araçá de Consumo Responsável, do Coletivo Cultural Manifesto Poesia e da Articulação Municipal Ação Popular Vida e Democracia – NH/RS; é mestre e doutorando em Ciências Sociais pela Unisinos.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.

 


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