Opinião
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25 de junho de 2020
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16:53

O Brasil de Lya Luft (por Fernando Nicolazzi)

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Sul 21
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O Brasil de Lya Luft (por Fernando Nicolazzi)
O Brasil de Lya Luft (por Fernando Nicolazzi)
Bolsonaro discursando a apoiadores, em ato em defesa de um novo AI-5 | Foto: Reprodução/Twitter

Fernando Nicolazzi (*)

É preciso coragem, além de uma boa dose de dignidade, para confessar publicamente um grande erro. Há neste gesto algo de expiação sincera, algo que se mistura com a vontade de que o erro confessado possa ser de alguma forma corrigido, e que o mal que porventura ele causou seja reparado.

A confissão do erro é, por isso, também uma espécie de pedido de desculpas. Se não há nada de mais humano do que o cometimento de erros, o fato de admiti-los em público dota o pedido de um grau de humanidade que eu não me atreveria a tentar descrever. Limito-me a considerá-lo uma coisa admirável e necessária.

Creio, todavia, que tal coragem não possa ser exemplificada com Lya Luft, quando ela confessa seu arrependimento por ter desperdiçado o voto com Jair Bolsonaro. Apreciando a paisagem tranquila de um bosque da serra gaúcha, Luft fala “com naturalidade” do erro de ter votado naquele que, em rede nacional, havia homenageado um torturador diante da própria vítima da tortura. É como se este fosse um erro banal, como se errar a mão na hora do voto fosse o equivalente a errar a mão ao salgar o arroz.

A confissão do erro, no entanto, é ela própria equivocada, pois vem carregada de cinismo e hipocrisia. “Votei na falta de coisa melhor”, diz a autora. Aqui, o erro é travestido de autoengano, pois é falsa a afirmação de que não havia nada melhor do que Jair Bolsonaro. Todas as outras opções eram melhores do que o admirador confesso do “pavor de Dilma Rousseff”.

Assim como havia candidatos muito qualificados, havia alguns muito ruins e outros ainda piores. Mas todos, sem exceção, eram melhores que Jair Bolsonaro, um candidato que sequer possuía plano de governo e que fez das fake news sua principal plataforma política. Recuso-me a acreditar que a escritora desconhecia este fato. Portanto, seu engano parece ter sido consciente e voluntário.

Seu erro teria sido motivado porque, segundo Luft, “queria outro Brasil” e Bolsonaro seria a encarnação deste desejo. Isso nos faz pensar que outro Brasil seria este que a escritora desejava. O então candidato já era conhecido pela sua absoluta incompetência parlamentar, por sua defesa de milicianos, pelo incentivo à sonegação de imposto, pelo uso indevido de verba pública.

Além disso, Bolsonaro se notabilizou entre os grupos sociais mais desprezível de nossa sociedade pelos comentários racistas e homofóbicos, pelas agressões contra as mulheres, pelo ódio contra indígenas, pela defesa da violência, pela compulsão à mentira, por jogar o próprio filho contra a mãe. Bolsonaro sempre foi e continua sendo efetivamente um homem sem qualidades. O país que ele representa é também um país sem qualidades.

Então era este o outro Brasil que a escritora desejava em outubro de 2018? Se assim for, é preciso constatar aqui mais um equívoco cometido pela escritora, pois este país em grande medida já existe e ela vive nele. Seu voto em 2018 era a chance de mudar essa situação, não de perpetuá-la. Talvez a falsa tranquilidade com que uma cidade como Gramado engana seu habitante lhe tenha impossibilitado de enxergar aquilo que era tão óbvio. Quem sabe por trás de uma consciente vontade de mudança trabalhasse sorrateiro um inconsciente desejo pela permanência do mesmo país desigual, injusto e violento.

Mas não ousarei voos psicanalíticos. Encerro com uma última constatação na forma de lamento. Além da confissão do erro, Lya Luft comentou sobre seu último livro, salientando que o escreveu “para mostrar que o amor é mais importante do que a morte”. Pois é uma pena que suas lamentáveis decisões políticas não tenham seguido seus nobres anseios literários.

(*) Professor do Departamento de História da UFRGS

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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