Opinião
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19 de junho de 2020
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17:17

‘Moda Racista’: Uma ouvidoria para enfrentar o silenciamento (por Helena Soares e Mi Medrado)

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Sul 21
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‘Moda Racista’: Uma ouvidoria para enfrentar o silenciamento (por Helena Soares e Mi Medrado)
‘Moda Racista’: Uma ouvidoria para enfrentar o silenciamento (por Helena Soares e Mi Medrado)
Perfil no Instagram acabou sendo alvo de uma ação judicial (Reprodução/Instagram)

Helena Soares e Mi Medrado (*)

Diante da visibilidade amplificada dos movimentos de resistência a opressão e do ato violento e de racismo ocorrido em Mineápolis, Minnesota, nos Estados Unidos, foi criado um perfil virtual (no Instagram) nomeado “Moda Racista”, em linguagem virtual inclui-se o arroba: @ModaRacista. Em menos de três semanas agregou mais de 43 mil seguidores e 700 relatos, os quais tinham em seu conteúdo, em meio a diferentes demandas, um clima de denúncia e indignação, relatos que evidenciaram práticas racistas que ainda enfrentamos nas nossas relações cotidianas.

Assim, o perfil tornou-se semelhante ao de uma ouvidoria, um espaço de denúncias a situações de racismo, lgbtfobia e gordofobia praticados por marcas de moda, em sua maioria atuantes no mercado de luxo, e por profissionais que têm por função garantir o fluxo de modelos e proteger imagens. O que se viu, a cada novo relato, foram práticas cotidianas que evidenciaram a urgência da discussão do racismo na moda. Acolheu-se depoimentos de fornecedores e trabalhadores em alto grau de sofrimento e sob quais práticas de silenciamento negociam e vivem. A cada nome, marcas e atitudes citadas, descortinou-se um véu sujo e cruel, em que direitos e dignidade à pessoa humana são negligenciados.Vimos a frieza e o exercício de subjugar trabalhadores, que em sua maioria são jovens, como são tratados na relação assimétrica de poder. Entretanto, um dos casos que saiu da fronteira virtual foi o dos inúmeros relatos de racismo envolvendo a marca Reinaldo Lourenço.

O estilista buscou recursos judiciais para defender-se e evitar a exposição de suas roupas e acessórios, as quais conforme vimos nos relatos, consentem práticas racistas. Por meio de uma petição cível, solicitou a censura do perfil @modaracista e que o trâmite judicial ocorresse em segredo de justiça. Contudo, a juíza responsável pelo caso entendeu que não havia justificativa para segredo, uma vez que o combate ao racismo é de interesse público. Deste modo, o que se ajuizou foi o pedido de identificação do perfil e a exposição de seus administradores. Entretanto, a resposta dos administradores, até o fechamento deste texto, foi retirar o perfil do ar, não cedendo a condição judicial.

Não é novidade que o sistema de produção de moda é desigual e que seus trabalhadores são tratados com descaso. É preciso reconhecer que esses trabalhadores tem gênero, cor e recebem formas de tratamento que singularizam a desigualdade. Entendemos, a necessidade de uma leitura analítica e crítica das práticas desiguais que recortam e alinhavam a indústria da moda no contexto brasileiro. Para que assim, iniciemos um trabalho de transformação desta lógica perversa que configura o espaço do trabalhador no sistema de moda.

“Aceitar que a história da indústria da moda tem um passado racista e o perpetua até hoje é dar um passo em direção a prevenir um futuro racista. Isso envolve reconhecer as realidades da indústria da moda – cuja premissa é a habilidade de excluir grupos e indivíduos. Essa exclusão beneficia somente aqueles que excluem, e que estão distantes da realidade do excluídos.” (tradução livre de Mi Medrado, do livro: Stitched Up: The Anti-Capitalist Book of Fashion, Tansy Hoskins, PlutoBooks, London, 2014)

Faz-se necessário a emergência de ações antirracistas que ampliem a escuta de dores silenciadas, produzindo vivências reparadoras da fratura que a escravidão produziu no tecido social. A moda brasileira precisa se descolonizar, retirar de si, práticas coloniais, e enfrentar questões históricas que rondam o falso espectro do mito da democracia racial. Mito este que veste a estrutura de funcionamento das relações comerciais nessa indústria. Responder aos tipos de racismo que a página denunciava é ação imperativa, bem como, refletir e coibir os tipos de desigualdades que o perfil trouxe à luz. E o enfrentamento deve se dar pela via estrutural, por ações que não legitimem mais nenhum tipo de silenciamento. A promoção de uma perspectiva descolonial que trabalhe com a finalidade de enfraquecer nós históricos que estruturam o racismo, pode colocar luz em outras realidades e possibilitar espaços de fala, expressões e imagem para aqueles que só têm sofrido silenciamentos. Compreendemos que o sistema de moda é a corporificação do capitalismo, cujo modus operandi depende exclusivamente da exploração do capital humano, pois o seu exercício subjuga indivíduos, estilos, marcas, cuja produção e reprodução atua na lógica tácita do poder simbólico.

Nossa análise é questionar as práticas socioculturais que propagam e naturalizam o racismo e outros preconceitos nessa indústria. O objetivo dessa denúncia é sensibilizar a comunidade a fim de criar uma coalizão com diferentes atores que trabalham no mercado, pesquisadores dentro ou fora de universidades e a sociedade civil.

Os relatos que pudemos ouvir pela conta @modaracista nos instigam a refletir os processos históricos e perspectivas contemporâneas, mas também indagar as dimensões econômicas e políticas que roupas e trabalhadores estão posicionados no sistema vigente. A fim de não mais ver a moda e seu sistema como um objeto menor ou apolítico, mas como “filha predileta do capitalismo”, só assim assim retiraremos trabalhadores do silenciamento. Não podemos deixar que esse caso seja mais um caso na lista de passos em falso da moda brasileira. Fica para nós a questão: como cada um de nós, diferentes atores do Sistema da Moda poderemos, na medida da sua proporção de responsabilidade, agir perante este caso?

(*) Helena Soares é Psicanalista, doutoranda em Psicologia Social e Institucional, na UFRGS, e criadora do Brechó de Troca

Mi Medrado é Antropóloga, fundadora do @modainconversation, doutoranda na Universidade da Califórnia, UCLA.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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