Opinião
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21 de junho de 2020
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14:05

Futuro sem passado: haverá uma estrada da memória para relembrar? (por Marcio Antônio Both da Silva)

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Futuro sem passado: haverá uma estrada da memória para relembrar? (por Marcio Antônio Both da Silva)
Futuro sem passado: haverá uma estrada da memória para relembrar? (por Marcio Antônio Both da Silva)
Bob Dylan canta sobre “o lugar onde a fé, a esperança e a caridade se encontram”. (Reprodução/Youtube)

Marcio Antônio Both da Silva (*)

“Temos a tendência de viver no passado, mas isso é só nosso. Os jovens não têm essa tendência. Não têm passado, e por isso tudo o que eles sabem é o que eles ouvem e veem, e costumam acreditar em tudo.

Em 20 ou 30 anos, eles estarão no comando. Se você vê uma criança de 10 anos, hoje, dentro de 20 ou 30 anos ela estará no controle das coisas, e não saberá coisa alguma sobre o mundo que um dia conhecemos. Os jovens que estão na adolescência agora não terão uma estrada da memória para relembrar. Assim, é provável que o melhor seja adotar essa mentalidade o mais rápido que pudermos, porque essa vai ser a realidade.”

Esse trecho é de autoria de Bob Dyaln, foi retirado de uma entrevista que ele recentemente concedeu e foi publicada no jornal Folha de São Paulo. A leitura do texto causa certo impacto, pois pode ser objeto de várias interpretações, mas delas destaco duas possíveis e que me parecem importantes: uma primeira, faz pensar nas possibilidades de existência de um futuro sem passado, visto que, segundo a perspectiva de Dylan, os jovens de hoje, que estarão no comando amanhã, “não terão uma estrada da memória para relembrar”.

Já a segunda interpretação, dá a entender que Dylan, um dos grandes nomes da música do século XX, que ainda hoje é referenciado mundo afora por sua produção musical e intelectual, está um tanto “acomodado”. Essa leitura ganha mais força quando, ao concluir a sua perigosa afirmação de que o futuro da humanidade estará alicerçado em uma “estrada sem memória”, indica que, das opções possíveis, a “melhor” é “adotar essa mentalidade o mais rápido que pudermos”.

A entrevista ocorreu no contexto do recente lançamento do seu último disco, no qual a música “Murder Most Foul” tem ganhado atenção especial, tanto por seu conteúdo, quanto por sua duração (17 minutos). Por sua vez, ao contrapor o conteúdo da letra dessa música com o que está expresso no trecho destacado acima é perceptível que há muita relação entre eles.

Dylan é como que um profeta messiânico dos tempos atuais. De certa forma, para o nosso mundo, há tempos ele vem atuando como um daqueles Xamãs muito característicos de determinadas tribos nativas do mundo não ocidental. Sacerdotes que, ao final da tarde, sobem em uma pedra, olham para o horizonte e leem nos raios e nas cores produzidas pelo crepúsculo do sol o que vai acontecer no dia de amanhã, se vai chover ou não e qual a melhor época para plantar e para colher.

Assim, na música “Murder Most Foul”, que faz parte de um disco que foi lançado e produzido no contexto de uma pandemia que vem assolando o mundo, Dylan canta sobre “o lugar onde a fé, a esperança e a caridade se encontram”. Mesmo odiando, afirma que “apenas homens mortos são livres”, pede amor sem mentira e solicita que as armas sejam jogadas na sarjeta. Porém, avisa que “a era do anticristo chegou”, que “jogar na escuridão” é perigoso e que a morte vem quando é hora, sendo que apenas os “bons morrem jovens”. Em suma, canta o nosso mundo, canta as nossas crises, canta a nossa desesperançosa esperança no e do futuro.

O historiador Reinhart Koselleck em seu “Futuro Passado”, ao tratar do “espaço de experiência” e do “horizonte de perspectiva”; grosso modo, do passado e de suas relações e conexões possíveis com o presente e com o futuro, afirma que quanto mais o espaço de experiência é esgarçado em direção ao presente, em outros termos, é presentificado, mais difícil fica para os homens conseguirem estabelecer um “horizonte de perspectiva”, isto é, uma perspectiva de futuro. Quando Dylan, na sua entrevista, afirma que “os jovens que estão na adolescência agora não terão uma estrada da memória para relembrar”, parece estar tratando desse presentismo e, também, daquilo que legamos aos nossos jovens.

Do fato de que, atualmente, para lembrar Zygmunt Bauman, tudo é líquido e fluído e que, no nosso mundo, as coisas e as relações não são feitas para durar, são e devem ser efêmeras e, de preferência, ter um valor econômico, o que dá uma potência toda particular a essa efemeridade. Por seu turno, parece que a pandemia veio dar contornos e significados mais dramáticos a isto tudo, pois em diferentes paragens do mundo, entre nossos amigos e conhecidos, na vizinhança das nossas casas, entre nossos colegas de trabalho, os indícios de que a humanidade continuará apostando na escuridão são demasiadamente fortes para serem ignorados.

Na outra ponta, quando Dylan complementa sua frase com a afirmação de que precisamos adotar a mentalidade dos jovens “o mais rápido que pudermos, porque essa vai ser a realidade”, por mais que pareça, não está sendo acomodado ou catastrófico. Como profeta messiânico que é, Dylan está a nos dizer que a “tendência de viver do passado é nossa”, não dos nossos jovens, dos nossos filhos. Em última instância, exigir que eles vivam e vejam o mundo como nós viemos vivendo e vendo é no mínimo arbitrário, antiético e antipolítico. Em outros termos, é garantir modos para que a era do anticristo continue triunfando. Afinal, o que é que o nosso mundo de desigualdades e de progresso tem a entregar aos jovens de hoje? Um lugar que conseguimos transformar em um não lugar? Um futuro sem passado?

Assim e segundo Dylan, seguimos nessa “longa e estranha viagem do macaco nu!”. Porém, para que essa frase ganhe em sentido e significados, vale lembrar outro poeta, mas que viveu no século XIX; quando o horizonte de perspectiva da humanidade ainda era uma terra de promissão, dizia ele: “a anatomia do homem é a chave para anatomia do macaco.” Quando definitivamente compreendermos os significados dessas duas frases e das suas conexões possíveis, talvez entenderemos, nos termos de “Murder most Foul”, porque “no dia em que explodiram o cérebro do rei, milhares estavam assistindo, ninguém viu nada”, pois “aconteceu tão rápido, tão rápido, de surpresa. Bem ali na frente dos olhos de todos.”. Foi o “maior truque de mágica, como sempre, feito sob o sol. Perfeitamente executado, habilmente feito”. O “assassinato mais imundo” do mundo.

A pandemia está aí a cometer imundos assassinatos diariamente e sob a luz do sol, diante dos olhos de todos, mas alguns insistem em não querer ver nada ou, o que é pior, a negar ou a relativizar o que estão vendo. Enfim, pavimentando estradas sem memórias que duramente nossos jovens terão que percorrer.

(*) Professor do Curso de Graduação e do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste)

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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