Opinião
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12 de maio de 2020
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12:59

Que escola pública ofereceremos quando a pandemia passar? (por Márcio Cabral)

Por
Sul 21
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Que escola pública ofereceremos quando a pandemia passar? (por Márcio Cabral)
Que escola pública ofereceremos quando a pandemia passar? (por Márcio Cabral)
Márcio Cabral: “a normalidade que vivíamos não era exemplo de nada” | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Márcio Cabral (*)

Recentemente o historiador e jornalista indiano Vijay Prashad nos chamava a atenção para um desejo idealista que, cada vez mais, alentamos para quando resgatarmos a “normalidade perdida” em meio a crise global decorrente da epidemia sanitária da covid-19. “Não voltaremos ao normal, porque o normal era o problema” replicava Prashad em seu artigo ao parafrasear este slogan escrito na lateral de um prédio na cidade de Santiago (Chile).

Há uma angústia psicanalítica, aquela que se dói pelas ausências de rotinas, dos costumes, das ações que repetíamos dia-a-dia, nas nossas famílias,  no nosso trabalho, nas relações sociais, nos espaços de convivência, etc.  Mas esta angústia acaba eclipsando os problemas reais que já conhecíamos anteriormente e que hoje não reaparecem em nossas memórias por justamente não os queremos mais por perto, mas que não só ainda existem como se agravaram em meio a epidemia. É como se, ao olhar para trás, só lembramos das coisas boas que perdemos.

Mas antes de tudo isso já vivíamos em uma sociedade doente, empobrecida, com uma imensa maioria relegada a ausência de Estado, de direitos e de assistência. Isto se agravou com o coronavírus. Alguns ousam dizer que a crise desvelou os invisíveis. Mas estes esquecem de assumir para si a responsabilidade por deixar um terço da nossa gente relegada a migalhas das poucas organizações assistenciais que organizam redes de solidariedade no combate à fome e a pobreza, problema crônico que, a cada dia que passa, avança sobre as periferias das nossas cidades.

Sou professor da rede pública e a minha realidade já era marcada pelo empobrecimento das famílias e pelo sucateamento das políticas públicas que atendem os mais vulneráveis. Na medida que cresce desemprego e se extinguem as medidas protetivas, também cresceu os problemas sociais em nossa cidade. Vale lembrar que a escola pública, muitas vezes, acaba assumindo para si responsabilidades para as quais não está preparada. Com o desmonte das políticas de assistência social e de saúde pública, nosso povo não só empobreceu como também adoeceu.

Coincidentemente ao avanço da fome e do desemprego cresceu na primeira infância problemas de de saúde mental. Isto já é uma realidade nas escolas, onde crianças apresentam sérios problemas de aprendizagem mas não tem acesso à tratamentos psicopedagógicos, psicológicos e psiquiátricos. Por que as famílias não querem? Não! Não culpemos os mais humildes pela ausência do Estado.

É bom relembrarmos que crianças chegavam todos os dias pela manhã nas escolas com fome, com frio, mal vestidas e algumas com indícios de violência. O que faz um professor frente a isso? No mínimo tenta acolher. Nestas situações também ficamos vulneráveis, porque nos parece que para uma imensa maioria de crianças que atendemos somos o elo perdido entre o Estado e mais pobres.

Mas eu me pergunto agora quantas das minhas crianças estarão de volta à escola no dia que “tudo isso passar” e recuperarmos nossas vidas “normais”?

Não há com0 não imaginar que o Seu Carlos, pai da Roshelle, esteja trabalhando como antes visto que o Shopping onde ele era segurança está há meses fechado. Nem que a  Carolyne, tia da Jessyelly esteja bem ao perder boa parte das faxinas que fazia até fevereiro. Como fizeram para sobreviver estas famílias? Receberam o auxílio do governo? Conseguiram pagar o aluguel ou tiveram que procurar abrigo na casa de parentes? Estão se alimentando?

A discussão sobre o papel das instituições públicas precisa ser reposicionada frente ao futuro. Não quero discutir somente a reposição dos dias letivos perdidos. Nem dos conteúdos programáticos e processos pedagógicos deixados de lado. Quero debater o vínculo da escola com a sua comunidade. O papel da educação no resgate das vidas que se desgarraram no meio da pandemia. Aquela relação com as famílias estabelecidas por um portão fechado precisa mudar. O tema da educação à distância serve para desnudar também a ausência de vínculo entre família e escola. Para isso, as tecnologias de informação e comunicação, as chamadas TICs não podem mais serem vistas como vilãs que vêm para substituir o trabalho docente.

Já existem debates que colocam o acesso à internet para os alunos da rede pública como uma necessidade no mesmo porte do debate sobre o livro didático, merenda escolar e o transporte escolar.  Anteriormente se fala em distribuir tablets e computadores para alunos, mas na verdade o que se precisa é discutir o acesso universal à internet para uso na educação. Ou os governos não podem dar pacote de dados para os alunos da rede pública?

Portanto, não quero voltar a minha normalidade. Ela não era exemplo de nada. Na minha escola havia medo com relação ao futuro, com o desmonte dos planos de carreiras e ameaça de substituição por trabalhadores terceirizados e precarizados. Havia o medo da intervenção definitiva na gestão democrática, substituindo por modelos empresariais de gestão que desconhecem a realidade escolar da nossa cidade.

O futuro, colegas,  não pode imitar o passado. É hora de exercitar novas possibilidades. Hora de pensarmos sobre utopias e, na medida do possível, experimentá-las no momento que voltarmos para a sala-de-aula. É hora de repensarmos o papel do Estado como promotor do acesso universal à educação pública, gratuita e de qualidade. Porque este papel não está garantido para os desafios o futuro. Mas resgatar o passado, aquele ponto interrompido lá em março também não é o caminho.

(*) Pedagogo e professor da rede pública municipal de Porto Alegre

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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