Opinião
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17 de maio de 2020
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13:22

Ensino remoto durante crise pandêmica agrava as desigualdades (por Lucas Coradini)

Por
Sul 21
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Ensino remoto durante crise pandêmica agrava as desigualdades (por Lucas Coradini)
Ensino remoto durante crise pandêmica agrava as desigualdades (por Lucas Coradini)
Em 79,9% dos lares já há acesso à internet, apesar de 35,7% destes não possuírem esgoto (IBGE, 2018). Foto: Luiza Castro/Sul21

Lucas Coradini (*)

Neste período sem precedentes na história da educação brasileira, centenas de escolas em todo o país estão com as suas atividades presenciais suspensas, dado o elevado risco de contágio nestes ambientes que, por sua natureza, impossibilitam qualquer tentativa de distanciamento social. Escola é espaço de coletividade, de compartilhamento. Neste contexto, algumas instituições optam pelo ensino de forma remota, buscando a mitigação dos prejuízos decorrentes desse período de suspensão das aulas.

Não há dúvida de que o fazem com as melhores intenções, buscando responder aos anseios de pais e estudantes preocupados sobre a continuidade dos processos formativos, com as eventuais dificuldades de recuperação de calendário e com o avanço para as próximas etapas letivas. É certo que há estudos que referem as perdas de aprendizado geradas por períodos de afastamento da escola, mas muito pouco sabemos sobre os prejuízos da realização de estudos de forma remota num contexto pandêmico, que combina calamidade de saúde pública com o agravamento de uma crise econômica. Quais são as condições objetivas de estudantes prosseguirem seus estudos neste cenário, e qual a realidade dos trabalhadores em educação frente aos desafios que se colocam? Enquanto carecem diagnósticos sobre as reais condições para a construção de uma relação de ensino e aprendizagem profícua, com qualidade, efetividade e inclusão neste contexto, percebe-se um ímpeto imediatista pelas soluções fáceis e manutenção de atividades a qualquer custo.

Podemos começar refletindo sobre as condições de acesso das famílias brasileiras a computadores e à internet, e descobriremos que em 79,9% dos lares já há acesso à internet, apesar de 35,7% destes não possuírem esgoto (IBGE, 2018). Entendendo que o acesso à internet é o elemento chave para as soluções aos problemas educacionais ocasionados pela pandemia, muitas instituições passam a adquirir chips ou fornecer “auxílio internet” para aqueles que ainda não a possuem. Mas fica a pergunta: neste Brasil que nem o saneamento básico chegou em todos os lares, quais são as perspectivas para a aprendizagem de forma remota?

Se o acesso à internet parece expressivo na população, a forma como se dá este acesso possui suas limitações, pois muitos estudantes conectam-se somente através do celular. Em alguns casos, celulares que pertencem aos pais ou irmãos, ou seja, fazem uso compartilhado do equipamento. Não é difícil imaginar os limites colocados pelo acesso à internet por um dispositivo que pode interromper os estudos a todo momento com ligações, notificações, e que em alguns casos ainda é dividido com outros membros da família. Ou imaginar as dificuldades para redigir uma redação, um trabalho escolar, ou uma tarefa mais complexa, como uma monografia. Sabemos que até os lares mais privilegiados sofrem, por vezes, com problemas de conectividade e interrupção dos serviços – quem está neste momento em trabalho remoto certamente já teve uma prova disso – o que esperar então daqueles que usam pacotes de dados pré-pagos com limites de navegação?

Outro aspecto que merece reflexão diz respeito ao domínio de ferramentas digitais entre os estudantes e a autonomia para os estudos de forma remota. Será que todos somos capazes de aprender no autodidatismo? Bem verdade que temos uma geração que cresceu conectada e interagindo nas plataformas digitais, mas isso não pode ser generalizável à realidade dos estudantes deste país de dimensão continental. Há que se pensar nas particularidades de cada nível e modalidade de ensino, nos estudantes trabalhadores, nos estudantes das periferias e zonas rurais, na educação de jovens e adultos e, é claro, na educação básica, em que os pais têm se desdobrado no auxílio aos estudos domiciliares atuando como verdadeiros tutores, sem nenhum preparo para isso. Há que se pensar, também, nos estudantes com deficiência, ou com qualquer condição limitante de aprendizado, que requerem planos educacionais individualizados, adaptações curriculares e conteúdos acessíveis.

E o que dizer sobre o ambiente de estudos dos nossos estudantes nos domicílios? Nestes lares em que nem o saneamento básico chegou e que, em regra, há alta taxa de ocupação habitacional, será que os estudantes contam com privacidade, silêncio, mobiliário adequado, condições ergonômicas, acesso a livros, por exemplo? Quantos dos nossos estudantes, nesses tempos de pandemia, estão sendo responsáveis pelos cuidados de outros familiares, idosos, filhos e irmãos menores? A mesma reflexão podemos fazer em relação aos trabalhadores da educação, muitas vezes com contratos de 40h ou 60h nas redes públicas, com a regência de dezenas de turmas e centenas de alunos. Quais as condições destes trabalhadores conciliarem suas atividades domésticas com a preparação de materiais pedagógicos, gravação de vídeo aulas, e atendimento remoto a este contingente de estudantes que desbrava agora os mares desconhecidos do ensino virtual?

É preciso reconhecer que nem estudantes nem professores foram preparados para isso, e que ensino a distância não se faz no improviso, mesmo que imbuído das melhores intenções. Sob o risco de submeter ambos atores a um processo cruel e tortuoso que transformará a educação em tempos de pandemia em mais uma herança traumática da crise. Os currículos também não foram planejados para tal, projetos pedagógicos de cursos concebidos para serem presenciais não são facilmente convertidos para o formato a distância. Ainda mais quando falamos em educação profissional ou ensino superior, cujas atividades práticas, laboratoriais, saídas de campo e visitas técnicas são imprescindíveis.

Mas, mais importante que tudo, é compreendermos que todas estas condições para a realização de estudos de forma remota até aqui elencados, como o acesso a computadores, acesso à internet, qualidade da conectividade, domínio de ferramentas digitais, autonomia para estudos, disponibilidade de ambiente adequado de estudos nas residências, suporte familiar, são absolutamente implicadas pelas condições socioeconômicas dos estudantes. E, em um país caracterizado por desigualdades sociais históricas – inclusive no acesso à educação – a transposição do ensino presencial para o ensino remoto agrava ainda mais essas desigualdades. São incomparáveis as condições de estudo mediado por tecnologias em famílias estruturadas, com elevado capital cultural, com pais dotados de alto nível de escolarização, com acesso aos melhores recursos educacionais disponíveis, e as condições de estudo de famílias periféricas, cuja presença no ambiente escolar em tempos normais já significa muitas vezes um ato de resistência. Se as desigualdades educacionais sempre existiram e de certa forma são até naturalizadas, não é neste momento  de crise pandêmica que devemos aprofundá-las.

É preciso um mínimo de sensibilidade para compreender o momento de calamidade pública que estamos passando. Além das centenas de vidas que perecem diariamente, as populações mais vulneráveis estão perdendo seus empregos, diminuindo seus rendimentos e lutando pela subsistência. Aqueles que não podem praticar o isolamento social por razões de sobrevivência econômica, arriscam-se diariamente nos transportes coletivos e em locais de trabalho por vezes insalubres. Trata-se de um contexto de anomia social e de desorganização familiar. Nele, infelizmente, há imperativos maiores do que as “descobertas” acerca das possibilidades do ensino mediado por tecnologias, urgências mais prementes do que o aprendizado sobre como realizar webconferências, navegar pelo MOODLE ou fazer trabalhos escolares em um celular. Deveria despertar alguma inquietação que estudantes estejam reivindicando neste momento, ao invés de “auxílio internet”, acesso à merenda escolar que por ocasião está em suspenso.

Há quem sugira que estes, os mais vulneráveis, devam então se arriscar ainda mais no rompimento do isolamento social buscando acesso à internet, computadores ou a materiais impressos de forma presencial, nas próprias escolas. Ou, alternativamente, que se enviem chips de internet ou materiais impressos aos estudantes pelos correios. Enfim, se não há mais preocupação com o modelo de ensino bancário, unidirecional e não dialógico, que prevaleça pelo menos algum senso de humanidade e de solidariedade. Se o acesso à educação já é distinto por uma cruel estratificação social, que o direito à saúde e à vida ao menos se pretendam universais. Ademais, escola não é apenas repositório de conteúdos para que a discussão se resuma em como transpô-los via ensino remoto. Escola é antes de mais nada espaço de socialização, de aprendizado na convivência, e isso não há tecnologia que substitua.

O foco de educadores e gestores educacionais deve direcionar-se sobre a retomada das atividades letivas, que certamente não se dará sob um espectro de normalidade, ensejando uma série de adaptações, ações de acolhimento e estratégias pedagógicas diversificadas para cobrir este período de distanciamento. No retorno, talvez, caiba a utilização de estratégias de recuperação que transcendam a sala de aula, como a realização de projetos integradores, estudos dirigidos e até alguma atividade mediada por tecnologias, mas com as estruturas das escolas disponíveis e a oportunidade de acompanhamento docente de forma presencial. Por ora, talvez valha mais um momento de pausa e recolhimento, focados no cuidado familiar, proteção da saúde física e mental de nossos estudantes e trabalhadores da educação, dando condições para a reorganização social e restabelecimento da normalidade sanitária e econômica, do que criar um novo problema para além dos já existentes, desfigurando princípios basilares da educação e aprofundando as desigualdades.

(*) Lucas Coradini é mestre em Sociologia, Doutor em Ciência Política, e Pró-reitor de Ensino no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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