Opinião
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12 de maio de 2020
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14:41

Covid-19: o custo social do negacionismo de Bolsonaro e os desafios políticos do Brasil (por Jeffrey W. Rubin e Gana Ndiaye)

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Sul 21
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Covid-19: o custo social do negacionismo de Bolsonaro e os desafios políticos do Brasil (por Jeffrey W. Rubin e Gana Ndiaye)
Covid-19: o custo social do negacionismo de Bolsonaro e os desafios políticos do Brasil (por Jeffrey W. Rubin e Gana Ndiaye)
Jair Bolsonaro, Paulo Guedes e representantes da indústria. Foto: Reprodução

Jeffrey W. Rubin e Gana Ndiaye (*)

O presidente Jair Bolsonaro do Brasil, no cargo há pouco mais de um ano, tem um histórico bem documentado de retroceder nas medidas pioneiras de bem-estar social do Brasil e de permitir vastas queimadas da Amazônia. Em meio à pandemia de Covid-19, ele alimentou mais controvérsia em uma nação já polarizada, apoiando manifestantes em várias cidades brasileiras que pedem o retorno à ditadura militar.

Não surpreende portanto, que a resposta de Bolsonaro ao Covid-19 tenha sido a de rejeitar o distanciamento social no interesse do crescimento da economia brasileira. Em 16 de abril, ele demitiu o popular ministro da Saúde Luiz Mandetta por adotar uma estratégia que Bolsonaro caracterizou como “quase exclusivamente voltada para salvar vidas”. Apesar da beligerância característica com que Bolsonaro se opõe ao distanciamento social, no entanto ele tem um ponto quando argumenta que manter a economia funcionando é essencial para a sobrevivência.

A afirmação de Bolsonaro assinala os efeitos da distribuição altamente desigual da riqueza brasileira na situação econômica precária da classe média e pobre do Brasil. Bolsonaro tem uma visão particular sobre este assunto, pois a sua e a administração de direita do presidente Michel Temer, que a precedeu, têm feito tudo ao seu alcance para enfraquecer o sistema de saúde pública brasileiro, limitar ou desmantelar os apoios à renda das famílias pobres e acabar com os bem sucedidos programas de quotas do Brasil.

Muitos governadores e prefeitos brasileiros, como seus colegas norte-americanos, buscam contornar um presidente que prioriza números econômicos e desrespeita conselhos médicos. E o conflito político no topo certamente impede uma resposta efetiva do governo. Mas a verdade é que os líderes deste estado esvaziado não cuidam do povo. Como resultado, os brasileiros comuns estão respondendo à crise da Covid-19 de formas que refletem as realidades comunitárias locais de raça, religião, imigração e violência, criando novas relações onde vivem, cujos efeitos políticos se farão sentir à medida que a pandemia se aprofundar.

De acordo com uma pesquisa, 60% dos moradores de favelas no Brasil não terão como pagar por comida por mais de 2 semanas, se tiverem que ficar em quarentena. Um estudo com pequenas empresárias negras mostrou que sem renda, apenas 40% delas poderiam manter seus negócios funcionando por um mês, e apenas 5% por três meses. Noventa e sete milhões de brasileiros até agora se candidataram ao programa de salário de emergência do governo federal, que oferece significativamente menos do que o necessário para sustentar um indivíduo, muito menos uma família, e muitas das que se candidataram foram rejeitadas por documentação incompleta.

Como a ajuda do estado não conseguiu atingir os segmentos mais vulneráveis da população, os ativistas ao nível local saíram as ruas, usando as mídias sociais para responder às questões prementes que suas comunidades agora enfrentam. Na cidade de Porto Alegre no sul, coalizões de trabalhadores, jovens e organizações do movimento de mulheres negras como Meninas Crespas, Alicerce e Akanni distribuem cestas para suprir as necessidades básicas, comprados com dinheiro de doações e com a arrecadação de alimentos não perecíveis. Alguns dos grupos pegaram seu slogan de campanha , “Quem tem fome não pode esperar”, do falecido sociólogo brasileiro Herbert de Souza, que havia conseguido atenção nacional para a necessidade da luta contra a fome nos anos 90. O slogan lembra diretamente também os anos de 2002-2010, quando o Ministério de Assistencia Social fez do Fome Zero uma prioridade nacional.

O Coletivo Quilombelas, um grupo de ativistas fundado por professoras negras da Restinga, um dos bairros mais pobres de Porto Alegre, expressou preocupações semelhantes em sua campanha de financiamento coletivo: “Eles planejam nos matar, nós planejamos não morrer.” O slogan, cunhado pela romancista negra Conceição Evaristo, teve origem em resposta aos comentários racistas de Bolsonaro durante a campanha eleitoral de 2018. Cento e cinqüenta movimentos negros de todo o país assinaram uma carta solicitando ao governo mostrar dados sobre a raça e o gênero das vítimas do vírus.

A religião organizada tem sido tema de controvérsia desde o início da pandemia. Vários pregadores evangélicos de destaque se opuseram ao fechamento das igrejas, incluindo Silas Malafaia, o líder da Igreja Assembléia de Deus e da Vitória em Cristo e conselheiro religioso do presidente Bolsonaro. Malafaia minimizou a seriedade da pandemia e manteve que as igrejas prestam “serviços essenciais”, um comentário que pesou na disputada política de distanciamento social e, ao mesmo tempo, reconheceu publicamente as necessidades espirituais de um grande número de brasileiros. Em 23 de março, a Secretaria de Justiça da cidade do Rio de Janeiro forçou Malafaia a suspender os cultos religiosos. Enquanto isso, muitas pequenas congregações evangélicas, que recebem menos pessoas do que os corredores dos armazéns, permanecem abertas.

Fechadas ou abertas para rezas, as organizações religiosas brasileiras estão desempenhando papéis significativos para alimentar pessoas vulneráveis, especialmente os sem-teto. Estes últimos correm o risco de ficar de fora da ajuda governamental, pois não têm acesso aos formulários online necessários para garantir a ajuda de emergência. Nas duas primeiras semanas de quarentena, quando as ruas de Porto Alegre foram esvaziadas, os voluntários da igreja estavam entre os que procuraram os desabrigados nos parques e bairros do centro da cidade para fornecer-lhes refeições.

A ajuda para sobreviver à pandemia também vem das comunidades vulneráveis de migrantes do Brasil. Relatos de refugiados sírios distribuindo refeições gratuitas para idosos na cidade de São Paulo têm espalhou-se amplamente nas mídias sociais. Em Toledo Paraná, um jovem senegalês ocupou as manchetes por dedicar seu tempo durante a quarentena a fazer máscaras para a Embaixada da Solidariedade, a mesma ONG que o ajudou a se instalar quando chegou ao Brasil pela primeira vez.

Artistas migrantes também têm sido ativos na luta contra o coronavírus, usando suas plataformas de mídia e habilidades sociais para disseminar informações sobre prevenção. Uma pequena produtora multimídia dirigida por Mara Kane, um senegalês que vive em São Paulo, colaborou com rappers da Bolívia, Brasil, Gana, Guiné e Senegal para produzir dois videoclipes, “Restez Chez vous” (Stay Home) e “Vaccin”. Cantando em francês, a língua oficial dos paises de muitos migrantes africanos, os rappers explicam como o Covid-19 se espalha e desmascaram a idéia de que os negros são imunes a ele.

Apesar dos esforços comunitários, o desespero econômico e o isolamento social enfraquecem o seguimento às regras do distanciamento social. No final de março, carrinhos de alimentos e vendedores de frutas, que haviam abandonado as ruas nas semanas anteriores, haviam retomado suas atividades no centro de Porto Alegre. Os mais velhos fazem caminhadas no vizinho Parque Faroupilha, alguns deles sem máscaras. No Rio de Janeiro, alguns traficantes forçam o distanciamento social para proteger os moradores da comunidade, enquanto outras forçam os lojistas a fazer negócios para que possam honrar seus pagamentos de proteção. Enquanto isso, o número de infecções no Brasil continua aumentando, com o número de mortes passando da marca dos 11,000 em 10 de maio.

Não fosse pelo negacionismo de Bolsonaro e pressões fortes do setor privado para a abertura da economia, as instituições governamentais brasileiras poderiam ter organizado o distanciamento social e entregado ajuda mais rapidamente, embora enfrentem duros limites de recursos. Em vez disso, os brasileiros vêem forças e alianças contraditórias se digladiando.

Desde o início da pandemia, um presidente de direita tem rejeitado a ciência, enquanto governantes de todo o espectro político o apoiam. Quando as mega-igrejas buscam desafiar a lei os tribunais agem, mesmo assim alguns pastores locais conseguem contorná-la. Um consistente sistema de auto-ajuda entre vizinhos complementa a insuficiente “ajuda de emergência” do governo, aprofundando a solidariedade de base. Os migrantes vem tomando medidas públicas inéditas para ajudar os pobres.

As interações entre todos os grupos que respondem à crise da Covid-19 vão formular a nova política que seguirá em frente. Há quase cem anos a depressão mundial de 1929 transformou a política e as economias latino-americanas do resto do século. Na esteira desta pandemia os brasileiros podem ou reacender a democracia das últimas décadas ou voltar ao domínio militar dos anos 60 e 70, ou forjar novas alianças e propostas políticas para o século 21.

Por enquanto o Covid-19 se instala em meio a um ataque da direita que já dura anos contra as instituições democráticas e os pobres. O debate que coloca o distanciamento social se opondo à necessidade econômica não contempla os processos socioeconômicos de longo prazo que tornaram a situação tão terrível para tantos. E os mecanismos de enfrentamento refletem exatamente isso: criativos, heróicos mas inerentemente limitados para lidar com as escolhas que a pandemia trouxe. Milhões de brasileiros devem ficar em casa e passar fome ou arriscar contrair a doença e até mesmo morrer, tentando ganhar dinheiro para se alimentar.

Jeffrey W. Rubin é  professor de História na Universidade de Boston, pesquisador especializado em América latina, já viveu um ano em Porto Alegre.

Gana Ndiaye é um doutorando em Antropologia da Universidade de Boston fazendo pesquisa com migrantes Senegaleses em Porto Alegre e no Brasil.

Tradução: José Ovídio Copstein Waldemar

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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