Opinião
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8 de abril de 2020
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21:10

Sem CPF, você não existe! (por Cláudio Machado)

Por
Sul 21
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Sem CPF, você não existe! (por Cláudio Machado)
Sem CPF, você não existe! (por Cláudio Machado)
Reprodução

Cláudio Machado (*)

Na manhã do dia 9 de abril, a Receita Federal do Brasil deu conhecimento por meio de nota oficial [1] que iniciou o processamento automático para regularizar os CPFs suspensos. Uma medida mais do que acertada, considerando o atual estado de calamidade pública. Entretanto, ficaram claros os limites da utilização do CPF como chave para identificação, sem a existência de uma sistema de identificação civil robusto e seguro, preferencialmente digital, para garantir de forma equilibrada tanto a integridade e transparência das políticas públicas, quanto os direitos fundamentais do cidadão, entre eles o da sua identidade civil.

O brasileiro parece ter naturalizado que o CPF funciona de fato como seu número de identificação para o governo. Porém, estamos vendo inúmeras limitações na sua utilização como chave para identificação do cidadão para as políticas públicas. A sistemática adotada pelo Governo Federal para o pagamento da Renda Básica durante o período da pandemia do COVID-19 exige, entre outros requisitos, que o beneficiário tenha uma inscrição em situação regular no Cadastro de Pessoa Física (CPF) da Receita Federal do Brasil.[2]

Entende-se que essa fosse a melhor opção na mesa, talvez a única viável num prazo tão curto. Porém, o diabo mora nos detalhes e estamos vendo o quanto a disfuncionalidade do nosso sistema de documentação civil inferniza a vida do cidadão na prática. Vamos aos detalhes: o que significa ter um CPF regular? Segundo a norma da Receita Federal, um CPF terá situação regular quando não houver inconsistência cadastral e não constar omissão de envio do DIRPF (Imposto de Renda da Pessoa Física).[3]

Quantas pessoas, eventualmente, podem estar com seu CPF suspenso hoje? Não há uma estatística pública detalhada sobre o CPF (isso deveria existir !). Em entrevista recente, um funcionário da Receita Federal informa que são aproximadamente 22 milhões de pessoas que têm ‘inconsistências cadastrais’ e, adicionalmente, em torno de 700 mil pessoas que não declararam o imposto de renda também estão com o CPF suspenso.[4]

O que pode levar à uma ‘inconsistência cadastral’? Um erro no preenchimento de um dos dados biográficos obrigatórios como nome, filiação, data de nascimento, endereço, título de eleitor, entre outros. Ou seja, um erro no preenchimento do cadastro eleitoral pode levar à uma inconsistência no CPF e a sua consequente suspensão. É razoável imaginar que as pessoas que possivelmente possuem dificuldades em manter seus cadastros nos órgão públicos sejam, em grande parte, também as pessoa que vivem em condição de trabalho informal para os quais, justamente, a Renda Básica foi instituída.

Se uma pessoa está nesta situação ela tem duas formas de corrigir o problema: primeiro, acessando o serviço disponível na página da Receita Federal e informando seus dados corretos.[5] A segunda forma é dirigir-se à uma unidade da RFB ou entidade conveniada para regularizar sua situação. Porém, conforme o site da Receita Federal, apenas 16 estados possuem unidades conveniadas que prestam o serviço gratuitamente à população. O estado mais populoso, São Paulo, não possui nenhuma unidade que preste serviços de atualização cadastral gratuita.

Além disso, a maioria das pessoas está com CPF suspenso porque seus dados na Justiça Eleitoral estão divergentes com os dados na Receita Federal. Ora, os cartórios eleitorais que prestam o serviço de atualização cadastral estão com funcionamento suspenso devido à pandemia do COVID-19. Ou seja, se a pessoa estiver nessa situação, hoje, dificilmente conseguirá regularizar seu CPF. Isso, claramente, afronta a Constituição Federal, que estabeleceu que todos os atos para o exercício da cidadania sejam gratuitos e garantidos ao cidadão.

Chegamos a uma situação absurda de irracionalidade administrativa. E o pior é que isso é apenas uma manifestação, particularmente perversa no atual contexto, de um problema muito mais profundo, o inferno em que vivem milhões de cidadãos brasileiros em condição de invisibilidade por problemas com seus documentos pessoais.

Afinal, o Governo Federal estabeleceu em 2019 o Cadastro de Pessoas Físicas – CPF como instrumento suficiente e substitutivo da apresentação de outros documentos do cidadão no exercício de obrigações e direitos ou na obtenção de benefícios.[6] Ou seja, definiu que o CPF é a principal chave para identificação do cidadão perante todas as políticas públicas. E todos parecem ter naturalizado que o CPF funcione como uma “identidade” civil. Mas o CPF não tem as necessárias características técnicas para substituir a identidade civil. Equivaler as duas coisas implicará em cancelar ou suspender a identidade de milhões de cidadãs e cidadãos brasileiros. E a identidade de uma pessoa não pode ser ‘suspensa’ por uma falha administrativa, ainda que causada pelo cidadão. Isso é um completo absurdo que não pode ser naturalizado. Muito surpreende o silêncio da sociedade civil que a todo momento aponta os “riscos totalitários da identificação”, quando não há maior indício histórico de totalitarismo que a anulação arbitrária da identidade civil de pessoas. Choca que nenhuma autoridade do Legislativo ou do Judiciário tenham se posicionado sobre o assunto.

Estamos vendo, de fato, um apagão do sistema de identidade. O CPF não é um substituto de um verdadeiro sistema de identidade civil nacional. Espero que, passada essa tempestade, o país crie um novo consenso para uma refundação de seu sistema nacional de identidade. Não estamos nos referindo apenas à adoção de uma nova tecnologia de identificação, mas de uma revisão institucional e legal, começando pela discussão do Direito à Identidade como um direito fundamental.

Notas

[1] Nota Oficial da RFB – https://receita.economia.gov.br/noticias/ascom/2020/abril/receita-federal-vai-regularizar-cpfs-com-pendencias-eleitorais-para-efeito-do-pagamento-do-auxilio-emergencial

[2] Lei nº 13.982 de 02/04/2020 – https://legis.senado.leg.br/norma/32045742

[3] Instrução Normativa RFB Nº 1548, de 13 de fevereiro de 2015 – http://normas.receita.fazenda.gov.br/sijut2consulta/link.action?visao=anotado&idAto=61197

[4] Entrevista com o chefe de atendimento ao contribuinte da RFB disponível em https://www.youtube.com/watch?v=l9-HnQBOnmE (a partir de 2:35) acessado em 08.04.2020.

[5] Site da RFB para regularização do CPF: https://servicos.receita.fazenda.gov.br/Servicos/CPF/regularizar/Default.asp

[6] Decreto Federal nº 9.723, de 11 de março de 2019 – http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2019/Decreto/D9723.htm

(*) Especialista em gestão da identidade do cidadão e pesquisador associado do ITS Rio

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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