Opinião
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15 de abril de 2020
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10:30

Repercussões chinesas no quintal dos Estados Unidos (por Robson Coelho Cardoch Valdez)

Por
Sul 21
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“Em um futuro próximo, Brasília terá de se decidir entre seus dois principais parceiros comerciais”. (Reprodução)

Robson Coelho Cardoch Valdez (*)

É sabido que a América Latina é a área de influência regional preferencial dos Estados Unidos. Para muitos analistas, trata-se do quintal dos norte-americanos. Talvez por isso, a região nunca tenha sido tratada pelo Departamento de Estado dos Estados Unidos com a mesma prioridade e atenção que as várias administrações, em Washington, tratam o Oriente Médio, e o extremo oriente. Ainda que em conjunturas diferentes, revoluções políticas e a ação organizada do narcotráfico tenham tirado o sono de diplomatas americanos de tempos em tempos, o fato é que, para os americanos, a região sempre esteve relativamente “sob controle”. Mesmo com a emergência de governos progressistas na região na primeira década desse século, tudo parecia estar realmente “sob controle”. Contudo, no mesmo período a ascensão da China no cenário global repercutiu no quintal americano e hoje é possível perceber que depois de muito tempo, os norte-americanos voltam a se preocupar com a “influência estrangeira” na região.

Antes do início da pandemia, a guerra comercial entre China e Estados Unidos e a assinatura do novo NAFTA já vinham impulsionando o início do reordenamento da planta produtiva mundial, liderado pelo retorno aos Estados Unidos, e possivelmente ao México, de empresas americanas instaladas na China [1]. Adicionalmente, a crise provocada pela corrida dos países em busca de equipamentos hospitalares que são produzidos em território chinês acendeu o alerta, nos Estados Unidos, sobre a necessidade de se pensar a dependência produtiva do país em relação à China. Esses desdobramentos demandarão dos países da região alto grau de sofisticação diplomática para administrar suas relações com as duas potências mundiais, principalmente aqueles que possuem intensas relações comerciais com chineses e americanos [2]. Nesse sentido, assim como países do sudeste asiático, alguns países da América Latina podem se consolidar como opção para que tanto a China como os Estados Unidos atendam mais prontamente as demandas de seus diversificados parques industriais.

Os dados sobre investimentos e empréstimos chineses na América Latina mostram que a relação dos países da região com China e Estados Unidos tendem a alcançar um inédito patamar de complexidade.

Até 2009, o investimento estrangeiro chinês anual na América Latina e Caribe não alcançava a cifra de US$ 5 bilhões. No ano seguinte esse valor saltou para US$ 25.3 bilhões. Já em 2017 a soma desses valoras totalizava US$ 75.3 bilhões. Nesse mesmo ano, os investimentos de europeus e norte-americanos respondiam por 65% do total de investimento estrangeiro direto na região, sendo que os Estados Unidos, sozinhos, eram responsáveis por 28,1% dos investimentos. No quesito fusões e aquisições, a China foi o maior país investidor na região respondendo por 42% do total, o equivalente a US$ 18 bilhões [3].

 

A atuação do China Development Bank e do Export-Import Bank of China atingiram a marca de 94 empréstimos na região totalizando a soma de US$ 138,45 bilhões no período 2005-2019, superando o total de empréstimos contratados pelo Banco Mundial, BID e pelo Ex-Im Bank dos Estados Unidos. Os principais setores contemplados foram infraestrutura US$ 26,8 bilhões; Energia US$ 91,9 bilhões; Mineração US$ 2,1 bilhões; e demais setores US$ 16,2 bilhões.

 

No que diz respeito à geopolítica, os dados acima lançam luz sobre a intrincada relação política e econômica da China com a Venezuela e seus efeitos de transbordamento sobre a agenda externa da região como um todo. Nesse sentido, o alinhamento automático do governo brasileiro com a política externa norte-americana dá à China o status de ator com significativo contrapeso à tradicional influência dos Estados Unidos na América Latina.

Em que pese a complexidade econômica e política da Venezuela, o governo chinês já declarou sua oposição às sanções americanas ao governo de Maduro que vem honrando suas dívidas com Beijing por meio da exportação de petróleo em Yuan, facilitando, por parte do governo em Caracas, a aquisição de títulos da dívida pública chinesa [4]. A China é, hoje, o parceiro mais estratégico para o governo venezuelano. Caracas que já vinha importando da China, desde abril do ano passado, 40% dos alimentos que são distribuídos pelas redes estatais, tem contado com a ajuda do governo chinês para fazer frente à pandemia do novo coronavírus.

Enquanto os Estados Unidos pressionam o governo venezuelano por meio de sua presença no Mar do Caribe [5] sugerindo que uma intervenção militar consolida-se como opção cada vez mais real, o governo brasileiro, apesar de apoiar tal estratégia, sabe que na prática o eventual apoio brasileiro é limitado [6] e não pode ser nada além de um discurso político vago em favor do “restabelecimento da democracia venezuelana”. Em tempos de pandemia mundial a China, que é o principal parceiro comercial do Brasil e fornecedor mundial de equipamentos médicos para fazer frente aos desafios impostos pelo novo coronavírus, tem todos os motivos para se opor a qualquer tipo de intervenção militar e troca de regime na Venezuela que não garanta a manutenção ou retorno de tudo que já foi investido nesse país. Ou seja, antes de qualquer intervenção militar na Venezuela é preciso falar com os chineses!

Por fim, a batalha comercial entre China e Estados Unidos sobre a implantação da tecnologia 5G na Europa chegou à região mobilizando as diplomacias argentina, mexicana e brasileira [7]. Nesse mercado estratégico, a gigante chinesa vem desbancando com facilidade a sueca Ericsson e a finlandesa Nokia no quesito preço [8]. De acordo com o China Daily, a Huawei lidera o mercado mundial 5G com 91 contratos (47 na Europa, 27 na Ásia e 17 em outras regiões do planeta), em seguida tem-se a Ericsson com 81 contratos e a Nokia com 67 contratos [9]. Assim, enquanto o governo americano acusa a Huawey de utilizar sua tecnologia 5G em atividades de espionagem, Trump já reforçou suas desconfianças e preocupações em relação à implantação da rede 5G no Brasil pela empresa chinesa, o que poderia comprometer o pretendido adensamento da cooperação Brasil-Estados Unidos na área da defesa [10]. Por enquanto, o governo brasileiro busca esquivar-se da disputa envolvendo Washington e Beijing. Mas, em um futuro próximo, Brasília terá de se decidir entre seus dois principais parceiros comerciais e administrar os prováveis efeitos colaterais decorrentes dessa decisão.

Percebe-se que essa nova dinâmica geopolítica na região demandará, nos próximos anos, um olhar mais atento de Washington que, após anos de indiferença, vê o seu quintal desfigurado pela inserção chinesa na região.

(*) Analista-Pesquisador de Relações e Assuntos Internacionais da Secretaria de Planejamento do Estado do Rio Grande do Sul. Pós-Doutorando em Relações Internacionais (IREL/UnB). Doutor em Estudos Estratégicos Internacionais (UFRGS).

Notas

[1] Ver Exclusive: Venezuela in talks with China over support amid pandemic, oil price drop – sources. https://www.reuters.com/article/us-health-coronavirus-venezuela-china-ex/exclusive-venezuela-in-talks-with-china-over-support-amid-pandemic-oil-price-drop-sources-idUSKBN21C2LB. Acessado em 11/04/2020.

[2] Ver US sends warships to Caribbean to stop illegal drugs. https://www.bbc.com/news/world-latin-america-52133500. Acessado em 11/04/2020.

[3] Ver How Brazil’s Bolsonaro’s Effort to Bolster Bilateral Cooperation Led to Coronavirus Contamination. Disponível em: https://nationalinterest.org/feature/how-brazils-bolsonaros-effort-bolster-bilateral-cooperation-led-coronavirus-contamination Acessado em 11/04/2020.

[4] Ver Huawei Heads South-The Battle Over 5G Comes to Latin America. Disponível em: https://www.foreignaffairs.com/articles/brazil/2019-05-10/huawei-heads-south. Acessado em 11/04/2020.

[5] Ver Brazilian 5G: The Next Battleground in the U.S.-China Standoff. Disponível em: https://www.americasquarterly.org/content/brazils-5g-next-battleground-us-china-stand. Acessado em 11/04/2020.

[6] Ver Huawei secures most 5G contracts around world. Disponível em: https://global.chinadaily.com.cn/a/202002/22/WS5e50491ea3101282172796b9.html. Acessado em 11/04/2020.

[7] Ver U.S. warns Brazil about Huawei and 5G in talks: senior U.S. oficial. Disponível em: https://www.reuters.com/article/us-usa-brazil-huawei-tech/u-s-warns-brazil-about-huawei-and-5g-in-talks-senior-u-s-official-idUSKCN1QZ2IK. Acessado em 11/04/2020.

[8] Ver Coronavirus Could Be The End Of China As A Global Manufacturing Hub. Disponível em: https://www.forbes.com/sites/kenrapoza/2020/03/01/coronavirus-could-be-the-end-of-china-as-global-manufacturing-hub/#512e92555298. Acessado em 11/04/2020.

[9] Ver Phase one agreement aside, could the trade war future mean choosing China or the US? Disponível em: https://www.dw.com/en/us-china-trade-war-phase-one-deal/a-52003036. Acessado em 11/04/2020.

[10] Ver China Power. Disponível em: https://chinapower.csis.org/china-foreign-direct-investment/ Acessado em 11/04/2020.

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