Opinião
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2 de abril de 2020
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19:06

Quem deveria ser responsável pelas dívidas que adquirimos com o coronavírus? (por Jorge Barcellos)

Por
Sul 21
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 Foto: Luiza Castro/Sul21

Jorge Barcellos (*)

Transportemos a pergunta de abertura da obra “O governo do homem endividado”, de Maurízio Lazzarato (n-1 edições, 2017), para os tempos atuais: o que acontece ao homem endividado na crise do coronavírus? O que significa o fato de que pequenos empresários e cidadãos são obrigados a se endividar para se manter durante a pandemia? Vemos por todo o lado bancos aumentarem sem pedirmos nosso limite de cheque especial e abrirem novas linhas de crédito para empréstimos para pagar depois. Uma coisa é certa: iremos no libertar do coronavírus, mas não iremos nos libertar dos bancos. O fim do coronavírus não nos libertará dos impostos ou dívidas acumuladas, apenas as atrasará. Pior: com a crise do coronavírus, entendo que uma nova expropriação está em curso que poderá levar a uma nova concentração de riqueza. Conhecemos esta história: em momentos de crise, a apropriação econômica faz disparar os rendimentos das elites econômicas e os pequenos comerciantes já começam a pensar nas linhas de crédito oferecidas pelos bancos, enquanto que agências abrem para os idosos em horários especiais para não expô-los ao coronavírus.

Se não aprendermos a grande lição do coronavírus de que é preciso ser solidário e investir em proteção social, as políticas de austeridade em andamento serão interrompidas apenas para retornarem com mais força após a crise. A dilatação do pagamento dos impostos não significa isenção, significa que serão pagos depois em um contexto de inadimplência promovido pelo desemprego. Não nos questionamos sobre o papel e a função de taxas e tributos nas catástrofes, apenas sabemos que os capitalistas sabem muito bem que a tragédia é ótima para os negócios, que tem um papel de avalanca das estratégias de acumulação capitalistas, isto é, são matéria de base para reinvestimento do capital da esfera privada.

Veja-se a maldade que se esconde na bondade: não se fala em extinção de tributos, de isenção de taxas, mas da sua prorrogação. “Ficou devendo para a CORSAN? Não se preocupe, pague depois!” Mas a questão é que a calamidade é pública, não privada. As regras de exceção só valem para a cidadania, nunca para o capital, simplesmente porque não há exceção à regra do lucro. Nenhuma palavra sobre redistribuir riqueza acumulada para os desassistidos das políticas sociais, as vítimas previstas pelo coronavírus pela falta de quaisquer condições de lavar a mão com água e sabonete são uma fatalidade individual pois os pobres não possuem nenhum destes recursos que o Estado deveria fornecer coletivamente mas não o faz.

Lazzarato diz que no capitalismo a apropriação se exerce mediante a ação de um aparelho de captura de três cabeças: lucro, renda e imposto. “Aparelho de captura” é um termo é inspirado na obra “Mil Platôs’, de Gilles Deleuze e Felix Guattari, pensadores cuja obra ficou conhecida como reação ao economicismo marxista e cujo pensamento redefine os fluxos do capital. Nessa concepção, quando o capital não consegue mais sugar a produtividade da sociedade, como na crise do coronavírus, ele cria “opções de endividamento”, reorganiza suas estruturas de captura, “o capitalismo é de maneira indissociável um modo de produção e um modo de predação” (p.36). Mas a crise não vem apenas para intervir no momento em que ele não consegue mais garantir a predação, como afirma Lazzarato: o que observamos é que a crise do coronavírus a reorganiza, agora não é mais o imposto que garante a predação capitalista através do Estado, pois as pessoas não têm mais condições de atendê-lo, e assim, financiar o estado compromissado com o grande capital. Agora, são os juros a serem cobrados sobre os nossos atrasos a nova moeda de garantia do capital.

Por outro lado, as políticas de austeridade assumem nova forma: não se trata mais de reduzir recursos mas de limitar investimentos. O governo sempre defendeu os cortes no orçamento, reorganizou as finanças mas não tinha expectativa de uma crise como a do coronavírus. A opção é impor limites de gastos e investimentos na sua contenção “não temos como testar a população brasileira contra o vírus” diz o representante do governo quando a prática é levada a efeito por outros países; “não temos como ampliar a estrutura física de hospitais” e, portanto “devemos manter o coronavírus sob controle com as condições atuais” - o que é uma piada de mau gosto, já que o vírus é incontrolável e os leitos de hospital são limitados. Já se vê em andamento uma tentativa de confiscar os salários dos servidores públicos, num esforço que se assemelha ao que Lazzarato critica nos países europeus. O governo silencia sobre privatizações porque agora é a hora que a sociedade exige “mais estado”, mas nada impede, entretanto, que já se possa prever o abandono de empresas privadas responsáveis por funções de estado pela incapacidade de seus trabalhadores de manterem o serviço contratado.

Lazzarato afirma que o capitalismo se desenvolveu muito bem nos períodos de guerra, mas o autor está se referindo a guerra civil para redesenhar suas relações de poder. Agora, com a guerra biológica, a guerra sanitário-militar, a centralidade do capital passa por uma reorientação e o governo já fala na criação de um “orçamento de guerra” que transforma o estado em máquina de guerra contra o vírus, ao mesmo tempo em que se propõe a retirar recursos de seus servidores, do trabalho social, daqueles que estão na frente de batalha como médicos, policiais e servidores públicos indispensáveis em momentos de crise. Percebem o ato criminoso em andamento, de retirar as condições de trabalho daqueles que tem o dever de trabalhar? Que tipo de estado é esse que propõe isso? Resposta: um estado que prefere tirar dinheiro do médico do que do capitalista. Sob o discurso de que “Todos têm de ajudar a superar a crise” o governo protege o capital, seu silêncio sobre cobranças ao grande capital, aos grandes financistas e banqueiros é insurdecedor. Os bancos vão doar dinheiro para a crise? Não, vão abrir linhas de financiamento para apanhar em seu meio os novos endividados. O estado está preocupado em cobrar deles a responsabilidade social pelo que arrecadam? Não, ninguém pensa em devolver o capital expropriado pelos bancos e nem sequer passa pela cabeça dos grandes bancos doarem milhões, apenas abrir uma hora antes!

Do outro lado, ONGs, críticos e esquerda propõem um novo estado de bem-estar social baseado na criação de inúmeras bolsas e formas de apoio aos mais pobres. O governo, é claro, adiantou-se, mas de forma pornográfica - que não merecia ser vista - já que ofereceu singelos R$ 200 para cada pessoa prejudicada. Vale lembrar que nos estados unidos o governo irá mandar um cheque de 1.000 dólares ou mais de quatro mil reais e que o Presidente da Câmara Rodrigo Maia promete um auxilio de um salário mínimo. Conseguirá? Por que o governo não propõe uma auxilio inscrito na dívida pública, isto é, que o Estado isenta de pagamento? Isso não interessa porque o objetivo justamente é transformar cada vítima do coronavírus em….endividado! Matéria de Antônio Temóteo para Economia do UOL afirma que os bancos prometem ajuda, mas dobram os juros e seguram o dinheiro (Economia, 26/03/2020). As taxas de empréstimos, segundo empresários ouvidos pelo jornalista foram aumentadas “até empresas de infraestrutura de internet, que precisam ampliar os serviços para atender a nova demanda de home Office, não conseguem dinheiro. O crédito para investimentos, segundo relatos, teve alta de dois pontos percentuais. Em outras operações, os juros mais do que dobraram”.

Para aqueles que precisam de dinheiro a vista para honrar compromissos é pior porque a antecipação de recebíveis teve sua taxa mais do que dobrada. Para o banco antecipar dinheiro dos cartões de crédito, que demoram a chegar, ele cobra e muito “a gente sente que os bancos estão represando dinheiro e cobrando caro por ele. (Os juros subiram duas vezes e meia em relação ao que cobravam antes (da pandemia de coronavirus) declarou Tulio Oliveira, Vice-presidente do Mercado Pago, ouvido pela reportagem. Quer dizer, os bancos foram auxiliados pelo estado com recursos na ordem de milhões mas não estão fazendo esses recursos chegarem à ponta. Segundo a reportagem, os bancos nunca tiveram problema de liquidez, e mesmo assim, o governo ajudou. Agora, eles lucram mais, a começar pelas linhas de capital de giro, que estão com juros maiores e prazos menores de pagamento, caindo de 180 para 60 dias, e as taxas, de 0,47% pra 1%.

O problema é que na crise, todos são culpados, menos os banqueiros e financistas, diz Lazzarato. Assim, que está mais colaborando para a ampliação da crise não são os doentes ou empreendedores em crise, é a elite financeira que não cogita em reformar sua política de juros, mas ao contrário, quer ampliá-la a exaustão. Oferecem novos serviços na crise? Não passa de cinismo de classe, o mesmo cinismo que é assumido pelo governo quando auxilia os bancos em proporção geométrica, enquanto direciona recursos para a pandemia em proporção aritmética. Oferecem alguma doação? Nem se compara aos seus lucros exorbitantes. E as relações entre o Estado e as finanças tornam impossível qualquer mudança nos termos da equação, que seria, resumindo, a redução e confisco dos lucros dos bancos. Por que não considerar esses empréstimos aos pobres não como dívida privada, mas dívida pública, torná-la parte da dívida do estado, não paga-la individualmente, mas por meio dos impostos, das grandes fortunas, da tributação sobre o lucro dos grandes bancos? Porque na pandemia ninguém é culpado de necessitar recursos, é a vida humana que está em jogo, bem garantido pela Constituição, uma divida coletiva e não individual que cabe ao Estado reconhecer: é o Estado que não tem condições de garantir a sobrevivência de cada um e que implicitamente, deve assumir a responsabilidade deste ônus.

Precisamos de mais estado e não menos como defendem os neoliberais. E alguns deles sabem disso e estão vindo a público. É preciso colocar a verdadeira questão: precisamos de um Estado que assuma suas responsabilidades com nossos empréstimos, que tenha o papel de intervir junto ao grande capital e não - como está propondo pornograficamente - retirar o dinheiro dos servidores público, que já vinham amargando o pão que o diabo amassou. Como irá sobreviver o morador de periferias se não lhe for concedido um auxílio? Como irá sobreviver o servidor público se lhe for retirado 50% do salário? Porque não buscar outra alternativa ao apoio do estado, exceto quando se trata do ridículo de R$ 200,00? Pois se trata de considerar culpado o morador de favela por algo que é vítima, sua pobreza, sua exclusão, promovida por um estado a serviço da capital, se trata de considerar culpado o servidor público de carreira por algo que contratou com o Estado, nunca é o capital. O indivíduo se endivida por uma causa natural, o coronavírus, o servidor de frente do combate já não tem os insumos que precisa e o estado pretende lhe reduzir o salário. Isto é justo? Não! A necessidade de sobreviver sem emprego só acontece porque o estado foi incapaz de promover o salário - social, reduziu benefícios sociais em nome da política de austeridade.

Lazzarato afirma que essa construção de significados é uma espécie de memória, “memória da crise”, memória da dívida que não é construída para indivíduos, mas para povos inteiros. É com base nela que medidas como confisco são justificadas, como é o caso agora da proposta de taxação de 25% dos salários dos servidores públicos Isso significa que o Estado compartilha com o sistema financeiro também um nível de violência econômica e discursiva, pelo isolamento de sua responsabilidade na sua geração, pelo total apoio que dá a ideologia de mercado e pelo auxílio na construção de uma memória da dívida que responsabiliza o cidadão pela realização de empréstimos que tapam o buraco da ausência de politicas públicas.

(*) Historiador, Mestre e Doutor em Educação. Autor de O Tribunal de Contas e a Educação Municipal (Editora Fi, 2017) e “A impossibilidade do real: introdução ao pensamento de Jean Baudrillard (Editora Homo Plásticus,2018, é colaborador de Sul21, Le Monde Diplomatique Brasil, Jornal do Brasil, Folha de São Paulo e do Jornal O Estado de Direito. Mantém a página jorgebarcellos.pro.br.  

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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