Opinião
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10 de abril de 2020
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11:26

Os limites do Bolsonarismo (por Matheus Lock)

Por
Sul 21
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Os limites do Bolsonarismo (por Matheus Lock)
Os limites do Bolsonarismo (por Matheus Lock)
Jair Bolsonaro (Foto: Carolina Antunes/Presidência da República)

Matheus Lock (*) 

Assim como outras epidemias que assolaram a humanidade, o Covid-19 expõe às claras muitos dos limites das nossas formas de organização social. Um dos seus principais efeitos consiste em mostrar o limite da lógica política do populismo de direita contemporâneo. No mundo inteiro testemunhamos uma mudança paradigmática na posição inicialmente negacionista de líderes de direita como Trump, Boris Johnson, Narendra Modi, Orbán e Putin, para posições de aparente sobriedade para lidar com a crise generalizada trazida pelo coronavírus. Essa mudança foi uma obrigação pragmática da realpolitik que viu na possibilidade da morte aos milhares uma perda abissal de capital político. De outro modo, muitos desses líderes provavelmente não abririam mão da defesa da economia em detrimento da vida das populações que governam.

No Brasil, entretanto, os efeitos do Covid não foram capazes de forçar uma guinada na abordagem de Bolsonaro, mas deixaram expostos os limites da sua lógica de fazer política. Há muito se discute que Bolsonaro, contrariando a lógica, se estabeleceu como um outsider do sistema político mesmo tendo uma longa carreira nas margens quase esquecidas do congresso. Durante o caos político instaurado nos anos pós-impeachment, Bolsonaro conseguiu coadunar em torno de si medos, esperanças e ódios ao PT, e à esquerda como um todo, ao balancear em seu discurso uma série de questões caras a diversos setores sociais. Entre os principais eixos que o Bolsonarismo articula para formar seu discurso político estão a segurança (que mexe com estética do medo onipresente nos principais veículos de comunicação), família (defesa constante de valores conservadores e obediência de sua hierarquia em face a uma pretensa decadência moral da sociedade), religião (que coloca a fé acima de tudo), nacionalismo (ufanismo que define um povo com uma tradição e história específicas que devem ser respeitadas e restauradas), mercado (conversão recente ao neoliberalismo para atrair o “grande capital”), retidão moral (uso do chavão anticorrupção para angariar apoio do lavajatismo mesmo estando enredado com as milícias cariocas, rachadinhas e laranjais) e anti-esquerdismo (tendência mundial de combate ao avanço do socialismo e do chamado Marxismo cultural). Somados a esses eixos temáticos estão ainda outros vetores comuns à extrema-direita contemporânea, como por exemplo, o uso de teorias da conspiração como pano de fundo de construção narrativa da realidade, o posicionamento antissistêmico como se a mão invisível de uma elite liberal esquerdista conspirasse para a dominação mundial, e anti-intelectualismo e anticientificismo que rejeita dados científicos colocando-os como parte da conspiração para acabar com o capitalismo a família, a religião e mesmo com a civilização ocidental branca.

Por meio da articulação desses eixos temáticos, Bolsonaro conseguiu se tornar o representantes dessas demandas e instituir um novo vínculo social libidinal onde ele se posta como o líder forte e protetor, uma espécie de pai edipiano. [1] Ele foi alçado ao status de “mito” salvador da Pátria, concentrando em sua persona tanto um mal-estar com os sistemas políticos como o desejo repressão à violência, castração da justiça social e a restauração de valores tradicionais. Bolsonaro se tornou um dos principais capitães da política do ressentimento. [2] Como diria Ernesto Laclau, [3] seu discurso populista gerou um processo de identificação coletiva, onde, por um lado, seus seguidores projetam nele suas particularidades (crenças, ansiedades, medos, esperanças, antipetismo), e, por outro,  transforma a personalidade de Bolsonaro pois tal identificação e representação implica necessariamente no apagamento de algumas de suas particularidades mais deploráveis (racismo, xenofobia, misoginia e assim por diante).

No entanto, a linha que amarra ao mesmo tempo que propulsiona o Bolsonarismo como lógica populista é o antagonismo. É através do antagonismo que Bolsonaro conseguiu estabelecer uma forte fronteira tanto externa entre ele e os inimigos, sejam esses o PT, o sistema, os corruptos ou mídia golpista, quanto interna entre os grupos de apoiadores, delimitando suas diferenças, semelhanças, objetivos, demandas e alvos. É o antagonismo que, como movimento de luta, se faz processo de identificação capaz mobilizar afetos e desejos ao ponto de criar um vínculo quase indestrutível entre Bolsonaro e seus seguidores mais fiéis. É o antagonismo que dá o sentido de união pela satisfação de experimentar a comunhão na violação do inimigo e pelo prazer trazido pelo risco da sua própria dissolução numa batalha perdida, ou seja, sua morte. O bond está no anseio e no prazer da morte, seja a do outro ou a sua própria.

Essa lógica de construção populista funcionou muito bem durante a campanha em 2018. Bolsonaro se elegeu com cerca de 57 milhões de votos, confortável maioria nas duas casas e sem uma oposição suficientemente articulada. Contava com o apoio de três setores fundamentais, os defensores da Lava Jato, o “mercado” e os militares, galvanizados pelas escolha de Sério Moro e Paulo Guedes como superministros e Mourão como vice-presidente. Além disso, conseguiu obter vasto apoio das bancadas evangélicas, da bala e ruralista. Bolsonaro tinha a conjuntura ideal num início de governo para implementar suas políticas e projetos de transformação social, caso existissem. No entanto, Bolsonaro naturalizou e institucionalizou sua lógica populista num modus operandi que advoga somente ideias de extrema-direita e funciona fundamentalmente por antagonismo. Desde o início ficou claro que seu populismo não possuía nenhuma proposta de transformação sistêmica ou mesmo de melhorias de governança, tampouco projeto de poder político, mas apenas o objetivo de estabelecer uma nova hegemonia ideológica no Brasil disfarçada de superioridade moral não ideológica.

É dado que construir um projeto de poder e de governo requer mais do que o apoio das urnas, demanda principalmente vontade e compromisso para costurar alianças com vários setores que deem margem de manobra para a implementação de políticas públicas. Porém, por não ter um projeto de poder, o Bolsonarismo terceirizou a condução do governo ao lavajatismo punitivista de Moro, ao neoliberalismo privatizador de Guedes e a organização estrutural conservadora dos militares, guardando para si apenas aquilo que sua lógica populista beligerante permite: o constante antagonismo com inimigos imaginários e mobilização dos afetos para sua política de Estado Suicidário, como bem argumentou Vladmir Safatle. [4] Em poucos meses dessa lógica política, Bolsonaro esgotou os inimigos a combater e se voltou contra aqueles até então tidos como aliados, incluindo os da casernas, como Mourão e Santos Cruz. Em pouco mais de um ano no poder, Bolsonaro conseguiu a façanha de deteriorar quase todo apoio que tinha, perdendo a liderança tanto para seus ministros quanto para o congresso, responsável pela costura a aprovação de reformas espinhosas. De certa forma, essa lógica do antagonismo isenta Bolsonaro de tomar decisões que podem prejudicar sua base ideológica mais dura, colocando assim toda a . responsabilidade no colo de seus inimigos ou possíveis concorrentes, ao passo que o permite postar-se como vítima de conluio que o impede de governar.

Quando a pandemia aportou em nosso país, Bolsonaro fez a única coisa possível do seu escopo de ação: saiu ao ataque argumentando que uma gripezinha não poderia parar o país. Sem dúvida essa postura leva em conta a realpolitik, pois se a economia vai mal, um dos seus principais fiadores no pleito de 2018, o mercado, se afasta. Além do mais, o mote mercado ou morte não é novidade, por isso presidentes de distintos matizes ideológicos adotaram semelhante postura; o contrário seria surpreendente. Seguindo sua lógica política beligerante, Bolsonaro decidiu não só contrariar orientações da OMS e de seu ministério da saúde, mas antagonizou com a ciência, difundiu notícias falsas, teorias da conspiração e potenciais curas não comprovadas. De Trump a Amlo, diversos outros líderes adotaram postura parecida, porém mudaram-na quando o Covid-19 se mostrou muito mais perigoso do que o esperado. E, ao invés de abraçar de vez o dicionário Maquiaveliano do Beabá do tirano, tomar a liderança no combate à pandemia e dar vazão ao seus instintos totalitários, como feito por Orbán, a postura negacionista de Bolsonaro fez com que admitisse e assumisse sua posição de presidente não-presidente. Ou como Bruno Torturra muito sagazmente colocou, postura de antipresidente.

Essa beligerância institucional fez com Bolsonaro inevitavelmente entrasse em rota de colisão com seu ministro da saúde, perdendo de vez o pouco de apoio que lhe restava junto ao congresso e parte dos militares. Essa postura de antipresidente lhe rendeu não somente aumento de seu isolamento político e perda quase completa da capacidade de governar, mas também de capital político junto à população: pesquisas apontam para aumento da rejeição em todas as camadas sociais, menos junto a seus mais fiéis seguidores. Essa conjuntura de crise trouxe novamente para os corredores do congresso e para as manchetes especulações sobre possíveis rotas para a saída de Bolsonaro. Pois como já diria Wright Mills no seu The Power Elite, [5] um regime que perde apoio das camadas populares somente se sustenta pela articulação e apoio da tríade da elite econômica, política e militar; no caso de Bolsonaro, tudo parece ruir ao sabor da sua intolerância. De impeachment ao deslocamento do governo na figura de Braga Neto, diversas são as alternativas especuladas para a condução do país em tempos de pandemia. Outra alternativa cogitada é a renúncia, algo de difícil plausibilidade devido a própria persona voluntarista de Bolsonaro: renunciar seria admitir seu fracasso e romper com a mitologia do mito. Melhor cair “lutando” do que sair pela porta dos fundos com o rabo entre as pernas, como diria um velho capitão tornado político. Somente lutando o mito se faz perene e mantém sua capacidade de mobilização dos afetos.

E é exatamente aqui que o Coronavírus expõe os limites da lógica Bolsonarista. Antes da pandemia Bolsonaro usava sua lógica do antagonismo populista para testar os limites dos domínios das forças em disputas em cada nova situação, avançando ou retrocedendo conforme o barulhos das redes digitais ou de seus aliados. Usando uma metáfora corrente em algumas análises políticas, era como se Bolsonaro e seu núcleo ideológico estivessem constantemente aumentando suas apostas no poker político, pagando pra ver as reações da mesa para, assim, calcular possíveis ações. [6] No entanto, com o aumento do seu isolamento político devido ao Covid-19, essa estratégia fez água. Não só perdeu a liderança da crise para seu ministro, mas também a capacidade de demiti-lo.

Acuado e sem fiadores para manutenção do governo, Bolsonaro auto-realizou sua própria profecia de que todos queriam sua cabeça e agora sobe a aposta numa espécie de all-in irreversível que só se sustenta enquanto o caos gerado pela pandemia continuar. Contrário à lógica da própria política, Bolsonaro aumenta a aposta como forma de sobrevivência, pois cada antagonismo é uma maneira de estender os limites da identidade do Bolsonarismo, ou seja, de manter viva uma identidade fundamenta não necessariamente nas demandas que articula, mas no movimento de antagonismo beligerante que só pode se afirmar enquanto tal na medida que inimigos existam, na medida que encara a sua própria morte assim como a de todos que assistem esse jogo alucinado de poker. Ou seja, a sobrevivência do mito só se dá na autorealização de sua essência na profecia de combate ao Grande Outro. Por isso aumentar a aposta é a própria razão de ser do Bolsonarismo. Mas foi só com o Coronavírus que ficou claro aos olhos do mundo que Bolsonaro usa a lógica do poker para jogar o xadrez político. Seu blefe se esvaziou, e seus cavalos, bispos e torres silenciosamente mudaram de lado. Seu all-in hoje cheira a xeque-mate às avessas.

Se os limites da lógica populista de extrema-direita de Bolsonaro ficaram expostos e se mostraram insuficientes para governar em qualquer momento, quem dirá em tempos de crise, fica ainda em aberto o resultado desse “último round”. Caso os efeitos do Corona sejam menos perniciosos para a vida e mais para a economia, Bolsonaro usará do velho “eu falei” e poderá capitalizar politicamente nas ruínas da economia e miséria, mobilizar seu séquito e levar à condução final ao que Safatle chamou de República Suicidária. Se o número de vidas cobrado pela pandemia no país for o que especialistas predizem, Bolsonaro ficará invariavelmente isolado tornando-se ou um alvo móvel para os atiradores do impeachment, ou um espantalho presidencial, cujo governo ficará a cargo de um misto entre parlamentarismo branco e militarismo constitucional. Parecem que restam poucos movimentos nesse complexo xadrez político. Resta saber se a autodestruição aparentemente inevitável da lógica Bolsonarista levará todos de arrasto ou então saber que tipo de xeque-mate lhe será dado.

Notas

[1] Sigmund Freud, Group Psychology and the Analysis of the Ego (London: The Hogarth Press, 1949).

[2] Para um discussão sofisticada sobre política do ressentimento, ver Wendy Brown, Nas Ruínas Do Neoliberalismo: A Ascensão Da Política Antidemocrática No Ocidente (São Paulo: Editora Politeia, 2019).

[3] Ernesto Laclau, On Populist Reason (London: Verso, 2005).

[4] Vladimir Safatle, “Bem Vindo Ao Estado Suicidário,” N-1 Edições (São Paulo, 2020), https://n- 1edicoes.org/004

[5] C. Wright Mills, The Power Elite (New York: Oxford University Press, 2000).

[6] Fábio Bittes Terra, Cláudio Couto, and João Villaverde, “Bolsonaro e a Política Do ‘All in’: Estratégia de Confronto,” Nexo, 2020.

(*) Doutor em ciências políticas pela Queen Mary University of London e especializado em política brasileira.

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