Opinião
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12 de abril de 2020
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14:20

O imaginário bolsonarista em rede: desinformação em tempos de pandemia (por Fernando de Figueiredo Balieiro)

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Sul 21
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O imaginário bolsonarista em rede: desinformação em tempos de pandemia (por Fernando de Figueiredo Balieiro)
O imaginário bolsonarista em rede: desinformação em tempos de pandemia (por Fernando de Figueiredo Balieiro)
Jair Bolsonaro | Foto: Reprodução/TV Globo

Fernando de Figueiredo Balieiro (*)

Mais de uma centena de milhares de mortes pelo novo coronavírus em pouco mais de três meses transformou a realidade e a vida cotidiana em todo o mundo. Em contraste com discursos públicos proferidos por líderes mundiais, destoa o comportamento aparentemente errático do Presidente da República brasileira. Em variadas situações minorou a ameaça do COVID-19 e, em diversas ocasiões, se opôs às políticas que vêm se tornando consensuais em países atingidos pela pandemia, sob as orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS).

Nos cinco pronunciamentos presidenciais consecutivos exibidos na televisão até o momento, seu posicionamento ziguezagueante reconhece a seriedade da pandemia e, em seguida, censura suposta “histeria” da mídia e direciona críticas incisivas aos governadores e prefeitos que teriam feito da situação “terra arrasada” ao promover o distanciamento social. O central e persistente em seu argumento é a oposição entre o risco da pandemia e as consequências econômicas de seu enfrentamento, enfatizando como problema maior o isolamento social. No último dos pronunciamentos, manifestou pesar pelas vidas ceifadas pela pandemia, mas sua preocupação não o levou a afirmar a necessidade de isolamento, antes apresentou como panaceia um remédio ainda sob estudo para a especificidade da doença, a cloroquina. Ainda que possam ser revelados resultados nos tratamentos, o discurso presidencial surpreende ao sugerir como simples solução que a medicação seja alternativa às medidas de controle epidemiológico.

As contradições no discurso se amplificam se levarmos em conta as formas de comunicação direta do presidente em suas aparições públicas. Reproduzidas nas diversas mídias, elas divergem das próprias recomendações do seu Ministério da Saúde, seja fomentando aglomerações a seu redor ou posando para fotografias em proximidade com apoiadores nas ruas. Para além do risco individual, dado seu papel de liderança e destaque nas mídias, a postura presidencial serve de contra-exemplo às medidas de contenção da propagação do vírus. O que propulsiona essa postura esquiva ao isolamento que beira o negacionismo das prescrições médicas em um contexto no qual os diversos líderes mundiais se empenham em reconhecer em enfrentar a ameaça?

Tudo leva a crer que sua postura esteja baseada na estratégia política de acentuar a divisão ideológica que tem mobilizado o governo desde sua eleição e reforçar seu apoio entre os convertidos. Em nosso país, a pandemia não atenuou a polarização em prol da união nacional, mas a reforçou. Bolsonaro se opôs de forma contundente a governadores e prefeitos que buscaram enfrentar a pandemia, seguindo recomendações internacionais, pelo isolamento social e, pela mesma razão, desferiu críticas a seu próprio ministro e à política dirigida pela equipe técnica do Ministério da Saúde. Buscou assim manter sua base de apoio entre parcela do empresariado que o elegeu, desvinculando-se das consequências negativas previstas pela paralisação das atividades econômicas que poderiam comprometer suas promessas de campanha de retomada do crescimento sob a égide de sua política liberalizante.

De forma articulada com as declarações do presidente, reforçam o coro parte do núcleo de seu governo, como o Ministro da Educação e integrantes do primeiro escalão que participam ativamente das plataformas de redes sociais. Além deles, os filhos do presidente, influenciadores digitais e jornalistas alinhados ao governo e alguns pastores evangélicos influentes nas mídias. Todos eles veem, nas posições divergentes, adversários com objetivos escusos que estariam lutando para sabotar o país. Subjacente à retórica propalada por sua base digital está a afirmação de que tudo que surja do “sistema” é duvidoso, cabendo então recusar as recomendações médicas confiáveis e apostar em saídas inéditas, amadoras e a contrapelo das determinações científicas.

A atitude presidencial encontrou forte oposição, manifestada pela crítica recorrente da mídia, além de expressa nos panelaços espalhados pelas grandes cidades do país. Produziu um resultado político curioso: ao contrário da maioria dos países nos quais a aprovação e confiança no trabalho do presidente cresceu durante a pandemia, em nosso país o presidente perdeu parte de seu apoio. Por aqui quem logrou resultados políticos no combate à pandemia foi seu Ministro da Saúde, contra o qual a rede digital de apoio ao presidente entrou em guerra nas últimas semanas. Contrabalançando a perda de apoio político, ao reforçar diferenças com governadores e prefeitos e representantes do legislativo, o presidente evitou perder adesão entre seus convertidos mais apaixonados. Aderir aos demais seria juntar-se ao “sistema” e, portanto, frustrar seu eleitorado cativo.

A recusa na defesa do isolamento social resultou em isolamento político do presidente, escolha incompreensível para muitos, mas que não decorre simplesmente da idiossincrasia de sua personalidade. Trata-se de uma estratégia mobilizadora, encontrando na internet terreno fértil para difusão de suas ideias. É lá que vemos uma esfera pública cindida entre um setor majoritário que defende os protocolos da OMS para o combate à pandemia e grupos minoritários que veem neste combate motivações puramente políticas ocultas. Nas plataformas de redes sociais vemos surgir uma guerra informacional, na qual toda informação veiculada por órgãos oficiais e a mídia convencional é negada a partir de uma inteligibilidade que enxerga, para além dos fatos e interpretações da pandemia, conspiração. O jornalismo e os jornalistas, de um lado, e os políticos que não se alinham imediatamente a Bolsonaro, de outro, são alvos de ataques recorrentes.

O imaginário bolsonarista, conjunto de ideias e crenças difundidos nas plataformas de redes sociais pelos seus correligionários, vê no surgimento do vírus uma criação arquitetada pelo governo chinês, diante do qual a OMS se transformou em comitê de interesses do país asiático. No acompanhamento diário dos dados da pandemia, sua rede enxerga uma suposta inflação interessada no número de mortes para gerar medo na população. Nas consequências econômicas inevitavelmente negativas da paralisação pelo isolamento social, acusa o interesse da mídia em boicotar o governo ou então em atender a interesses geopolíticos chineses.

Na acepção compartilhada pela rede digital bolsonarista, aqueles que criticam o governo seriam contrários ao uso do remédio indicado pelo presidente, pois ansiariam pelo estrago que as consequências do vírus poderiam trazer para o governo. Os favoráveis ao isolamento seriam grupos privilegiados, com salários garantidos em seu resguardo domiciliar e indiferentes à pobreza e ao desemprego. Pela primeira vez surge uma “pauta social” no governo Bolsonaro e em sua rede digital, a pobreza se torna uma preocupação cujo remédio passa menos pela ação do Estado – que sancionou, ainda que com atraso, uma tímida política de transferência de renda – do que pelo fim do isolamento social e exposição da população pobre ao risco.

A pandemia reforçou em sua rede o que subjaz no âmago do imaginário bolsonarista: nele a figura de Bolsonaro aparece como representante insuspeito dos interesses do povo e contra ele se encontra o “sistema”, todo o conjunto de instituições, partidos e atores políticos que representariam interesses contrários à nação. A princípio, o “sistema” seria identificável na heteróclita ameaça comunista, na esquerda ou no Partido dos Trabalhadores (PT), mas desde o início de seu governo estendeu-se aos demais partidos e também instituições, como a mídia e os outros poderes, o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF), que seus seguidores e o próprio presidente não cansam de contestar. O imaginário bolsonarista trabalha em modo binário: nenhuma aliança é possível em relação àquele que não é espelho de si. Trata-se de uma retórica narcísica e antissistêmica, e é no momento em que uma pandemia nos ameaça que ela revela sua face mais cruel.

Quando a população necessita de informações claras para se proteger da pandemia, somos absorvidos pela desinformação de dentro e de fora do governo. Abundam informações de fontes e conteúdo duvidosos, embora nem todos que as leem possuam as condições, educacionais ou técnicas, para avaliar o que é material aceitável para reflexão, o que é conteúdo de baixa qualidade jornalística e o que é pura manipulação. As mensagens contraditórias do governo e do presidente acentuam o contexto de confusão. De um lado, assistimos às tensões do Presidente e o Ministro da Saúde, com mensagens desencontradas e com notícias recorrentes de ameaça da demissão do segundo. Acrescenta-se a crítica aos governadores e suas equipes que comandam estratégias de controle da pandemia. De outro lado, a desinformação pulula em sua rede de apoio digital. Mensagens chegam do Facebook, Twitter e WhatsApp desacreditando as informações técnicas difundidas pelo próprio Ministério, governos estaduais e prefeituras. A população segue confusa, e questões vitais, como a alternativa entre “ficar em casa” ou “sair para trabalhar”, se transformaram em posição pró e contra Bolsonaro.

Com exceções, a mídia televisiva tem apresentado uma mensagem clara de orientação à população para não sair de casa. No entanto, ela não é homogênea e tampouco a única fonte de informação. Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD) mostra que, ainda em 2017, 74,9% dos domicílios tinham acesso à internet, sendo que desde 2014 o acesso se dá predominantemente via celulares. Em complemento, pesquisa realizada pelo Instituto Data Senado de 2019 aponta que a principal fonte de informação no país é o WhatsApp, seguido da televisão, do YouTube e do Facebook. Vivenciamos assim um ecossistema de informação fragmentado, e é nele que o imaginário bolsonarista tem propagado sua guerra informacional.

Há pouco mais de duas décadas despontavam as primeiras impressões utópicas da internet como um sistema de informação horizontal que promoveria a autonomia dos cidadãos. Hoje temos uma percepção mais crítica. Sabemos que as redes se constituem de forma hierárquica por nódulos de influência que centralizam o debate em grupos fragmentados que tendem a compartilhar as mensagens de seus membros mais influentes. Dentro das plataformas de redes sociais, algoritmos direcionam seus usuários a partir de suas escolhas prévias de navegação, privilegiando conteúdo coincidente com suas próprias convicções, reforçando as chamadas “bolhas de opinião”. Tudo isso tende a construir um terreno refratário ao debate de posições divergentes e que estimula o comportamento de manada. Em termos globais, presenciamos a emergência e manifestação no mundo digital de grupos extremistas de direita e de correntes de negacionismo científico, como os terraplanistas e os movimentos contra a vacinação. Em ambos os casos, unidos em rede esses grupos se sentem encorajados a defender posições antes socialmente rejeitadas. No último de seus livros, Ruptura: a crise da democracia liberal, o teórico da sociedade em rede Manuel Castells afirma: “esse parece ser um dado fundamental na conduta política de nosso tempo. Os cidadãos selecionam as informações que recebem em função de suas convicções, enraizadas nas emoções que sentem”.

Em nosso contexto nacional, marcado pela ampliação do acesso às tecnologias digitais, vemos a propagação da desinformação e do negacionismo em tempos de uma pandemia que ameaça a continuidade de nossas vidas. Há muitas evidências de que a última eleição presidencial de 2018 foi marcada por farta difusão de desinformação pelo WhatsApp. A estratégia não terminou com a eleição do novo presidente. Hoje, presenciamos em tempo real de que modo as correntes de desinformação atuam para confundir a população e desestimular medidas de contenção da pandemia. Entre os posicionamentos supostamente erráticos do presidente divulgados pelas emissoras televisivas, as teorias conspiracionistas nas plataformas de redes sociais pelos bolsonaristas e as mensagens e vídeos que circulam no WhatsApp, temos todo um aparato de desinformação a concorrer com as recomendações técnicas. Enfrentamos divididos e em confronto assistimos o crescimento da pandemia em nosso país.

(*) Professor de Sociologia da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), pesquisador do NEERD – Núcleo de estudos sobre emoções e realidades digitais e do Quereres – Núcleo de Pesquisa em Diferenças, Direitos Humanos e Saúde (UNIFESP).

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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