Opinião
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23 de abril de 2020
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17:12

Nota pública sobre a demissão dos trabalhadores do IMESF (por Conselho Municipal de Saúde)

Por
Sul 21
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Protesto de trabalhadores do IMESF em frente à Prefeitura de Porto Alegre. Foto: Giulia Cassol/Sul21

Conselho Municipal de Saúde de Porto Alegre (*)

O Conselho Municipal de Saúde de Porto Alegre/RS, órgão permanente e deliberativo do Sistema Único de Saúde (SUS), vem a público manifestar-se sobre o anúncio da gestão municipal, feito no dia 14 de abril, em audiência de mediação com os sindicatos da categoria, em relação à extinção do Instituto Municipal de Estratégia de Saúde da Família (IMESF) e sua intenção de demitir os trabalhadores em três etapas, iniciando em abril e finalizando em maio. Anúncio feito mesmo em meio a maior crise sanitária mundial dos últimos 100 anos, causado pela Pandemia do Coronavírus (Covid-19). É estarrecedor que o gestor municipal possa dissociar os efeitos e impactos diretos dessa decisão na rede de atenção à Saúde nesse momento.

Importante retomar a análise retrospectiva do CMS/POA sobre o tema. Desde a década de 1990, este colegiado vem lutando contra a terceirização da SF na capital. Em 2007, houve a assinatura do Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) entre o Ministério Público Federal (MPF), Ministério Público Estadual (MPE) e Ministério Público do Trabalho (MPT), que recomendava ao município abster-se de contratar profissionais para Atenção Básica sem seleção pública e enviar à Câmara Municipal projeto de lei prevendo a admissão de profissionais necessários à rede. Em 2008, o CMS aprovou a resolução nº 37 que definiu a ESF como modelo a ser implementado em toda a Rede de Atenção Primária. No mesmo ano, o colegiado analisou a prestação de contas do Instituto Sollus, que gerenciava a ESF na cidade à época, demonstrando, em relatórios aos órgãos de controle, práticas ilícitas comprovadas em investigações posteriores. Em 2010, o Prefeito recebeu uma notificação recomendatória para se abster de admitir servidores por regime diverso do estatutário, previsto na lei orgânica do município. Ainda, em 2010, a PMPA apresentou uma proposta da criação do IMESF como única saída, desconsiderando os riscos e ilegalidades apontados pelas entidades e a reprovação do CMS/POA.

Em setembro de 2019, o governo municipal anunciou o repasse de 90 unidades de saúde (US) às organizações da sociedade civil (OS), correspondendo às 77 Unidades de Saúde (US) sob responsabilidade direta do IMESF e mais de 20 US vinculadas diretamente à Secretaria Municipal de Saúde (SMS) e gerenciadas por servidores estatutários. Desde então, o CMS/POA e diversas entidades de saúde têm realizado amplo debate e travado uma luta em defesa dos serviços públicos, defendendo que a rede atenção primária, por se caracterizar como serviço essencial, deve estar sob gestão direta da SMS. Foram realizadas audiências públicas, plenárias, debate com universidades e entidades, emitidasrecomendações dos órgãos de controle do Estado à Prefeitura de Porto Alegre (PMPA), além de grande mobilização das comunidades em seus territórios, todas no sentido de reafirmar a relevância pública do trabalho, do vínculo e da referência para a comunidade atendida, desenvolvida na rede de Atenção Primária.

O conselho tem se posicionado através de recomendações ao gestor, e cobrado a necessidade de apresentar uma resposta definitiva para a resolução da situação. Em setembro de 2019, foi encaminhada ao Prefeito Nelson Marchezan Jr uma recomendação que orientava para a absorção, pela Prefeitura, dos profissionais vinculados ao IMESF. Este documento sequer foi respondido pela atual gestão, que insiste em desconsiderar o controle social. Essa recomendação baseou-se na necessidade de estabelecer quadro efetivo e qualificado para a Atenção Primária, com remuneração e demais condições de trabalho que permitam fixar as equipes de saúde da família nas comunidades e em seus territórios.

Após plenária sobre complementaridade no SUS, em outubro de 2019, o colegiado rejeitou, por unanimidade, quaisquer contratos emergenciais com organizações sociais que visassem substituir o serviço prestado pelo IMESF. Nesse sentido, encaminhou o pedido ao MPE de execução da TAC sobre a situação da Atenção Primária. A deliberação foi encaminhada aos gestores e levou em consideração que as ações em saúde desenvolvidas na atenção básica têm caráter de relevância pública e são essenciais à vida das pessoas que mais necessitam – sustentada no decreto 7508 de 2011, que regulamenta a Lei 8080 de 1990, que define a Atenção Básica, Assistência Psicossocial, Urgências e Emergências e Vigilância em Saúde como serviços imprescindíveis e, portanto, como essenciais não podem ser prestados de forma indireta, mediante a participação complementar da iniciativa privada.

Em nota pública de dezembro de 2019, o CMS manifestou seu repúdio ao anúncio da PMPA de terceirização de quase 100 unidades de saúde, representando mais de 60% da Atenção Primária à Saúde da cidade, para a iniciativa privada por meio de um termo de colaboração com a Irmandade Santa Casa, Divina Providência, Instituto de Cardiologia e Associação Hospitalar Vila Nova (AHVN). Na nota, foi emitido alerta para o empresariamento irrestrito da assistência e de um direito humano garantido constitucionalmente. “É inadmissível que uma Secretaria de Saúde que se utiliza do discurso das “evidências científicas” apresente propostas desconsiderando evidências, já amplamente divulgadas no âmbito nacional e internacional, sobre o SUS e sobre a Saúde da Família, desconsiderando os principais atores do campo da saúde pública”.

A pandemia do Covid-19 comprova a necessidade da defesa intransigente do SUS como política de Estado. A rede de Atenção Primária tem um papel fundamental no enfrentamento à pandemia, atendendo cerca de 80% da demanda total dos casos, a vacinação, além da continuidade do atendimento aos principais agravos em saúde, como as doenças crônicas não transmissíveis, o pré-Natal e puericultura e o acompanhamento domiciliar dos grupos de risco para o COVID, além das estratégias de educação em Saúde fundamentais no contexto da pandemia: como as orientações quanto às medidas de higiene e distanciamento social e sua efetividade, que podem garantir a redução de sobrecarga aos prontos atendimentos e hospitais.

O município já vivenciava uma situação caótica no campo da Saúde, com uma cobertura insuficiente de SF de 52%, segundo dados do Ministério da Saúde. Além disso, os indicadores de saúde de Porto Alegre demonstram que a opção adotada pela gestão municipal não tem priorizado o investimento na Atenção Primária. Investimentos que poderiam aumentar o número de US para atender às necessidades crescentes em Saúde, além de priorizar a organização dos componentes da rede de atenção à Saúde de forma abrangente, capilarizada e equânime. O slogan adotado pela gestão de “Mais Saúde menos Estado” revelou uma gestão que desconhece o SUS e que afronta a Constituição (1988) na garantia da Saúde como direito de todos e dever do Estado – com equidade, descentralização, hierarquização e participação através das instâncias do controle social.

No entanto, é alarmante que a PMPA, através da SMS, insista em demitir a força de trabalho especializada para substituir por vínculos precarizados num momento de crise que devasta o mundo inteiro – onde se coloca uma certeza: da importância e essencialidade dos trabalhadores de saúde no enfrentamento à Pandemia. Inclusive, não há garantias de que a força de trabalho existente seja suficiente para a demanda e pressão assistencial sobre o SUS.

Ressalta-se que as equipes de SF são responsáveis por mais de 60% da rede de atenção primária no município, mais de 90% delas estão nos territórios com os piores indicadores sociodemográficos e de saúde, sendo incumbidas pelo cuidado das populações mais vulnerabilizadas. Nesse sentido, o CMS/POA defende a incorporação desses profissionais de saúde sob a contratação direta da SMS, garantindo a continuidade do vínculo, a responsabilidade e a qualidade da assistência prestada, reforçando a importância do investimento de anos na educação permanente e na qualificação dos funcionários públicos do IMESF, sendo todos concursados. O gestor pode e deve, mesmo tendo o IMESF que ser extinto por decisão judicial no STF, incorporar os trabalhadores a uma outra estrutura criada para essa finalidade.

Ratificamos a recomendação conjunta nº 07/2020, do MPF, Ministério Público de Contas/RS e MPT, que indicou a revogação ou cancelamento enquanto vigente o estado de Emergência Nacional de eventuais avisos prévios em curso de funcionários do IMESF, ressalvados casos de demissão por justa causa.

O CMS/POA apela para o senso de razoabilidade do gestor de Porto Alegre, para que prime por um sistema cooperativo e colaborativo entre os diversos envolvidos, tendo em vista o momento de isolamento social e a brutal desigualdade nas comunidades mais carentes, onde está inserida a força de trabalho da atenção primária.

O CMS/POA reafirma sua coerência na defesa e na luta por um Sistema Único de Saúde público, equânime e de qualidade.

(*) Conselho Municipal de Saúde de Porto Alegre. Porto Alegre, 22 de abril de 2020.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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