Opinião
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7 de abril de 2020
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16:30

Federação e capacidades estatais municipais: um debate necessário diante da crise do Coronavírus (por Núcleo de Pesquisa em Gestão Municipal)

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Sul 21
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Federação e capacidades estatais municipais: um debate necessário diante da crise do Coronavírus (por Núcleo de Pesquisa em Gestão Municipal)
Federação e capacidades estatais municipais: um debate necessário diante da crise do Coronavírus (por Núcleo de Pesquisa em Gestão Municipal)
Pacientes buscando atendimento na rede municipal de Saúde, no Posto de saúde Modelo, com sintomas do Coronavírus, em Porto Alegre. Foto: Robson Da Silveira SMS/PMPA

Núcleo de Pesquisa em Gestão Municipal – NupeGem (*)

 O Brasil é uma federação desde 1891, isso significa que há compartilhamento de autonomia e responsabilidades entre os níveis governamentais (união, estados e municípios) desde esse período.

Esse tipo de organização estatal é adotado, geralmente, em países que possuem territórios extensos e precisam lidar com diferenças de composição étnica, linguística, ou mesmo desigualdades regionais, como é o caso do Brasil. Trata-se, portanto, de uma fórmula que busca garantir unidade apesar da diversidade dos atores e regiões que compõem. A autonomia das partes, nesse modelo de divisão territorial do poder, é um atributo fundamental – ou seja, o que dota o federalismo de conteúdo.

No caso brasileiro, a autonomia dos entes federativos é garantida pela Constituição, que lhes atribuiu autonomia para eleger representantes (autonomia política), arrecadar tributos (autonomia fiscal) e gerir o território conforme as demandas da população (autonomia administrativa). Por outro lado, os entes também possuem um conjunto de responsabilidades compartilhadas, entre elas formular, implementar e gerir políticas públicas tais como a educação, a assistência social, a saúde – que hoje está no centro dos esforços de todos os entes federados para lidar com a crise da COVID-19.

Está mais do que evidente – e nosso grupo de pesquisa tem feito parte dessa agenda de discussões – a dependência que os estados e, sobretudo, os municípios de pequeno e médio porte possuem do governo federal para implementar políticas públicas de suas competências. Este fato se comprova diante das desigualdades regionais e das baixas capacidades estatais locais acumuladas historicamente, e que resultaram em falta de fontes orçamentárias, burocracias enxutas e limitadas pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF).

Essa situação fez com que muitos analistas questionassem a capacidade dos municípios para exercerem sua autonomia constitucional. Ou seja, se, na prática, os municípios se mostram uma extensão das decisões do governo federal, onde fica o espaço para a autonomia?

A crise provocada pela COVID-19 que assola o mundo e chega no Brasil recentemente, nos provoca, entre tantas outras questões, essa da dimensão federativa.

Estamos assistindo cotidianamente diante da pandemia, os arroubos do governo federal que orienta ações distintas das oriundas dos órgãos internacionais de saúde, tais como a Organização Mundial da Saúde (OMS). Contrariando o governo federal, os governos locais têm demonstrado que a cláusula pétrea constitucional – que institui o Brasil como uma República Federativa – é mais do que fundamental para lidar com o poder concentrado na União.

Com efeito, no momento que mais necessitamos do Estado, presenciamos os municípios exercendo sua autonomia política e administrativa de forma a garantir que comércios permaneçam fechados e se estabeleça o distanciamento social e, em alguns casos, confinamento em massa, conforme já demonstraram os casos de sucesso internacional. Especialmente, o caso São Paulo, maior metrópole do país, mas outras capitais, entre elas Porto Alegre, e municípios de todos os portes seguiram o exemplo.

Mesmo com lacunas nas definições de competências legais entre os entes federados, vimos diversas iniciativas adotadas pelos governadores e prefeitos Brasil afora. Seguindo as recomendações emanadas pela OMS, estes entes editaram medidas como suspensão de atividades escolares, proibição de eventos e encontros públicos, fechamento do comércio não essencial, visando o distanciamento social e retardar o crescimento da curva de contágio pela Covid-19. Tais medidas pretendem, sobretudo, reduzir a pressão sobre os sistemas de saúde, dando tempo para que os mesmos se preparem, numa corrida contra o tempo, recrutando e capacitando equipes de saúde, reforçando estoques de equipamentos e EPIs e criando leitos hospitalares. Todavia, estas medidas, quase que inteiramente no campo da saúde, não se encerram em si mesmas.

Ações no campo da Assistência Social, na intenção de atender famílias que estão em situação de vulnerabilidade, se mostram fundamentais para lidar com essa crise. Nesse sentido, municípios têm se desdobrado na abertura de espaços para receber moradores de rua e populações vulneráveis, para os quais o isolamento social no interior das próprias casas é impraticável. Igualmente, as ações visando a oferta de alimentos têm sido um dos desafios à capacidade dos municípios de atuarem de forma mais proativa. Na inação ou demora do governo federal na coordenação e na implementação de medidas de suporte econômico e social, as administrações locais – em muitos casos articuladas com organizações da sociedade civil – têm assumido a linha de frente.

Cabe questionar: até quando os municípios conseguirão segurar o rojão? Com a histórica dependência federal e baixas capacidades estatais, um dos efeitos da crise deverá ser o amadurecimento do debate sobre a produção de capacidades estatais locais. A literatura nacional e internacional do campo de públicas têm demonstrado que serviços de qualidade, que atendam às demandas populacionais, dependem de estruturas físicas, burocracia qualificada e estruturas de gestão capazes de responder peremptoriamente aos problemas. A crise atual ratifica – na realidade – as recomendações dos analistas.

Conforme Thomas Kuhn, as crises servem para ressignificar os paradigmas vigentes na economia, na sociedade, nos valores e nos modelos e padrões de gestão estatal.

Alguns paradigmas aparentemente sólidos, como o da “eficiência” do Estado mínimo, têm se mostrado incapazes de resolver as demandas sociais atuais e, de modo mais dramático, a atual crise sanitária, social e econômica que impõe intervenções de um Estado estruturado.

Finalmente o que defendemos é que, a partir dessa crise humanitária sem precedentes no século XX, a proteção social seja novamente valorizada como componente essencial das sociedades. E que seja propiciada à população por meio da coordenação de um Estado nem grande nem pequeno, mas dotado de recursos burocráticos, orçamentários e políticos necessários para assegurar o bem estar social.

(*) Núcleo de Pesquisa em Gestão Municipal (NupeGem), autores:

Diogo Joel Demarco (professor da Escola de Administração da UFRGS)

Luciana Leite Lima (professora do Programa de Pós-graduação em Políticas Públicas da UFRGS)

Luciana Pazini Papi (professora da Escola de Administração da UFRGS)

Taciana Barcellos Rosa (doutoranda em Políticas Públicas da UFRGS)

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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