Opinião
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7 de abril de 2020
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10:40

Agricultura e alimentação na China em tempos de coronavírus: lições para o Brasil (por Fabiano Escher)

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Sul 21
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Agricultura e alimentação na China em tempos de coronavírus: lições para o Brasil (por Fabiano Escher)
Agricultura e alimentação na China em tempos de coronavírus: lições para o Brasil (por Fabiano Escher)

Fabiano Escher (*) 

O Brasil tem muito que aprender com a China sobre como lidar com os desafios sanitários, econômicos e agroalimentares da crise mundial desencadeada pela atual pandemia de coronavírus (COVID-19). Ao contrário do que se poderia imaginar pelo comentário do deputado Eduardo Bolsonaro, qualificado pelo cônsul-geral chinês, Li Yang, como “ingênuo e ignorante”, e também do ministro da educação, Abraham Weintraub, qualificado como “racista”.

Em 30 de dezembro de 2019 foi noticiado o surto do novo coronavírus na cidade chinesa de Wuhan. Após um breve período inicial de negação, censura e busca de bodes expiatórios (o primeiro caso teria ocorrido ainda no final de novembro), as lideranças do Governo e do Partido Comunista Chinês (PCC) tomaram medidas drásticas e decisivas para conter o avanço do vírus quando ainda havia menos de 600 casos notificados. Wuhan foi totalmente fechada. E o resto do país adotou medidas de ‘isolamento horizontal’ com quarentena, controles de fronteiras e de movimento em aeroportos, estações de trem e outros meios de transporte, proibições ao retorno dos estudantes às escolas e dos trabalhadores migrantes às empresas depois do Festival da Primavera e medição da temperatura das pessoas em qualquer entrada. Em 6 de abril de 2020 a China conta com 81,718 infectados, entre eles 3,331 mortos, 77,078 recuperados e 1,299 pacientes ativos. Mas a média abaixo de 50 novos casos por dia desde 7 de março parece indicar o êxito da China no combate ao coronavírus. O relatório da Missão Conjunta OMS-China afirmou que o país lançou o “esforço mais ambicioso, ágil e agressivo de contenção de doenças da história”, fenômeno que só está sendo possível graças ao papel central desempenhado pelo Estado chinês e à sua notável capacidade de “gestão planejada do imprevisível”.

Questões relacionadas à agricultura e à alimentação naturalmente possuem uma enorme importância nessa conjuntura excepcional. Algumas fontes apontam a origem da atual pandemia no mercado público (de alimentos frescos como frutas, legumes e verduras, ovos, porco, frango e frutos do mar) de Wuhan, dentro do qual havia um mercado de animais selvagens (acredita-se que pangolins comercializados ‘semi-legalmente’ possam ter sido os vetores iniciais da zoonose). Mas a maioria dos mercados públicos não vende animais selvagens. Esses mercados, que podem ser operados pelos próprios agricultores ou por feirantes que compram dos mesmos atacadistas que os supermercados, são a pedra angular do sistema de distribuição de alimentos da China e têm benefícios tangíveis para a sociedade, como o oferecimento de alimentos mais saudáveis e nutritivos do que os supermercados, que privilegiam a venda de produtos ultraprocessados, além de ser o ganha-pão de muitos trabalhadores migrantes rurais.

Assim, os mercados públicos foram fechados para desinfecção e posteriormente reabertos, mas proibindo o comércio de animais selvagens. O nível de preços dos alimentos ao consumidor na China subiu de 0,7% em fevereiro de 2019 para 21,9% em fevereiro de 2020. O nível de preços da carne suína, em particular, atingiu 135,2%, aumentando mês a mês ao longo do último ano, num contexto em que eventuais restrições de transporte por conta do coronavírus se somam aos efeitos da peste suína africana, que dizimou mais da metade do plantel no país (escasseando a oferta), e da guerra comercial, que reduziu muito a importação de soja (matéria prima da ração para os porcos) dos Estados Unidos, em grande parte substituída pela soja do Brasil (que arrisca perder parte desse mercado). A elevação do desemprego e a diminuição do poder de compra têm contraído o consumo e alterado os hábitos alimentares urbanos, reduzindo as visitas aos supermercados e aumentando as entregas via aplicativos de e-commerce. Os camponeses e agricultores chineses têm igualmente sofrido os impactos das dificuldades logísticas para acessar insumos e rações e vender seus produtos nos mercados – o que afeta negativamente a produção agropecuária e a renda rural.

Contudo, desde o início do ano o Estado, através de um sistema de coordenação central, responsabilidade provincial e implementação local, tem emitido diretrizes claras de política pública e estabelecido ações efetivas para mitigar efeitos negativos e recuperar a economia articuladas com medidas de prevenção e controle do coronavírus, reafirmando o propósito de ‘erradicar a pobreza’ até o final do ano e ‘construir uma sociedade moderadamente próspera’ nas próximas décadas. Dentro do pacote anunciado de Y$ 1,2 trilhão na economia estão inclusos pagamentos de seguro-desemprego e expansão da rede de seguridade social para os trabalhadores e suspensão temporária das contribuições fiscais para as empresas.

Ressalto a seguir as principais medidas anunciadas pelo Ministério da Agricultura e Assuntos Rurais (MARA): elaborar planos de emergência regionais detalhados, utilizando tecnologias de informação para coordenar o abastecimento e a distribuição, com apoio de empresas e cooperativas rurais; priorização das aquisições públicas de alimentos dos agricultores pobres para escolas, hospitais, empresas e outras instituições; desbloquear e facilitar a logística de transporte, comunicação e estoques para assegurar o funcionamento de canais que vão de feiras a supermercados, passando cada vez mais fortemente pelo e-commerce; concessão de créditos e subsídios para empresas que não somente não demitam, mas que também recrutem mais trabalhadores pobres (sobretudo migrantes rurais); viabilizar a distribuição gratuita de máscaras e garantir o transporte seguro dos trabalhadores; e criar ocupações rurais não agrícolas na construção de estradas e infraestruturas, melhoramento de solos e pastagens, conservação da água e melhoria da aparência das aldeias.

A experiência da China ensina várias lições para o Brasil, dentre as quais destaco três. Em primeiro lugar, não faz sentido opor os objetivos de preservação da vida e da saúde da população e de sustentanção da renda e do emprego na economia – como fazem Bolsonaro e seus seguidores –, pois ambos são complementares e indissociáveis. O primeiro caso de infecção pelo COVID-19 no Brasil é de 25 de fevereiro de 2020, e em 6 de abril já contamos com 11,450 casos, entre eles 491 mortos, 127 recuperados e 10,832 pacientes ativos, com previsões de pelo menos 44 mil mortes mesmo que as orientações da OMS sejam corretamente seguidas.

O mais importante para recuperar a economia e o emprego é preservar a vida dos trabalhadores e da população em geral, gastando e investindo os recursos necessários para garantir-lhes renda e condições dignas pelo menos até que a crise arrefeça. Segundo, para que isso seja possível, é central a retomada do papel do estado e sua capacidade de planejamento. Mesmo economistas liberais, como Armínio Fraga, Mônica de Bolle e Pérsio Arida, para lembrar nomes de apenas alguns dos brasileiros mais destacados, já apareceram na mídia mandando às favas a hoje ultrapassada cantilena de austeridade e livre mercado e clamando a urgência do estado tomar medidas ativas para enfrentar a situação. Na crise, todos são Keynesianos! Por fim, diversos movimentos sociais, sindicatos, cientistas e atores da sociedade civil tem reiterado a importância crucial do apoio à agricultura familiar e camponesa como estratégia para o desenvolvimento rural e a segurança alimentar e nutricional de todo o povo brasileiro, através, entre outras medidas, da rearticulação do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE).

(*) Departamento de Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (DDAS/UFRRJ). ([email protected])

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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