Opinião
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12 de abril de 2020
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11:28

A epidemia e a necessidade de construir um pensamento da fragilidade (por Emma Gainsforth)

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Sul 21
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A epidemia e a necessidade de construir um pensamento da fragilidade (por Emma Gainsforth)
A epidemia e a necessidade de construir um pensamento da fragilidade (por Emma Gainsforth)
Foto: Comune di Venezia/Fotos Públicas

Emma Gainsforth (*)

Pensar a fragilidade, o cuidado e a responsabilidade na relação com o outro exige que abandonemos as tóxicas narrativas biopolíticas, habilistas [1] e ideológicas.

Li duas coisas boas sobre o coronavírus. Uma delas é um artigo de Augusto Illuminati – “Registros marginais de catástrofes” – que parte de sua antipatia pelo sabão antibacteriano e compõe um elogio sábio, informado e elegante das bactérias e da nossa convivência com elas – lançando uma luz negativa sobre os vírus, obviamente, e massacrando implicitamente o uso teórico feito deles, no que continua sendo, aliás, uma produção de nossa subjetividade, pós-humana ou apocalíptica.

A segunda escrita que me deu a sensação de voltar a respirar – na verdade precedendo a peça de Augusto – é de Chiara Bersani, que, como diz o subtítulo, conta sobre o efeito que a “narração habilista de uma emergência tem sobre todos os indivíduos que entendemos ‘descapacitados’”. Ela fala de uma oportunidade perdida: “Este vírus, sua disseminação fácil no mundo, pode se tornar uma oportunidade para nos lembrar de que somos humanos e, como tais, somos frágeis. Poderíamos ter aceito, todos juntos, que não somos imortais – não apenas indivíduos vulneráveis, mas também aquela pessoa de 40 anos que sente uma energia inesgotável fluindo em seus ossos. Teria sido bonito, em algum momento, buscarmos um sentido mais nobre em um momento tão especial. Talvez um precedente iluminado pudesse ter sido criado, talvez o cuidado de si e dos outros tivesse ocupado verdadeiramente o centro do mundo por algum tempo. E como estou jogando um jogo de fantasia, gostaria de ir além e pensar que talvez o capitalismo tremesse vendo vacilar seus falsos corpos imortais”.

Foi essa peça, que chegou como uma flecha numa manhã em que eu não conseguia trabalhar, quando estava paralisada em frente à tela do computador, que acionou esse pensamento-exigência, esse “façamos”, “não é tarde” – e que é a única coisa sobre a qual quero que você mude de ideia – podemos fazer disso um início, mesmo agora.

Li “A incubadora Monstruosa ou Sars Wars Cov-2”, de Angela Balzano, lançado pela Dinamopress em 4 de março. Mais uma vez, a sensação de imensa derrota. A peça de Agamben ainda não não havia sido suficientemente ridicularizada nas mídias sociais (ela até gerou memes). Certamente uma reação ao pânico induzido pela comunicação esquizofrênica das instituições – mas sobre isso poderia ter começado mencionando algo que aprendi com um conhecido: que a Itália, ao contrário da Alemanha, por exemplo, não tem protocolo para ativar em tais situações. Prossigo: as ruas estão vazias e as vans militares aparecem no norte. É o biocontrole, no qual todos somos obrigados a nos declarar à guarnição médico-militar. Segue o elogio do vírus e de seu modo de vida. Os vírus são organismos “capazes de mudar o mundo […] contrabandistas proteiformes”, obviamente a citação é de Haraway e Balzano espera que “tornem-se familiares inclusive ao humano”, porque “estamos todos no equilíbrio entre a vida e a morte e todos precisamos de um mundo inteiro como hospedagem para viver e reproduzir”.

Minha reação é muito forte. Percebo que este artigo toca um ponto chave, que minha reação é emocional. Não estamos todos no equilíbrio entre a vida e a morte. Eu por exemplo, não estou. Mas o fato é o seguinte: meu pai tem um enfisema, minha mãe agora se recuperou de uma pneumonia, entra e sai do hospital desde setembro. Eu deveria ir vê-los hoje e tenho medido compulsivamente minha “febre” por dois dias. Tenho 37,2: é febre? Minha irmã me diz que sou hipocondríaca, que o que tenho é chamado, trivialmente, de ressaca. Nem minha mãe acha que tenho febre, ela me diz para vir, “na pior das hipóteses, se você começar a tossir, eu vou te expulsar”. Mas aqui estou no circuito da “mensurabilidade”, com tudo o que isso implica, e não sei o que fazer. Os limites entre corpo saudável e corpo infectado não são fáceis, são invisíveis. Chamam-se incubação. Eles são mais difíceis de decifrar do que aqueles entre corpo fraco, frágil e corpo poderoso e forte. E misturam categorias, formam um quiasma: questionam os efeitos que meu corpo saudável tem sobre outro corpo que é frágil.

Penso: sou um corpo saudável em fragilidade que não é minha, mas em que estou imersa. E isso me parece uma maneira de pensar sobre como estar nessa relação difícil.

Nesta dificuldade, pensar que tudo é biopolítico, ou bio qualquer coisa, não me ajuda. Não me ajuda pensar que o estado está usando o vírus para nos deixar mais tristes. Não me ajuda um chamado para resistir, para ainda atravessar as praças e locais públicos, infectando-os – com referência aos desfiles que o NUDM cancelou. Balzano escreve: “Eu sei que existem milhares de corpos indispostos a desistir daquele golpe de endorfina que desencadeiam os encontros em ruas livres, corpos nos quais nenhuma revogação se enraíza, que se tornaram imunes ao controle” e assim por diante. O tom é entusiasta, otimista, eu diria exaltado. E eu me vejo pela enésima vez a pensar, o que ultimamente faço muito: acho que pensamos demais, que lemos demais, estudamos demais, que nos armamos de discursos que dificultam o contato com a realidade, um contato que geralmente é uma fratura, uma dor pesada, algo que está faltando ou que deu errado.

Lembro-me de uma piada que costumo fazer com meus amigos lacanianos: mas com todo esse fardo, com toda essa teoria, como faz para trabalhar um analista lacaniano? Obviamente, é uma piada irônica e, ao mesmo tempo, é minha verdadeira curiosidade saber o que, basicamente, eles fazem. Aciono-a porque se trata de uma imagem que me ajuda a formular uma dúvida. Tenho a sensação de que, às vezes, fazemos discursos antes de sentir e estamos perdidos diante de tudo o que não podemos antecipar, prever, assegurar. De que existem eventos que acabam sendo usados ​​como confirmações, auto-confirmações. Eu, pessoalmente, me sinto dividida por dentro. Um otimismo como o que encontrei neste artigo apaga partes inteiras da realidade, ou melhor, trata essa realidade como um bloco, algo com relação ao qual, em nosso “antagonismo”, é possível ficar de fora. Para quem exatamente estamos dizendo “você não vai ter”? Eu não vejo isso ser tratado.

No meu prédio, lancei uma ideia: escrever. Usamos um chat e decidimos elaborar uma espécie de decálogo, boas regras que nos ajudem a enfrentar a situação juntos, o que basicamente significa conversar sobre o que essa situação significa para cada um de nós e ajudar um ao outro. Penso nos meus pais, meu colega de apartamento não está ganhando o suficiente, minha vizinha tem um sistema imunológico comprometido, há quem não possa sair, e assim por diante. Meu colega de apartamento queria enviar seu filho para a Calábria agora que as escolas estão fechadas, para a casa dos parentes. Ele refletiu com a mãe, eles entenderam que não seria uma boa ideia. Ele me disse que Cosenza tem mais ou menos 200.000 habitantes, o único hospital que eles têm é o Annunziata, com 40 postos de reanimação, e então não há nada. Agora, diante de uma consideração que entendo correta, que é, essencialmente, “não adoecer para não deixar os outros doentes”, o que faço com a ideia de “autocontrole biomédico”? O que faço com a ideia de que o hospital é uma “instituição disciplinar” quando a vida da minha mãe foi salva recentemente no hospital? Isso me faz pensar que aqueles que podem simplesmente repetir Foucault, como se isso fosse realmente suficiente para lidar com uma situação objetivamente cansativa, nunca puseram os pés em um hospital – para europeus, portanto acessível, gratuito e público.

Há um excelente artigo de Simone Pieranni chamado “Manifesto”, que também fala de poder. No entanto, o faz informando – ela fala sobre a China, da qual tendemos a ter uma ideia errada e preconceituosa. Os editoriais (opiniões) não podem substituir informações e injunções por um otimismo desenfreado e cego que não têm utilidade para ninguém. Apenas manifeste sua presença desobediente, como foi feito nos flash mobs de 6, mas sem enfatizar, nessa circunstância específica, o desfazimento da trama de relacionamentos e cuidados em que estamos inseridos.

Mais do que a lei do Pai, penso em meu pai real, em casa, em dificuldade, com uma forma de demência que o confunde, que de repente o transformou em criança. Não, não considero nem por um segundo deixar meu pai em casa sozinho e se não tiver febre, ficarei em casa com ele.

É claro que vou cuidar dele sem me expor gratuitamente, porque me preocupo com ele estar e permanecer vivo e vou tentar não ficar doente por isso. Tudo isso é ideologia, e acho ofensivo e ignorante, no sentido literal de ignorar, tudo o que não serve à causa da força, de “nosso” (de quem?!) sentir-se forte. E tudo isso me leva a perguntar: é possível que esse tipo de discurso, que a “teoria” em geral – esse lugar onde conhecimento belíssimo e necessário é produzido, mas também o lugar onde nos escondemos, porque aí somos bravos, – tenha se tornado algo para onde nos voltamos para não ter de olhar, de ver, tudo aquilo que não nos enaltece? Ou seja, o que nos faz sentir desamparados. Mark Fisher diz isso muito melhor do que eu, em “Escritos políticos: Nosso desejo não tem nome”. Lançado recentemente em italiano, é um convite a reler Marcuse, a lidar com o negativo, a prestar atenção não a Spinoza, Deleuze, Negri etc., autores a que faz referência, mas à maneira como foram usados.

Ele alerta contra um vitalismo que já foi apropriado pelo capital: que é poder infinito, voluntarismo mágico, em uma época em que, ao contrário, tornou-se urgente pensar sobre o limite, a medida, a natureza finita dos corpos e recursos. Aqui, não saber permanecer em tudo o que nos escapa (no negativo, como ele diz) se transforma em uma espécie de ilusão de onipotência, que não faz bem e que certamente não nos ajuda a derrotar o que nos faz mal. Pelo contrário, cria inimigos onde não há, cria frentes e sentidos de pertença que são produzidos pela diferenciação, que são desprovidos de compaixão, de sentimento, de possibilidades reais de estar onde algo falha, onde algo falta.

O vizinho ligou pedindo o termômetro para sua parceira, que está com febre. Temos apenas um termômetro no prédio e o revezamos. Ele está cozinhando, vai me trazer almoço. Ele está saudável. Na semana passada, eu cozinhei para ele. Vamos continuar assim. Meu colega de apartamento saiu para visitar clientes, restauradores, que precisam pagá-lo. Nós dois sabemos que ele voltará com pouco. Quando ele ficar sem dinheiro, farei as compras eu, penso, que estou com mais dinheiro do que ele. Ele me disse hoje de manhã que poder parar é bom, mesmo na dificuldade que isso implica. Mas ele não usou nenhum slogan, nenhuma hashtag, ele não se disse forte, pelo contrário, nos dissemos frágeis e reiteramos nosso desejo de construí-la juntos, a nossa fragilidade, explicando, certificando-nos de que, lentamente, ao longo dos dias, ela se torne algo que possamos dizer, com palavras que, por enquanto, ainda não nos vêm.

(*) Emma Gainsforth é tradutora italiana e vive em Roma.

[1] Habilismo consiste na suposição de que todas as pessoas têm um corpo hábil. Deriva, portanto, na desconsideração e, no limite, na discriminação às pessoas com descapacidades. Historicamente, é possível entender o regime nazi como habilista. (Medeghini e Valtellina, Quale disabilità, FrancoAngeli, 2006)

Artigo original publicado em Dinamopress (https://www.dinamopress.it/news/l-epidemia-e-il-bisogno-di-costruire-un-pensiero-sulla-fragilita/)

Tradução em português de Claudete Lampert Gruginskie. Revisão: Pâmela Marconatto Marques

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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