Opinião
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24 de março de 2020
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19:39

O vírus, a vida e a miséria dos ricos (por Fernando Nicolazzi)

Por
Sul 21
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O vírus, a vida e a miséria dos ricos (por Fernando Nicolazzi)
O vírus, a vida e a miséria dos ricos (por Fernando Nicolazzi)
Cartaz de medida de prevenção sobre Corona Vírus na faculdade de arquitetura da UFRGS. Foto: Luiza Castro/Sul21

Fernando Nicolazzi (*)

“É exatamente porque um ser vivo pode morrer que é necessário cuidar dele para que possa viver.”
Judith Butler

“Não podemos [parar] por conta de 5 ou 7 mil pessoas que vão morrer”. Estas foram as exatas palavras utilizadas pelo empresário Junior Durski para criticar as medidas que estão sendo tomadas com o objetivo de evitar os graves efeitos da pandemia de Covid-19. Elas foram pronunciadas em um vídeo compartilhado por ele nas redes sociais e o assunto chegou a ser tema de vários portais de notícias.

Durski é dono da rede de restaurantes Madero e tinha a pretensão de, a partir de agosto deste ano, realizar a abertura de capital na bolsa de Nova York. Estimava angariar logo no início das operações um valor de cerca de 3 bilhões de reais. Segundo analistas do mercado, a empresa que tem 15 anos de atividade estaria avaliada em 10 bilhões de reais. Seus planos provavelmente terão que ser adiados por conta do vírus, mas sua fortuna pessoal não diminuirá por conta isso.

A ânsia pelo lucro no mercado financeiro se confunde, na atuação do empresário, um confesso apoiador de Jair Bolsonaro, com o desprezo por “5 ou 7 mil” pessoas. O fato de que na intimidade de suas vidas privadas indivíduos como ele considerem desprezíveis a existência de algumas pessoas, isso não chega a ser nada surpreendente. Mas o que a combinação entre pandemia e bolsonarismo deixa evidente e nos assusta a cada dia é que elas perderam qualquer tipo de pudor em tornar pública sua posição deletéria.

O dono do Madero, obviamente, não é uma exceção entre nossas elites econômicas. O empresário e investidor Roberto Justus, em um áudio privado que foi complementado por um vídeo público (num caso nada raro em que a emenda ficou pior que o soneto), também manifestou semelhante desprezo por medidas sociais em que a preservação da vida se sobrepõe à obtenção de lucro. O empresário, tentando acalmar um amigo, chegou a sugerir a ele não ficar preocupado “porque na favela o vírus não vai matar ninguém, vai matar velhinho e gente já doente”.

A sugestão dada por Justus contém ao mesmo tempo um equívoco grosseiro (a ideia de que as favelas estão imunes ao vírus) e o desprezo por pessoas idosas e com saúde debilitada (consideradas descartáveis e cujo descarte não demanda preocupação). No vídeo em que tentou consertar o que já estava destruído, o empresário chegou a mencionar que, em função da crise econômica que vem a reboque do vírus, talvez mais pessoas venham a morrer por suicídio do que pela contaminação. Assim, não há motivo para preocupação com essa “gripezinha”, afinal a morte sempre estará a nossa espreita.

Não cabe aqui ensaiar um contraponto às opiniões de Durski e Justus a respeito das consequências econômicas da pandemia. O que talvez seja pertinente de evidenciar, colocando isso como um parâmetro importante para que nossa sociedade possa se repensar a partir desta grave crise, é a miséria que caracteriza muitos daqueles que estão entre os mais ricos deste país. Um tipo de miséria que tem pouco a ver com a posse de bens ou recursos financeiros, mas que diz respeito à ausência de um princípio básico de nossa existência social: o reconhecimento do outro como alguém igualmente digno de vida.

Estou falando sobre um âmbito da experiência humana que é mais profundo do que a superficialidade dos argumentos empresariais consegue tratar. Um âmbito em que a vida, além de uma condição existencial, deve ser também encarada como um direito. Por mais redundante e evidente que seja, é preciso considerar que as pessoas vivem porque em algum momento começaram a viver. Menos óbvio, talvez, seja a consideração de que elas vivem porque têm o direito de viver.

Com isso, refiro-me a uma ideia de direito que, antes de qualquer tipo de codificação jurídica, ampara-se em uma dimensão que poderia ser colocada num campo prévio, ou seja, enquanto algo que antecede cada existência em particular, mesmo que não haja nada formal prescrevendo como isso deva ocorrer. Sendo seu início planejado ou não pelos seus genitores, cada pessoa vive porque começou a viver em determinado momento e porque, justamente, a vida preexiste a toda e qualquer existência. Pouco importa aqui discutir se isso é uma dádiva de algum ser superior ou um completo acaso da natureza. E tampouco o tema é aqui o da sua origem, mas sim das condições para sua preservação.

O que gostaria de sugerir, correndo todos os riscos por essa obviedade e pelas implicações amplas que não serão levadas em consideração, é o fato de que a vida, podendo ser encarada tanto como um presente divino quanto como uma possibilidade biológica, demanda igualmente ser pensada como um direito em que seu sujeito, isto é, o sujeito deste direito, necessita preencher apenas um requisito básico: estar vivo. E trato isso como um direito porque o ponto que quero enfatizar diz respeito menos aos seus aspectos religiosos ou fisiológicos do que aos seus condicionantes propriamente sociológicos, ou seja, às escolhas éticas que fazemos enquanto sociedade.

A partir deste dado, o de que a vida antecede as vidas, sabemos como as diferentes sociedades estipulam modos variados de fazer passar dessa situação prévia para formas codificadas de direito, criando mecanismos legais que visam garantir ou interditar determinadas vidas, estabelecendo parâmetros jurídicos que priorizam algumas em relação a outras e assim por diante. Debates sobre pena de morte, eutanásia e aborto são apenas três exemplos que indicam a complexidade desta discussão, que incide ainda sobre as vidas que transcendem a própria vida humana. Mas sem me alongar nessas discussões filosóficas, retorno ao tema do início.

Ora, se na formalização de nossos contratos sociais, ou seja, se nas leis escritas que regem ou deveriam reger o funcionamento de nossa sociedade, não há absolutamente nada que permita estabelecer hierarquias entre a salvaguarda dos processos econômicos e a proteção da vida de “5 ou 7 mil pessoas” ou dos “velhinhos e gente já doente”, colocando o privilégio sobre os processos econômicos em detrimento da proteção às vidas de cada uma destas pessoas, as palavras de Durski e Justus dizem respeito sobretudo à vida encarada como direito prévio de cada indivíduo. Mais do que isso, elas revelam que para os dois empresários há pessoas que simplesmente não possuem tal direito, mostrando que sua existência é indigna dos cuidados que possam ser voltados para a preservação das suas vidas.

As medidas de contenção da circulação das pessoas e, por consequência, de redução das atividades econômicas, amparam-se em um princípio não escrito de que, cientes de que a pandemia causará mortes, nossa sociedade não dispõe de mecanismos legais para estabelecer quais vidas deverão ser preservadas e quais poderiam ser sacrificadas para manter a máquina em funcionamento. Como se sabe, tais medidas são comprovadamente efetivas como forma de preservação de vidas e, nesse sentido, assumi-las como uma necessidade significa que todas as vidas devem ser preservadas. Ou, ao menos, que todas as vidas merecem o esforço para serem preservadas. Neste caso, é a própria dignidade da vida o que está em questão.

Obviamente, o fato de não haver mecanismos legais não significa que toda uma engrenagem não-oficial deixe de atuar nesta seleção e hierarquização entre as vidas, estabelecendo quais são mais vivíveis que outras. Mas este não é o ponto. O ponto é que quando empresários vêm a público expor sua visão de mundo, segundo a qual a vida vale menos que o lucro, eles estão enunciando uma demanda privada que permita tornar aquela engrenagem não-oficial um mecanismo legal. Agindo tão abertamente contra a vida, eles estabelecem a morte como um fator positivo no cálculo econômico do lucro.

A tentativa ensaiada pelo investidor-ministro Paulo Guedes e apoiada pelo empresário-governador João Dória de simplesmente legalizar a demissão sumária de pessoas, cortando a fonte de renda que serve de sustento para suas vidas, com o único intuito de preservar a saúde financeira das empresas, é parte evidente da mesma visão de mundo. Chamemos isso de necropolítica ou consideremos isso como parte da lógica sacrificial do neoliberalismo, pouco importa aqui o conceito. O importante por ora é que isso seja evidenciado e que se faça disso um elemento central para nos repensarmos enquanto sociedade durante essa que tudo indica ser a pior crise social que muitos de nós enfrentaremos.

E se é em situações de crise que muitas pessoas demonstram sua grandeza, como se percebe na atuação dos profissionais de saúde e dos cientistas e pesquisadores que correm atrás do tempo para encontrar a cura para o Covid-19, é também nas crises que outras tantas pessoas, por mais endinheiradas que sejam, revelam sua miséria. De qualquer forma, e a despeito do anseio de morte dessa gente miserável, a saída da crise dependerá do lugar que concedemos à vida em nossas vidas. A decisão não deveria ser tão difícil.

(*) Professor do Departamento de História da UFRGS

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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