Opinião
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27 de março de 2020
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19:01

O privilégio do segredo (por Juliana Botelho Foernges)

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O privilégio do segredo (por Juliana Botelho Foernges)
O privilégio do segredo (por Juliana Botelho Foernges)
Qual intenção está por trás desta medida do governo Bolsonaro? | Foto: Isac Nóbrega/PR

Juliana Botelho Foernges (*)

A transparência é um instrumento do processo democrático, ou seja, a transparência não é um fim em si mesma, pelo contrário, em seu sentido mais efetivo, possibilita aos indivíduos o amplo acesso às ações, às decisões e aos desempenhos obtidos pelos agentes e órgãos públicos na execução da política pública (HEALD,2006[1]). Logo, o conteúdo da transparência relaciona-se com os mecanismos que possibilitam uma participação ativa dos cidadãos no exercício do controle público. Caso isso não ocorra, o seu conteúdo torna-se vazio, sem qualquer eficácia em termos de accountability.

A democracia necessita da transparência, do anti-segredo para realizar-se. A ideia de descortinamento dos segredos públicos é uma aquisição social da democracia. Não se pode falar de democracia sem que se conheçam os atos e decisões das instituições do Estado. Transparência, assim, é um predicado político que pertence ao campo da democracia. Como afirma Bobbio, que pertença à “natureza da democracia” o fato de que “nada pode permanecer confinado no espaço do mistério é uma frase que nos ocorre ler, com poucas variantes, todos os dias”. (BOBBIO, 2000, p. 98)[2].

Assim, a transparência é instrumento para a superação de um Estado autoritário, impermeável à participação e estimulador da cultura do segredo, e para a construção de um Estado democrático. Enfatiza-se que é neste ambiente do segredo que ocorrem as torturas, a disseminação do ódio, os conluios, a corrupção, a sonegação de impostos e os privilégios de castas.

Após um período ditatorial no Brasil, ressurgiram os valores democráticos com a Constituição Federal de 1988 e criou-se uma base para regulamentação de formas de participação e controle do Estado brasileiro pela população, inserindo-se no rol dos direitos fundamentais: o direito à informação pública[3]; o mecanismo de habeas data, que permite ao cidadão solicitar quaisquer informações suas contidas nas bases de dados de entidades governamentais ou de caráter público[4]; a legitimidade para proposição de ação popular para controle dos atos administrativos[5]; e a gratuidade dos atos necessários ao exercício da cidadania[6].

Nesta temática um dos principais avanços no Brasil foi justamente a regulamentação, por meio da publicação da Lei Nº 12.527, de 18 de novembro de 2011, do direito à informação, previsto desde 1988 na Constituição Federal. A lei alterou substancialmente a relação entre Estado e cidadão no que tange ao acesso à informação pública, uma vez que o dispositivo legal prevê procedimento, prazo, instância recursal e sanções para o poder público de todos os poderes e esferas de governo para o atendimento do pedido de informação solicitado pelo cidadão. Com essa lei, há uma inversão na lógica existente na estrutura estatal: o fornecimento da informação ao cidadão passa a ser um dever do Estado, sendo que, anteriormente, era tratado como uma benesse.

O pressuposto desta lei de acesso á informação foi enfrentar a cultura do segredo e o particularismo que permeia as relações no interior do Estado. O segredo não se compatibiliza com princípios democráticos, uma vez que seu significado pressupõe a apropriação das informações públicas por poucos, confusão entre relação pública e privada, uso da informação para barganha de interesses coorporativos, além de impedir o controle sobre atos ilícitos no setor público e reduzir a possibilidade de participação pública no regime democrático, entre outros males.

Portanto, a implantação de uma política de transparência não ocorre de um dia para outro justamente por exigir reconfiguração das relações de poder consolidadas no interior do Estado, bem como constituir as bases para promover uma cultura da transparência no Estado e na Sociedade.

Na contramão do que vinha até então sendo desenvolvido no Brasil há um desmantelamento da política de transparência e de controle social com o esvaziamento das competências dos conselhos de políticas públicas, a redução dos orçamentos das áreas de controle, a ampliação de informações classificadas como sigilosas, dentre outras. E no ápice de uma pandemia sanitária mundial decorrente do coronavírus o Presidente Jair Bolsonaro enviou ao Congresso Nacional a medida provisória n 928, de 23 de março de 2020, que modifica a lei de acesso á informação. Diante da gravidade que impunha tal medida, o Supremo Tribunal Federal- STF, liminarmente, suspendeu a eficácia desta tentativa autoritária feita na própria sombra do segredo em meio a uma crise de saúde pública mundial, acatando pedido feito pela Ordem dos Advogados do Brasil- OAB em ação direita de inconstitucionalidade.

A questão que se coloca qual a intencionalidade que está por trás desta medida do governo Bolsonaro? Retroceder na política de transparência não se coaduna com os preceitos democráticos pelos seguintes motivos. Em primeiro lugar, porque não é centrada nos direitos dos cidadãos e nos deveres de responsabilidade do Estado. Em segundo lugar, porque estimula as diversas formas de particularismo, que corroem um dos preceitos fundamentais da democracia: a distinção entre o público e o privado. Em terceiro lugar, porque acentua o déficit democrático, decorrente de mecanismos ausentes ou mesmo não adequados ao exercício do accountability.

Salienta-se que a representação conferida ao governante, por meio de sufrágio universal e das regras eleitorais, não retira do povo a condição de titular do poder político. Portanto, como regra, num Estado democrático, devem ser assegurados a transparência e o controle público do poder, em vez de fomentada a prática do segredo dos atos essencialmente públicos.

Somente o regime democrático faz avançar os direitos e a inclusão dos indivíduos e grupos sociais no processo de decisão política. Há uma permanente reinvindicação dos cidadãos por mais informações públicas e também por ultrapassar a disponibilização, com vistas a permitir ao cidadão a condição de protagonista na condução da política, ao invés da de mero espectador. Assim, em virtude da confrontação entre a cultura do segredo e a cultura da transparência, é necessário o rompimento com o paradigma autoritário para que uma política de transparência seja efetiva.

(*) Advogada, mestre e doutoranda em Ciência Política

Notas

[1] HEALD, D. Transparency as an instrumental value. In: HOOD, C.; HEALD, D. (org.). Transparency: the key of better governance. Oxford: Oxford University Press, 2006

[2] BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000.

[3] Art.5, inciso XXXIII, art. 216, parágrafo 2, CF

[4] Art. 5, inciso LXXII, CF

[5] Art. 5, LXXIII, CF

[6] Art. 5, LXXVII, CF

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