Opinião
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31 de março de 2020
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13:07

Muito além do vírus: a alimentação e a saúde planetária (por Mirian Fabiane Strate)

Por
Sul 21
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Muito além do vírus: a alimentação e a saúde planetária (por Mirian Fabiane Strate)
Muito além do vírus: a alimentação e a saúde planetária (por Mirian Fabiane Strate)
Plantação de tomate em assentamento do MST em Candiota (RS). Foto: Marco Weissheimer/Sul21

Mirian Fabiane Strate (*)

A teoria da sociedade do risco de Ulrich Beck (1944-2015) é uma das teorias sociológicas do século XX com mais impacto em diversas áreas do conhecimento. Ela coloca em xeque a linearidade do desenvolvimento, apresentando os riscos e a vulnerabilidade a que estamos expostos: além das ameaças ecológicas, assiste-se a uma precarização crescente e massiva das condições de existência, com uma individualização da desigualdade social e incerteza quanto às condições de vida. O risco é, para Beck, um estádio intermédio entre a segurança e a destruição, e a percepção dos riscos ameaçadores determina o pensamento e a ação. O sentimento coletivo diante dos riscos é expresso pela afirmação “eu tenho medo”, que no campo da alimentação pode ser resumido na pergunta “o que comer?”.

De modo geral, entende-se o desenvolvimento como um bem em si, visto que significaria seguir rumo ao ter mais e melhor. Frequentemen­te, esse rumo é interpretado como uma via pela qual o desenvolvimento técnico-científico conduz ao desenvolvimento socioeconômico, que, por sua vez, gera o bem-estar da sociedade. Nesta concepção, o desenvolvimento é fruto do conhecimento e do domínio das forças da natureza.

A alimentação é uma atividade que envolve muito mais que o ato de comer e a disponibilidade de alimentos. Há uma cadeia de produção, que se inicia no campo – com a mudança no uso do solo, convertendo áreas de paisagens naturais em lavouras e pastagens –, na escolha do sistema de produção, das espécies e das cultivares ou na seleção genética dos animais a serem criados. A escolha dos alimentos que colocamos no prato assume um caráter político, à medida que a dieta pode contribuir para agravar a crise ambiental e social, além de ter efeitos diretos sobre a saúde.

A expansão das commodities, a mineração e a urbanização geram a perda da biodiversidade, do equilíbrio entre as espécies, e a alteração dos biomas que abrigam tantas espécies de animais e plantas, onde existem tantos vírus e micro-organismos desconhecidos. Rompemos os ecossistemas e liberamos os vírus de seus hospedeiros naturais. Quando isso acontece, eles precisam de um novo hospedeiro, que pode ser de outras espécies, inclusive nós.

O hábito de comer carne, ao longo do tempo, nos fez selecionar animais, reduzindo sua diversidade genética e selecionando não somente os animais de criação, mas também seus patógenos, com o uso crescente de antibióticos em modernos sistemas de produção, nos quais animais confinados em ambiente muito diferente de seu hábitat natural têm seu sistema imunológico enfraquecido. Do ponto de vista ecológico, o consumo de carne produz um impacto maior que uma dieta com vegetais, pois a energia é perdida ao longo das cadeias alimentares. Além disso, a pecuária em biomas como a Amazônia é responsável por imensas áreas de desmatamento.

Somam-se a isso as populações densamente compactadas dos grandes centros urbanos, que vivem em ambientes degradantes, muitas vezes em condições sanitárias precárias, sem acesso a água potável e alimentação saudável, sem acesso a alimentos frescos, livres de agrotóxicos; ou seja, em condição de insegurança alimentar e nutricional. Ambientes degradados, com grande vulnerabilidade social, que afetam a saúde humana, suscetíveis a doenças e rápida propagação de agentes infecciosos.

É neste cenário que epidemias e pandemias tornaram-se frequentes. Pesquisas sugerem que os surtos de doenças transmitidas por animais e outras doenças infecciosas como Ebola, SARS, gripe aviária e agora o COVID-19, causado por um novo coronavírus, estão aumentando. Os patógenos estão passando de animais para humanos, e muitos agora podem se espalhar rapidamente para novos lugares. O Centro para Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos (CDC) estima que três quartos das doenças novas ou emergentes que infectam seres humanos se originam em animais. As mudanças no uso da terra, a contaminação dos hábitats por agentes químicos, as mudanças climáticas e a degradação ambiental crescente contribuem para o risco.

A humanidade depende de agroecossistemas saudáveis, e estes dependem da biodiversidade, das espécies e dos genes. Dietas sustentáveis são as que promovem a vida, de forma equitativa, geram resiliência e favorecem a sustentabilidade da Mãe Terra para as futuras gerações. Tempos de crise são também tempos de mudanças e oportunidades, de quebra de paradigmas. Falar em produção de alimentos é tratar da própria existência, não só do indivíduo, mas da possibilidade de vida no planeta. O sistema agroalimentar hegemônico aposta na simplificação da vida, dos ecossistemas, da alimentação.

A eminência de um colapso de dimensões planetárias coloca em xeque este modelo e nos faz repensar nossas práticas. Novos paradigmas emergem, é tempo de reconexão com o alimento enquanto uma dimensão da vida, compreendendo todas as relações sistêmicas que esta visão nos apresenta. Precisamos aumentar a complexidade dos ecossistemas, mudar as práticas alimentares construindo novos arranjos entre produção e consumo, usando tecnologias sociais, saberes ancestrais e ferramentas tecnológicas que estão a serviço da vida, em consonância com os fluxos biológicos.

A saúde planetária oferece uma oportunidade sem precedentes para a defesa de reformas em diferentes escalas: globais, locais e individuais. Que o alimento volte a ser a essência de nossa existência humana, que nos reconecte com o cuidado com a terra, a água, a biodiversidade, a saúde do corpo e do espírito. Que as práticas alimentares voltem a ser do “fazer em comum”, com o outro, para dignificar nosso modo de sentir e viver, e do nosso próprio sentido de conceber a densidade política da vida. Devemos deslocar o paradigma da escassez para o paradigma da abundância e da prosperidade para todas as formas de vida que compartilham esta grande casa comum, a Terra.

(*) Bióloga e doutoranda em Desenvolvimento Rural na UFRGS. Artigo publicado no Jornal da Universidade (UFRGS)

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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