Opinião
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26 de março de 2020
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13:36

Carta-Resposta ao Covid19: um manifesto da classe média arrependida (por André Guerra)

Por
Sul 21
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Carta-Resposta ao Covid19: um manifesto da classe média arrependida (por André Guerra)
Carta-Resposta ao Covid19: um manifesto da classe média arrependida (por André Guerra)
Coronavírus (imagem meramente ilustrativa. Creativeneko/Shutterstock.com)

André Guerra (*)

Segundo um vídeo que circulou na última semana na internet (ver abaixo), o Covid19 teria nos mandado uma carta. Consideramos que ela merece ser respondida devido a sua importância. Embora o vírus em questão talvez ainda não seja aquele que colocará um ponto final à aventura humana na Terra, em situações-limite como esta conseguimos enxergar com mais clareza. Então é bom que respondamos essa mensagem como se fosse no afã de deixar um último rastro daquilo que um dia foi o homo sapiens.

Na carta, o vírus fala diretamente para nós, pedindo que não o tomemos como inimigo, mas como um aliado que só quer nos mostrar que não estamos bem, que estamos sofrendo. Ele salienta que, mesmo com todos os sinais que já nos foram dados tantas vezes, nada foi capaz de nos fazer parar e repensar nosso modo de vida.

As geleiras derretendo, as florestas incinerando, a água potável secando, as cidades sendo inundadas. Nenhum desses sinais – que deixam explícitos os riscos de uma sexta extinção em massa – foram capazes de nos fazer parar e refletir sobre o que estamos fazendo e para onde estamos indo.

Em resumo, o vírus pretende mostrar que o maior risco que nos encaminha para a nossa própria extinção somos nós mesmos, o nosso modo de vida. Eis, então, a razão de sua aparição: nos forçar a pensar.

Muito bem. Aqui vai a resposta de uma classe média, que, sim, está arrependida com o ponto a que chegamos. Entretanto, apesar de podermos começar esta resposta reconhecendo as acusações feitas a nós e terminarmos pedindo perdão, optamos por um outro caminho: exigir que nossa parcela de responsabilidade não seja atribuída a nossa índole, mas ao fato de que, durante todo esse tempo, fomos enganados. Erramos. Mas nosso erro precisa ser justificado.

Há tempos vêm nos ensinando nas famílias, nas creches, nas escolas, nas faculdades, nas empresas e até no serviço público que a concorrência e a competição são capazes de melhorar a vida de todos.

Nos ensinaram também que a eficiência é um valor moral, isto é, que a capacidade de reduzir ao máximo os meios necessários para se atingir os fins suficientes, torna todo mundo pessoas melhores.

Nos ensinaram que por essa métrica custo-benefício deveríamos parametrizar toda nossa vida, desde nossas relações amorosas até o planejamento para construir uma ponte. Conseguir o máximo possível despendendo o mínimo necessário, é isso o que nos disseram ser a fórmula da felicidade moderna, o elixir da autorrealização.

Nos ensinaram que, ao buscarmos acumular benefícios para nós mesmos, prestaríamos serviços melhores, com custos mais baixos, para todo mundo. Assim nos fizeram acreditar que a concorrência, a livre iniciativa, a eficiência não tinham nada a ver com egoísmo ou individualismo, mas que tudo isso era a própria materialização do bem comum, uma verdadeira arquitetura social em que todos poderiam se beneficiar reciprocamente.

Nos ensinaram que devíamos entender a economia do Estado como se fosse a economia de nossa própria casa. E que, do mesmo modo que, em nossa casa, poupar deve ser considerado um valor moral, o Estado não deveria ser pensado em termos de investimento, mas de custos.

Fomos criados ouvindo dizer que o Estado era uma estrutura retrógrada, corrupta e ineficiente, incompatível com o dinamismo de uma sociedade do futuro para a qual rumávamos inexoravelmente.

Fomos criados ouvindo dizer que tudo aquilo que é público é terra de ninguém, que só a propriedade privada é capaz de gerar riqueza e que a riqueza de uma nação é o único fim capaz de coordenar esforços e objetivos que todos deveriam, individualmente, perseguir.

Nos disseram que, quando todos concorrem, todos ganham.

Nos disseram que depois do primeiro colocado, todos eram perdedores e nós simplesmente acreditamos.

Nos disseram que a iniciativa privada era capaz de solucionar todos os problemas de um modo “eficiente”, “racional”. E nos diziam que a eficiência e a racionalidade eram tudo o que importava. Por isso acreditamos que a privatização, a desestatização, eram as únicas soluções para todos os nossos problemas.

Nos disseram tudo isso e muito mais. Nós simplesmente acreditamos, não por maldade, apenas porque parecia tão convincente. Então nós passamos a concorrer e passamos a nos preparar para podermos concorrer mais e vencer mais vezes. E quanto mais concorríamos, mais difícil a concorrência se tornava; então nos preparávamos ainda mais para conseguirmos ser cada vez melhores.

É claro que nós não éramos completos idiotas, eles é que eram inteligentes demais. Eles justificavam essa guerra de todos contra todos com um exemplo que parecia tão óbvio: que o desejo de cada um é ilimitado, mas que os recursos são escassos; portanto, que não seria possível outra fórmula a não ser a competição.

Como duvidar disso?

Parecia tão inteligente, sempre amparado em tantos números, estatísticas e gráficos. As pessoas que nos diziam isso com seus ternos e gravatas nos passavam tanta credibilidade e isenção. Como duvidar delas e de seu enorme conhecimento técnico e científico?

Como poderíamos imaginar que repentinamente nenhuma das maravilhas do nosso mundo seria mais importante do que a saúde, do que um ar limpo, do que a possibilidade de ter à disposição alimentos, remédios e papel higiênico? Coisas tão simples.

Como poderíamos imaginar que diante de um desastre, as imensas corporações, que durante tanto tempo serviram de exemplo e modelo para nossas vidas, seriam as últimas as quais poderíamos implorar por ajuda?

Como poderíamos saber que as exorbitantes riquezas privadas das grandes corporações que fomentam o PIB dos países não seriam capazes de nos dar alento e segurança, nos garantir que tudo ficará bem?

Como poderíamos imaginar que, de uma hora para a outra, o valor de uma empresa na bolsa seria a última variável que consultaríamos no desespero de salvar a vida de nossos velhos pais?

Como poderíamos imaginar que os mesmos que nos fizeram odiar impostos são aqueles que hoje exigem dos países que abram imediatamente seus cofres?

Como poderíamos imaginar que a “austeridade fiscal” deixaria de fazer sentido de uma hora para outra?

Como poderíamos imaginar que o Estado – esse que os bancos e grandes corporações tanto atacavam – não poupava para nós, para a humanidade, mas justamente para esses mesmos bancos e grandes corporações que tanto lhes atacavam?

Tudo parecia tão verdadeiro.

Eles inclusive nos davam exemplos: eles nos mostravam que as grandes empresas – aquelas que nos abençoam com dádivas tecnológicas – eram todas privadas. Em contrapartida, nos mostravam que os serviços – aqueles que tanto fazem sofrer o povo – eram todos públicos.

Nós não escolhemos os sistemas de saúde privados por leviandade, mas porque eles nos disseram que, caso contrário, veríamos morrer nossos filhos em filas intermináveis do SUS, em hospitais sem infraestrutura, sem a capacidade de atender a população. Foi por isso que associamos o SUS com os pobres e miseráveis que não têm a opção por um sistema de saúde privado, este que seria sempre capaz de nos dar segurança, proteção e resolver todos nossos problemas de saúde.

Como poderíamos imaginar que um dia o SUS seria a última esperança de todos nós?

É claro que não fomos sempre tão crédulos acerca do modo de vida que nos ensinaram a seguir. Mas os projetos de construir uma outra sociabilidade, uma sociabilidade que levasse em consideração o comum, a solidariedade, eram rechaçadas violentamente, tratadas com risos, com deboches, como meras utopias, quiçá pretensões totalitárias de sujeitos narcisistas e perturbados.

Alguns de nós até tentaram testar essas verdades, mas logo foram ameaçados com a imagem de Cuba.

Diziam que lá tudo é tão ruim porque não há concorrência, porque não há livre mercado.

E como duvidar dessa ameaça?

Em Cuba realmente não há dezenas de companhias aéreas.

Em Cuba não há dezenas petroleiras

Em Cuba não há mineradoras transnacionais.

Em Cuba não há imensas companhias de telecom.

Em Cuba não há startups de tecnologia bilionárias.

Em Cuba não há redes de fastfood globais.

Em Cuba não há lojas de grife internacional.

Diziam que Cuba era ruim justamente por não ter tudo aquilo que hoje, em quarentena, nos reprimem por desejar.

Agora, os mesmos que nos ensinaram a ser quem somos, nos mandam ir para casa e não ficarmos nos shoppings, e aí nos damos conta que poucos países além de Cuba têm casas para todo mundo.

Agora, os mesmos que nos ensinaram a ser quem somos, nos pedem, nos imploram, para que não instiguemos a concorrência pelos aparelhos de saúde, para que nos esforcemos pelos outros.

Agora, os mesmos que nos ensinaram a ser quem somos, apelam justamente para o coletivo, para o comum, para o bom senso. Dizem que precisamos ser conscientes, que devemos nos organizar para não precisarmos competir por um respirador, por um álcool em gel, por um pacote de papel higiênico.

Agora, os mesmos que nos ensinaram a ser quem somos, enaltecem as iniciativas de jovens que se dispõem, voluntariamente, a suprir as necessidades de idosos, para que esses não se arrisquem nas ruas.

Agora, os mesmos que nos ensinaram a ser quem somos, nos pedem para pararmos, para refletirmos, para que os aviões não circulem, para que os carros não rodem, para que o comércio não abra.

Mas até anteontem nos diziam que o mundo não podia parar e que quem não era capaz de se adaptar à velocidade que o mundo exigia, não teria chances de sobreviver.

Até anteontem o coletivo, o comum, só poderiam ser considerados como coleções seriadas de indivíduos, uma soma de interesses individuais perpetuamente conflitantes que jamais poderiam ser coordenados em prol de todos.

Até anteontem o ser humano era geneticamente egoísta, era biologicamente programado para disputar, para concorrer, para vencer.

Até anteontem tudo de ruim e antissocial que víamos na conduta humana diziam que já estava gravado em seus instintos mais profundos.

Até anteontem quem não tinha sucesso, quem não era capaz de sobreviver, era acusado de preguiçoso.

Até anteontem a solidariedade e o humanismo eram ficções, abstrações criadas por ditadores para manipular massas ignorantes.

Até anteontem quaisquer soluções coletivas estavam fadadas desde sempre aos piores fracassos.

É por isso que, se nós podemos ser culpados de alguma coisa, devemos ser culpados pela nossa ingenuidade, não por nossos erros, é esse o nosso ponto. E achamos que as acusações que o vírus nos fez, não levam em consideração que nós simplesmente acreditamos nisso tudo que nos disseram.

Nós simplesmente estávamos fazendo o nosso melhor.

E nos disseram que esse melhor que fazíamos era o melhor possível a ser feito.

E nos disseram que não era possível coordenar interesses, mas hoje as ruas estão ficando vazias em prol do bem comum.

E nos disseram que os Estados estavam falidos, mas os trilhões que pretendem nos salvar não saem da iniciativa privada.

E nos disseram que a mão invisível do mercado poderia encontrar todas as soluções, mas hoje ninguém espera dela a salvação.

E nos disseram que a competição era capaz de melhorar a nossa vida, mas agora é a solidariedade que dizem ser fundamental para superarmos a pandemia.

E nos disseram que querer ultrapassar o sistema atual era um delírio juvenil, mas hoje imploram para que o Estado se comprometa em não deixar o capitalismo morrer.

E nos disseram que ninguém poderia sobreviver às custas do Estado, mas agora, dentro desses cômodos que cada um de nós se esconde em quarentena, nós ficamos pensando: “e se isso durar dois meses, seis meses, dois anos? O que será de nós? ”.

E nos disseram que a sociedade era apenas uma arena em que todo mundo deveria disputar para saber quais seriam aqueles poucos capazes de sobreviver, mas agora nos incitam a nos preocuparmos tanto com a debilidade de nossos idosos, com o desamparo de nossos famélicos miseráveis, com a vulnerabilidade de nossos bebês.

Mas como poderíamos imaginar que toda a sociedade se uniria em um consenso contra a concorrência?

E como poderíamos imaginar que quase todos passariam a considerar trágico o drama de ter de optar, entre dois, por salvar a vida de apenas um?

E como poderíamos imaginar que não eram vagabundos aqueles que ousavam parar, que ousavam tentar nos fazer refletir sobre o caminho que estávamos seguindo, aqueles que tentavam nos alertar para onde estávamos indo – como comunidade, como sociedade?

E como poderíamos imaginar que não eram vagabundos aqueles que eram ameaçados pela mesma polícia que hoje manda todos nós pararmos, que incita nossa consciência de cidadania?

E como poderíamos imaginar que a conduta daqueles que até anteontem eram tratados como vagabundos, deveria ser a conduta a ser adotada por todos nós desde sempre?

Então repentinamente nos demos conta de que a sociedade serve, antes de mais nada, para assegurar a sobrevivência de cada uma, cada um e todos nós.

E repentinamente sobreviver se tornou para cada um de nós a questão mais importante da vida, mais importante do que a academia, do que o cinema, do que a faculdade, do que o trabalho.

E repentinamente nos demos conta de que, enquanto milhares não têm e nunca tiveram assegurados esse direito tão fundamental de simplesmente sobreviver, outros poucos, por ganância, têm o poder de ostentar, esbanjar, às custas de todos os demais.

Admitimos que nosso modo de vida é doentio, mas queremos que todos vocês saibam que nossa doença não é maldade, é só ignorância.

Nós não sabíamos que éramos tão doentes.

Nós não sabíamos que tudo o que considerávamos as coisas mais importantes de nossas vidas eram coisas tão fúteis.

Nós não sabíamos que nos esforçávamos tanto apenas por ilusões que se sucediam umas às outras sem parar, nos mantendo presos a ficções das indústrias do entretenimento existencial.

Nós não sabíamos que realmente tudo o que importa na vida é poder viver, e que não pode haver limites, condicionantes ou empecilhos criados por nós mesmos que justifiquem que milhões não possam viver para que alguns poucos possam não se preocupar em morrer.

Nós não sabíamos que mesmo os mais ricos ainda assim são pobres diante daqueles que são donos tanto do dinheiro dos ricos como do dinheiro dos pobres.

Nós não sabíamos que, enquanto competíamos e nos esforçávamos por subir um degrau em nossas vidas, havia pessoas que eram donas de todas as escadarias.

Nós não sabíamos que a competição é um modo de vida que não vale para as corporações que colocam os Estados de joelhos sempre que há risco aos seus fabulosos lucros.

Nós realmente não sabíamos que o neoliberalismo e sua doutrina de concorrência, competição, eficiência eram fantasias.

Para nós tudo isso era verdade. E nós acreditávamos que se não fosse assim nada seria possível.

É por tudo isso que a única resposta que podemos dar ao Covid19 não é a de pedir perdão, mas a de denunciar que fomos enganados.

Se por acaso hoje tivesse chegado o nosso fim, precisaríamos deixar registrado que foi apenas por ignorância. Nós simplesmente não sabíamos de nada disso. É simples assim.

A sociedade foi ensinada a ser antissocial. Isso até pode parecer estúpido, mas a essência da estupidez é justamente não ser capaz de reconhecer sua própria condição.

Agora nós sabemos. Então podem ficar tranquilos, pois para o dia de amanhã não haverá mais desculpas.

(*) Mestre em Psicologia Social (UFRGS)

§§§

As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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