Opinião
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23 de março de 2020
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01:05

A arte da guerra contra vírus (por Jorge Barcellos)

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Sul 21
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A arte da guerra contra vírus (por Jorge Barcellos)
A arte da guerra contra vírus (por Jorge Barcellos)
Ruas de Porto Alegre esvaziadas devido ao coronavírus. Foto: Luiza Castro/Sul21

Jorge Barcellos(*)

Paul Virilio, em Guerra Pura, assinala que para a Segunda Guerra Mundial, a economia de guerra foi preparada com grande antecedência na Inglaterra, que criou armas de ponta – a força aérea – que permitiram o país vencer. Eisenhower era um especialista em economia de guerra e na preparação de seu financiamento, o que resultou no lugar que os Estados Unidos tiveram no conflito.. A definição de “economia de guerra” é : capacidade de gerar um Estado dentro do Estado, organizar a economia da nação para a produção de tudo aquilo que se precisa para uma guerra. Se a pandemia do coronavírus é uma guerra, o que estamos fazendo para ter vantagens?

Entendo que o Ministro da Saúde vive um contexto político adverso e está sobrevivendo no sentido de construir uma economia de guerra mínima para o vírus no país. Como Eisenhower, que tinha seu rival em Montgomery, o ministro tem um rival no próprio Presidente, que sonha em dominar o discurso da guerra enquanto o Ministro da Saúde emerge como um líder na guerra sanitária. É fascinante repassar no confinamento as páginas de Guerra Pura (Brasiliense, 1984) para fazer a atualização da interpretação da inteligência militar definida por Virilio: se estamos em guerra contra o vírus, exatamente em que lugar está a guerra que estamos fazendo?

Não existe guerra sem preparação para ela, sem logística, diz Virilio. São três as fases da inteligência militar: tática, estratégia e logística. A tática é a arte da caça; a estratégia é a política, o governo da cidade e a organização do teatro de operações e a logística foi definida pelo Pentágono entre 1945-1950 “Logística é o procedimento segundo o qual o potencial de uma nação é transferido para suas forças armadas, tanto em tempos de paz como de guerra”. Se a logística é, em tempos de guerra, a transferência do potencial de uma nação para o militar, o que é a logística em tempos de coronavírus? Para mim, é a transferência do potencial de uma nação para a máquina sanitária – militar. E que é ela? O conjunto de instituições médico-sanitárias que funcionam para o atendimento das vítimas, o sistema de saúde propriamente dito, organizado de forma militar “Sem o saber, já somos todos soldados civis”, diz Virilio, que finaliza ”As pessoas não reconhecem a parte militarizada de sua consciência”.

Isso significa que combater o vírus e fazer a guerra é exatamente a mesma coisa. Aqui, a inteligência militar é substituída pela inteligência sanitária e o corpo dos médicos, enfermeiros e infectologistas vem para assumir o lugar dos soldados nesta guerra. É claro que militares irão participar e muito, mas é a classe médica que a substitui, ao menos já na Itália, onde podemos ver, no lugar antes destinado ao piloto de guerra, o “aperte o botão e caia fora”, a imposição da escolha impossível entre quem pode viver e quem deve morrer. Como diz Virilio “Nessa guerra tudo acontece em alguns segundos, não temos tempo de reagir”.

O que é inaceitável é o governo brasileiro, neste exato momento, não estar guiando os recursos da nação, dos estados e dos municípios para a guerra. O coronavirus é essa surpresa biológica do século XXI que vem a ocupar o espaço que foi o advento da bomba nuclear ao final da Primeira Guerra Mundial. O que tem de surpreender nossos governantes, faze-los sair de seu lugar de burocratas, é que depois da arma final surge a epidemia final. É preciso mais logística do que nunca, os meios tornaram-se importantes. O certo: uma empresa de cerveja produz álcool gel. O certo: uma empresa de soutiens produz máscaras. O errado: o governo propõe redução de salários dos servidores públicos, e com eles os da saúde. O errado: o governo, em nome da liberdade, permite pequenas reuniões, gente na rua. Você tem uma situação dada de contágio absoluto que exige mais do que a inteligência de guerra que se guiava por questões como “onde ponho meus batalhões”, agora substituída pela questão “onde ponho respiradouros”. Como nas guerras napoleônicas, onde era preciso alimentar os homens, é preciso saber como manter o sistema de saúde vivo: a resposta é a quarentena absoluta. Qualquer tecnocrata que considere a racionalidade econômica “é preciso pensar nas empresas” esquece a dimensão apocalíptica do que estamos vivendo. Para eles, a previsão de um milhão de mortos no país não lhes afeta. Não é assim que agem o Presidente da República e o Ministro da Economia? “É uma gripezinha”, diz um; “se todos ficarem em casa o país quebra”, diz outro. Virilio dizia-se surpreso com a falta de conhecimento a respeito da destruição nuclear pelos militares, sua ignorância da experiência dessa destruição, simplesmente e não lhes interessava. Eu fico surpreso – e a grande parte da população – com a falta de conhecimento de nosso presidente e do ministro da economia.

A guerra pura contra o vírus é uma guerra permanente. Soube agora que o presidente fez uma pequena festa de aniversário: parece que é um dos únicos que não se encontra em guerra declarada. É o que se constata da reportagem de Cida Oliveira, da RBA, publicada pelo SUL21 e que aponta a recomendação do Banco Mundial para enfrentar a crise do coronavírus com robustos investimentos em saúde e proteção das populações mais vulneráveis “O Brasil, porém, não tem seguido o mesmo exemplo”, diz. Em vez disso, tem se limitado a um remanejamento orçamentário, grande parte das medidas anunciadas pelo governo não tratam de novos recursos em economia. São meros adiantamentos de pagamentos ou adiantamentos de recursos, diz a reportagem. Já o ministro Paulo Guedes é acusado de não querer abrir mão da politica e austeridade nem neste momento de crise.

Virilio dizia nos anos 80 que a Segunda Guerra não havia terminado porque com a Paz Total, a guerra foi continuada por outros meios. Ele pensava na Guerra Fria, na dissuasão, nas guerras entre estados, como a do Irã e Iraque e nos tumultos. Para Virilio “ou a guerra é nuclear ou não é nada”. Hoje, sabemos que ela pode ser outra coisa, guerra contra o vírus, guerra sanitária, que cria a classe sanitário-militar. Ao invés da guerra terrorista de que fala Virilio, o terrorismo emerge dos vírus porque eles estão por todo o lugar: os casos irão estourar na primeira quinzena de abril e por isso não saia de casa. O vírus coloca a questão para todos: agora, o que vocês irão fazer? Aqueles que ainda teimam em ir as ruas não se reconhecem em guerra, como se ficar em casa fosse transformar cada um de nós em prisioneiro de guerra. Por isso a arte da dissuasão, o convencimento, nosso auto isolamento é um ato de guerra sem a guerra tradicional, não somos reféns, escolhemos o isolamento social como forma de participar da máquina de guerra contra o vírus. Não devemos recusar o isolamento, ao contrário, é nossa forma de guerrilha urbana. Para enfrentar um vírus terrorista, é preciso que a sociedade se torne terrorista para o vírus, que o prive de nossa presença para ele, é preciso retirar a única possibilidade de sua reprodução…. que somos nós! “Com que direito?” perguntará o coronavirus incrédulo a que segue a resposta “com o direito de cada um de lutar pela sua vida”.

(*) Historiador, Mestre e Doutor em Educação. Autor de O Tribunal de Contas e a Educação Municipal (Editora Fi, 2017) e “A impossibilidade do real: introdução ao pensamento de Jean Baudrillard (Editora Homo Plásticus,2018, é colaborador de Sul21, Le Monde Diplomatique Brasil, Jornal do Brasil, Folha de São Paulo e do Jornal O Estado de Direito. Mantém a página jorgebarcellos.pro.br.    

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