Opinião
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5 de fevereiro de 2020
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17:06

Razões da derrota de Marchezan (por Jorge Barcellos)

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Sul 21
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Razões da derrota de Marchezan (por Jorge Barcellos)
Razões da derrota de Marchezan (por Jorge Barcellos)
Rodoviários comemoraram a decisão na Câmara. Foto: Ederson Nunes/CMPA

Jorge Barcellos (*)

A vitória do movimento dos cobradores deve ser analisada pela contribuição que dá as lutas contra aos projetos neoliberais em andamento no Estado e no Município. A questão é importante não apenas para os servidores públicos municipais que viram seus direitos ruírem diante de seus olhos durante os últimos três anos em virtude de um projeto de reforma administrativa de base gerencial, mas também para servidores estaduais, que amargam a maior derrota na preservação de seus direitos com a vitória do projeto neoliberal de Eduardo Leite na Assembleia Legislativa recentemente.

Durante três anos, com raras exceções, Marchezan gozou de base parlamentar sólida para executar seu programa neoliberal. Diversos partidos integraram a base de governo desde o início: MDB, PP, PTB, entre outros, garantiram a vitória de Marchezan, inclusive nos seus projetos mais neoliberais que incluíram a reforma na lei de gestão democrática de ensino recusada pelos professores à retirada de direitos consagrados da categoria combatida fortemente pelos sindicatos de servidores. Foram raras as defecções da base, a exceção, no último ano, de integrantes do PP que mais uma vez, entraram em conflito com o perfil do Prefeito. Marchezan tinha tudo para concluir seu mandato sem derrotas significativas. O que aconteceu?

O ano ainda não acabou mas a vitória conquistada pelos cobradores sinaliza o desenrolar do ano. Entendo que uma combinação de três fatores foi significativa para a derrota de Marchezan. O primeiro deles é a conjuntura eleitoral. A proximidade das eleições municipais é um fator importante na reorientação da posição política dos vereadores. Com diversos candidatos à reeleição e inclusive, candidatos à Prefeito, o custo político de manter-se na base aliada é alto. É o período em que o “atendimento” as demandas dos cidadãos tornam-se mais sensível para os vereadores e as votações se tornam importantes situações para o face-a-face com os eleitores. Vereadores são eleitos para resolverem os problemas de seus cidadãos e do ponto de vista da racionalidade eleitoral, a votação do projeto dos cobradores era uma oportunidade maximizadora de votos. Estudiosos apontam que esse comportamento é natural e coerente, já que o capital político de um vereador é medido também pela sua capacidade de atender os pedidos que lhes são feitos pelos atores sociais. O fato do ano corrente ser lugar de eleições municipais e não estaduais é uma das razões para a derrota do projeto de Nelson Marchezan Jr e o mesmo motivo do sucesso das reformas neoliberais de Eduardo Leite. No Estado, repete-se as condições que o Prefeito teve no início de seu mandato com uma Assembleia Legislativa receptiva as suas demandas – a exceção, é claro, da oposição – somada a uma base aliada consolidada.

O segundo fator é a organização dos atores. Os cobradores tiveram sucesso em combinar duas frentes de luta política. A primeira na cidade. O transporte se transformou numa função vital dos centros urbanos e lugar a ser considerado por qualquer luta sindical. As categorias que conseguem paralisar o transporte têm sucesso aumentam a sua chance de terem sucesso em suas reinvindicações porque ao paralisarem a cidade, atraem a atenção da sociedade para sua agenda. A primeira categoria que tem função de paralisar os transportes é, naturalmente, os rodoviários, pois é a categoria que o protagoniza. Ela inclui não somente motoristas de transporte de cargas, cujo sucesso de paralisação afetou o fornecimento de gasolina aos postos de combustíveis em 2018 ou as paralisações em função da votação da reforma da Previdência em 2019. A segunda categoria é a dos motoristas de transporte coletivo propriamente dito, que junto com os cobradores, garantem a continuidade dos fluxos de circulação na cidade.

O PL do Prefeito ataca justamente os cobradores do transporte coletivo, que já acenavam, desde dezembro, que iriam paralisar caso o projeto do prefeito fosse vitorioso. Apesar de o Prefeito e a Associação dos Transportes de Passageiros afirmarem taxativamente que não haveria demissões, os trabalhadores as temiam em massa “de boas intenções o inferno está cheio”, diz o ditado popular. A razão é que os trabalhadores sabem que a lógica das empresas de transporte segue a perversa lógica neoliberal de aumento dos lucros à custa da redução de custos e aumento da exploração do trabalhador, no caso, os motoristas de ônibus com as demissões de cobradores, que a categoria rejeitava. A estratégia foi que os rodoviários tornaram público a decisão de sua assembleia, às vésperas da votação, de que entrariam em greve se o projeto fosse aprovado e fizeram ações para dar visibilidade à sociedade com eficiência, como quando chegaram a se deitar no chão no túnel da Conceição em protesto, junto a rodoviária.

Além disso, conseguiram um habeas corpus que foi entregue por Oficial de Justiça ao Presidente do Legislativo, Reginaldo Pujol, que o respeitou e garantiu acesso a todos os cobradores as galerias do Plenário, o que o transformou o espaço em uma caixa de ressonância dos interesses dos trabalhadores. Isso é significativo, já que impediu a “claquete” formada por servidores convocados pelo Prefeito ocupassem as galerias massivamente em defesa do projeto do Executivo.

O terceiro fator foi a organização do sindicato. Dois sindicatos ao menos, estiveram atuando na organização do movimento. O primeiro é o Stetpoa – Sindicato Dos Trabalhadores em Empresas de Transporte, que organizou o movimento dos cobradores e os atos a ele associados, como a paralisação do Viaduto da Conceição e a presença massiva na Câmara de Vereadores. Eles foram apoiados pelo Sindicato dos Trabalhadores Rodoviários Intermunicipais, Interestaduais, Turismo e Fretamento do RGS – Sindirodosul, cujos diretores e integrantes apoiaram e participaram de todas as ações promovidas pelo Stetpoa. Segundo este sindicado “Num momento de crise econômica e altos índices de desemprego como agora, não é hora de a administração pública fechar vagas, pelo contrário, a Prefeitura deveria ser a primeira a trabalhar pela manutenção dos empregos que ainda existem. ”

Esse ato é muito importante. No pós-reforma trabalhista, a extinção da obrigatoriedade da contribuição sindical enfraqueceu os sindicatos e a sua participação muito importante para que o trabalhador no enfrentamento com seus patrões. É preciso que se reconheça sua importância como instituição que protege o trabalhador do empregador capitalista que só busca o lucro em detrimento da sua força de trabalho. Os sindicatos organizam seus trabalhadores na luta, e a vitória da categoria mostra a sua importância e a necessidade de seu financiamento coletivo. A lição é que não é apenas a contribuição sindical que mantem sindicatos vivos, são as lutas em que conseguem se envolver e sair vitoriosos. Mas esse é um movimento que não pode ser isolado: os sindicatos, como no caso das lutas contra as políticas neoliberais de Eduardo Leite, devem se unir. Que tenham fracassado frente a aprovação das medidas duras do governador não pode servir de desânimo: os sindicatos mais diversos devem constituir uma Frente Sindical. No Estado, a derrota foi do movimento sim, mas a estratégia era a melhor possível. Não foi o que se viu na luta municipal, onde apenas sindicatos do setor se envolveram, mais uma razão que revela que a capacidade de sucesso na luta política depende tanto para vitimas como para algozes da conjuntura eleitoral.

A vitória dos cobradores ensina três coisas aos movimentos sociais. Em primeiro lugar, o tempo importa. Atrasar uma luta em função do calendário eleitoral é um movimento estratégico que vale apena investir. O tempo, entretanto, conta a favor do adversário. Governos que assumem tendem a ter maioria e com ela, implementar projetos neoliberais contra direitos adquiridos com mais facilidade. Por isso as estratégias devem ser pensadas também para cada momento específico. Em segundo lugar, participação importa. Não existe luta social apenas no Facebook. É preciso ir a campo, as ruas. Os velhos recursos políticos são eficazes, mesmo na era das redes. Internet faz nichos: a luta no espaço público obriga os cidadãos a se posicionar. Em terceiro lugar, organização é tudo. Não se admite que categorias sociais façam pouco de seus representantes: eles são tudo com que podem contar. Numa época em que os sindicatos sofreram um ataque grave, cabe a seus associados fortalecê-los.

Mas há uma lição a mais que precisa ser registrada. No século XXI, os parlamentos são instituições sensíveis, para melhor e para pior. Para pior é quando seus representantes, eleitos democraticamente, encarnam os interesses de partidos que defendem bandeiras do neoliberalismo, que valorizam o capital acima de tudo, acima das pessoas. Isso permite que se formem maiorias que dão base a reformas de cunho neoliberal que pouco preservam as características tradicionais do estado que merecem serem preservadas, que pouco valor dão a ética e a valores do trabalho digno. Nesse universo não há direitos à preservar, mas o contrário. Mas também para melhor, pois seus representantes, ao serem atores políticos sensíveis, são capazes de conciliar seus interesses políticos com os interesses da maioria em determinados contextos. Às vésperas de uma eleição, os cidadãos precisam renovar seus parlamentos sim, buscar a constituição de um parlamento capaz de representá-los, representar o trabalho em sua luta pela preservação de direitos, enfim. A sociedade precisa cautela, saber distinguir os interesses de ocasião pela história pessoal, verificar os vereadores que romperam com o Executivo em mais momentos do que nesta sessão, que pode indicar uma maior sensibilidade com as causas populares de que outros, às vezes, de seu mesmo partido.

É preciso comparar o voto de cada vereador ao longo de vários momentos críticos e não apenas nesta votação. Mas mantem-se, no fundo, no fundo, a esperança de mobilização e pressão da sociedade ainda são estratégias defensáveis num mundo onde o capital manda sobre as instituições e organiza as políticas públicas do poder Executivo.

A derrota de Marchezan sinaliza o futuro? Em parte sim. Ela aponta que sua base é capaz de discordar de medidas neoliberais, o que é positivo, que é capaz de defender a sociedade mesmo que isso oculte o segredo de que se trata também da defesa da continuidade de seus mandatos. “Vamos, falta um ano vereador, ainda é tempo de votar com o povo!” . Aponta também para o fato de que ao final, a gestão de Nelson Marchezan Jr produziu mais dissenso do que consenso, o que inviabiliza sua candidatura à reeleição: uma cidade não pode reconduzir um governante incapaz de relacionar-se positivamente com seu legislativo. O último ano do governo Marchezan está começando, e eu espera que seja o último do projeto neoliberal na capital, e faço votos de que a sociedade tenha aprendido que esta proposta é benéfica para o capital nunca para os trabalhadores.

(*) Historiador, Mestre e Doutor em Educação. Autor de O Tribunal de Contas e a Educação Municipal (Editora Fi, 2017) e “A impossibilidade do real: introdução ao pensamento de Jean Baudrillard (Editora Homo Plásticus,2018, é colaborador de Sul21, Le Monde Diplomatique Brasil, Jornal do Brasil, Folha de São Paulo e do Jornal O Estado de Direito. Mantém a página jorgebarcellos.pro.br.

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