Opinião
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13 de fevereiro de 2020
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10:30

Governo Leite, ou como destruir um Estado e a Democracia (por Miguel Rossetto)

Por
Sul 21
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Foto: Luiza Castro/Sul21

Miguel Rossetto (*)

Em 1999, como vice-governador do RS, participei, em Belém do Pará, de uma reunião de governadores com Pedro Malan, ministro da Fazenda de FHC. A reunião, proposta pelos governadores, tinha como pauta rediscutir a recuperação das receitas dos estados, reduzidas a partir das condições impostas na consolidação das dívidas estaduais e das insuficientes compensações aos estados a partir da Lei Kandir. Buscávamos uma nova condição federativa que permitisse aos estados cumprirem com suas responsabilidades principais e obrigações constitucionais: organizar as redes públicas de educação, de saúde e de segurança. Na época o governador do Pará era Almir Gabriel, do PSDB. Na reunião, Malan rejeitou todas as propostas de recomposição das receitas dos estados e conclamou os governadores a realizar “com coragem” aquilo que o Pará realizava: um ajuste fiscal à custa de redução de investimentos e de financiamentos nas políticas públicas.

Ao final da reunião, perguntei ao governador Almir Gabriel, como ele conseguia aqueles resultados, já que o Pará, exportador de produtos primários – minério de ferro, era um dos mais prejudicados com a Lei Kandir, com enorme queda nas suas receitas. Perguntei também como era a cobertura da população jovem da rede de escolas públicas. A resposta veio rápida: a rede estadual só atendia 50% da juventude em idade escolar!! Os números sobre a rede estadual de saúde eram assustadores e os investimentos zerados. Esta era a responsabilidade e coragem exigidas por Malan e pela grande mídia. Jogar a conta do ajuste para o povo mais pobre e preservar os privilégios da elite.

Um governador verdadeiramente responsável colocaria como centro da sua agenda o desafio da recuperação das redes públicas de educação, saúde, segurança e do desenvolvimento econômico. Aliás, uma obrigação constitucional do Estado. A partir desta escolha, deveria buscar alternativas para financiar e reorganizar estes serviços, articulando esforços com os municípios e com o governo federal. Esta seria a escolha correta e foi a que apresentamos em 1999, em 2011 e novamente nas eleições de 2018 aqui no RS. Responsabilizar os insuficientes gastos nestas áreas pela crise fiscal do estado é não reconhecer a razão de ser do Estado, das suas responsabilidades fundamentais para com a sociedade. Uma questão constitucional e de justiça.  Abdicar delas é fechar o Piratini.

Alguém tem dúvida para onde as escolhas “novas” e “corajosas” de Leite nos levam?

Leite vende o patrimônio público que gerações se dedicaram a construir. Com isso ficamos mais pobres, ao mesmo tempo em que o monopólio privado é ampliado em setores estratégicos para a economia do RS. Leite liquida com um dos maiores e mais importantes patrimônios do povo gaúcho, a nossa rede de educação pública. Faz isso ao abandonar as escolas e ao desvalorizar e desrespeitar a atividade que deveria ser a mais reconhecida pelo governo, aquela que as professoras e os professores realizam quando educam os filhos da maioria do povo gaúcho. Continuando a obra de Sartori, o governador Leite e uma maioria parlamentar liquidam com o plano de carreira das professoras, e impõem uma estrutura salarial e uma condição para aposentadoria que é um verdadeiro convite à evasão, à desistência da condição de educador. São os professores os que recebem os menores salários entre toda a estrutura do estado, situação agravada por perdas provocadas pela inflação diante dos cinco anos sem reajuste e por atrasos nos pagamentos. Gastamos mais em segurança pública do que em educação pública. Esta situação se entende para os demais servidores do estado. Impressionante, os aposentados com menores salários, por conta das novas cobranças, têm agora seus salários diminuídos.

O chamado realismo do governador e seus deputados aliados, em verdade esconde uma escolha. Para a maioria dos gaúchos, a pior delas.

Todas as possibilidades e alternativas de melhorar a arrecadação do estado foram descartadas e chamadas de “ilusões”. E, assombroso, até mesmo a decisão judicial favorável ao RS no STF, como no caso das compensações das perdas da Lei Kandir, foi desconsiderada. Nenhuma iniciativa foi tomada para dar continuidade ao movimento de redução dos juros (iniciado por Dilma e Tarso) sobre a dívida estadual. Nada foi feito para enfrentar e reduzir os brutais danos provocados pela insustentável “guerra fiscal” que destrói as finanças do estado. Nada, absolutamente nada. Uma total subordinação à destruição da federação por Guedes/Bolsonaro.

O governo Leite tem como estratégia – irresponsável e medíocre – “salvar o seu mandato”, empurrando o pagamento de uma dívida gigantesca para o próximo governador. Todos os privilégios ficam preservados, os serviços públicos que o povo precisa, destruídos, e o patrimônio liquidado. Um desastre estratégico.

Este desmonte dos serviços públicos se torna mais dramático diante do grave e persistente desemprego, da contínua redução dos salários e do aumento do trabalho informal da população gaúcha. Cresce a procura pelos serviços públicos. São milhares de trabalhadores que não dispõem mais de renda para pagar algum colégio particular, algum plano de saúde e até mesmo acessar os benefícios previdenciários como o auxílio doença e acidentário.

Um estado sem crescimento econômico, com alto desemprego, com uma população empobrecendo e que não encontra atenção e cuidado nos serviços públicos.

A absoluta ausência de qualquer iniciativa séria para a recuperação do crescimento econômico do RS, em consonância com a política de Bolsonaro, presidente apoiado por Leite, completa a agenda da agressividade destruidora, enquanto segue a passividade preguiçosa e negligente do atual governador. São mais de 500 mil gaúchos sem emprego!

Esta é a barbárie, o desespero, e a miséria sendo construída no estado, de forma “eficiente, responsável e corajosa”, como proclamam os representantes das elites estaduais, aboletados em entidades patronais e nos órgãos da grande imprensa. Elogiam e pedem aplausos para a construção do desastre. Uma  elite egoísta, que só é capaz de pensar nos seus interesses particulares ou familiares, na acumulação da sua riqueza, onde o bem publico, a coisa publica é sempre algo externo e estranho a ela.

Quem merece aplauso são os que lutaram contra estas injustiças. As professoras e professores, os policiais, os trabalhadores da saúde e demais servidores públicos e todos os que apoiaram e se solidarizam com a justa resistência popular. Estes falaram pelo Rio Grande, por todo o povo gaúcho. Merecem aplausos os partidos e parlamentares do PT, PDT, PcdoB, PSOL e outros que corretamente se opuseram e votaram contra estas medidas.

A democracia é um espaço de esperança onde as pessoas participam acreditando que ela representa uma possibilidade real de melhorar o seu bem estar social e econômico. Quando a democracia não responde a esta finalidade, ela perde valor, perde importância.

Da mesma forma, a representação política em uma democracia preserva a sua autoridade a partir do compromisso da verdade de propósitos, caso contrário, se revela uma fraude, um engodo.

Leite mentiu ao povo gaúcho. Mentiu quando na campanha afirmou que pagaria os salários em dia dos servidores no primeiro ano; não o fez. Mentiu quando disse que cumpriria a Constituição, respeitando o plebiscito popular prévio à privatização das estatais. A mentira como método de política destrói a legitimidade do governo.

Somos todos e todas vítimas das mentiras e atrocidades de governos que respondem aos ricos e poderosos. Bolsonaro, Leite e Marchezan falam uma mesma voz quando destroem o trabalho, o emprego, os serviços públicos. São criadores da violência, da pobreza e da desigualdade na cidade, no estado, no país.

E nós? Nós continuaremos a lutar, com as nossas bandeiras e certezas, aprendendo com nossas vitórias e nossas derrotas, seguros de estarmos do lado certo da história, da justiça, sorrindo para o companheiro ou companheira que está ao nosso lado. E seguiremos, como diz a canção de Milton Nascimento e Fernando Brant:

“Caminhando pelas noites de nossa cidade / Acendendo a esperança e apagando a escuridão / Vamos companheiros pelas ruas de nossa cidade / Cantar semeando um sonho que vai ter de ser realidade.”

(*) Ex-vice-governador do RS e ex-ministro do Trabalho e do Desenvolvimento Agrário.

§§

As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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