Opinião
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19 de fevereiro de 2020
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10:42

Contar histórias ou contar cadáveres: o que deve o jornalismo diante da barbárie? (por Sandra Bitencourt)

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Sul 21
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Contar histórias ou contar cadáveres: o que deve o jornalismo diante da barbárie? (por Sandra Bitencourt)
Contar histórias ou contar cadáveres: o que deve o jornalismo diante da barbárie? (por Sandra Bitencourt)
“A mais alta autoridade da República no Brasil, diariamente insulta jornalistas (e suas mães)”. Foto: Isac Nóbrega/PR

Sandra Bitencourt (*)

Silenciar diante da barbárie ou normalizar a violência, especialmente quando ela é patrocinada pelo Estado, é a recusa mais estruturante do ofício jornalístico. Ao preferir contar histórias a contar cadáveres produzidos por toda sorte de arbítrios – governamentais, empresariais ou financeiros – é que o jornalismo se constituiu como campo de alta complexidade e importância na qualidade das democracias. Suas finalidades éticas e sociais seguem com a missão de perseguir a verdade, denunciar o que agride o ambiente social e buscar a justiça. Rodolfo Walsh, jornalista e escritor argentino foi um dos grandes nomes do jornalismo a tomar posição e exigir o direito dos presos, torturados e desaparecidos na feroz ditadura argentina. Contar histórias ou contar cadáveres é um texto de 1977 que demarca sua posição e sua sentença de morte, desaparecido entre os milhares de vítimas que o horror conseguiu produzir.

Investigador minucioso e contista, Walsh modelou sua visão de justiça com o livro Operación Masacre, que conta o fuzilamento de 12 homens suspeitos de um levante contra o governo que havia deposto Juan Peron em 1956. Walsh encontrou um dos sobreviventes e redigiu uma série de reportagens sobre o acontecimento. No entanto, quanto mais avançava compreendeu que o jornalismo não seria suficiente para sustentar a denúncia. Precisava de outro formato. Não podia ser um texto inteiramente literário, nem somente jornalístico. De um lado porque a denúncia em forma de novela seria inofensiva. De outro porque além do texto jornalístico não ganhar espaço nos veículos por medo e interesse, como sustentava Walter Benjamin, a imprensa impermeabiliza o acontecimento ante a experiência. O autor então decide criar a literatura de não ficção, pelo menos três anos antes do célebre “A sangue Frio”, de Capote. Nasceria aí o que se convencionou chamar de novo jornalismo.

Ao ver a falta de ação da imprensa frente ao abuso estatal, Walsh encontra na literatura, no documentário, na investigação, as ferramentas para sua denúncia, perseguindo uma visão transparente e completa do acontecimento, como aliás, pretende o jornalismo. No entanto, Walsh não persegue a objetividade ou a neutralidade, pelo contrário, trata de expressar seu juízo e seus propósitos: atuar e inspirar espanto para que nunca mais os atos atrozes voltem a se repetir. É uma luta pessoal contra a barbárie em que essas imagens, esse juízo anti-barbárie, enfrentam as declarações e versões oficiais.

43 anos depois, corta para um cercadinho junto ao palácio da Alvorada, onde a mais alta autoridade da República no Brasil, diariamente insulta jornalistas (e suas mães), viola a verdade e pratica os maus modos de todas as formas possíveis. É o momento em que se declara à imprensa. E o faz com desdém, desrespeito, desprezo. O ato repulsivo mais recente foi o de agredir com insultos de caráter sexual e misógino a jornalista investigativa do jornal Folha de São Paulo. No dicionário, o adjetivo mal-educado tem pelo menos 43 sinônimos: tosco, obsceno, rude, vulgar. Enfim. Grande parte dessa lista foi utilizada para classificar a falta de decoro do presidente nesta semana. Contudo, a imprensa segue diariamente se aboletando no cercadinho para receber o coice matinal. O máximo que ocorre, depois do previsível xingamento é um editorial mais ríspido ou uma nota ultrajada de alguma instituição de classe. Na cobertura midiática, no entanto, os contorcionismos retóricos e a análise dos especialistas garantem uma suposta equidade diante do que tratam de “controvérsias” e normalizam os acontecimentos da mais profunda miséria ética, moral e humanista, reproduzindo declarações de parte a parte: das autoridades e dos insultados.

Assim, a mulher responsável pelas políticas de proteção às famílias pode sugerir que pretende dar escolha às meninas de 12 anos ainda não aptas a serem possuídas, o ministro da educação pode fazer xingamentos mal-educados e culpar as vítimas pelos erros da própria ineficiência, o ministro do meio ambiente culpa as ONGs pela própria inércia em conter os desastres ambientais fomentados pelo próprio governo. A lista de disparates é tão extensa e a amplitude dos retrocessos tão substantiva e ajustada a uma conduta contra a ciência, a cultura, a liberdade, o humanismo, que cabe a óbvia pergunta: por que o jornalismo não toma de fato uma posição? Não dá os nomes que as atitudes, discursos e iniciativas têm, como censura, racismo, genocídio, misoginia?

É clássica a ideia de que se alguém diz que está chovendo e outro diz que não está, não basta ao jornalismo escrever as duas declarações. É preciso abrir a janela e comprovar as condições do tempo. Por que não o faz? A resposta que salta aos olhos (basta uma olhada rápida nas manchetes) é que a tolerância ao despautério se dá pela defesa da pauta econômica. Isso explicaria que um ministro repugnante e elitista seja apresentado como referência econômica e de credibilidade ainda que pesem os “deslizes” discursivos. Como a própria mídia produziu um falso consenso de que é vital a política de austeridade, de que é necessário reformar, reduzir, vender tudo que seja identificado com as funções públicas do Estado, nada mais lógico do que proteger o curso das medidas tão brilhantemente arrasadoras. Mas o que mudou para que isso fosse possível? Ou em outras palavras, como se atrevem?

É este o ponto que pretendo refletir. Porque estamos diante de um paradoxo. Ao mesmo tempo em que abre mão da sua finalidade mais definidora, do seu papel social de denúncia e defesa dos princípios democráticos e igualitários que manteria o jornalismo como ator consagrado no papel de contar o que acontece no mundo, essa mesma imprensa padece de crescente desprestígio e apanha das mesmas bestas-feras que ajudou a normalizar. Não lhe é mais conferido, necessariamente, o papel social de narrar os acontecimentos. Como se o contrato estivesse rompido e a busca da verdade fosse algo que sua credibilidade cambaleante não é mais capaz de ofertar. Quando chama a imprensa de merda ou cospe desaforos misóginos para uma jornalista, aquele inacreditável mandatário o faz a todo o jornalismo profissional e com isto vocaliza o desprezo que sua malta nutre por esse jornalismo que as vezes, de modo muito incômodo, resolve se ater à verdade factual. De modo que ao meu ver, além do alinhamento às pautas e agendas do mercado rentista e das elites econômicas, o jornalismo tenta resolver sua própria crise e simplesmente não sabe como, o que lhe leva inexoravelmente ao desfiladeiro. Quanto maiores a crise e a encruzilhada, maior o sabugismo. E não faltam números para comprovar o estrago que os novos tempos tecnológicos -e psiquiátricos- estão causando.

O mundo do jornalismo como seguimento paralelo às realidades humanas vive imerso nessas novas dinâmicas: novas audiências, novos formatos, novas autoridades e novas formas de influenciar a opinião.

A profissão jornalística vive momentos delicados. Precariedade e desprestígio são a tônica dos profissionais que devem ser autônomos, intermitentes, multitarefas. A falta de modelos de negócios viáveis, a competição pela atenção, a falta de credibilidade para ser autenticador da verdade, a perda da exclusividade discursiva dos acontecimentos, a necessidade de gerar conteúdo imediato e em volumes enormes, tudo isso esgota, afeta e perturba a essência do jornalismo.

Os grandes veículos tentam manter prestígio, influência, relevância, mas intuem ou parcialmente sabem que há um caminho sem volta. Qual deveria ser a saída para empresas e para profissionais? Jeffrey Bezos, CEO do Washington Post declarou que para evitar a extinção é necessário aumentar a credibilidade, apostar no jornalismo de investigação e dar liberdade ao jornalista (El Confidencial, 2013). A economista francesa especializada em meios de Comunicação, Julia Cagé, diz que a informação é um bem de interesse público e que caberia ao Estado garantir a existência de jornais plurais (Convermedia, 2016). Walter Isaacson, ex-editor da Revista Times, apresentou como estratégia de sobrevivência um sistema de micropagamentos, por artigo ou reportagem, por mês ou semana, para garantir leitores. Mas muitos entendem que isso aceleraria a morte dos veículos, tendo em vista a infidelidade intrínseca do leitor digital. E aqui no Brasil o que se pensa? Qual a saída? A julgar pelos acontecimentos mais recentes, o furo é bem mais embaixo. E não é jornalístico.

Gabriel Garcia Marques, jornalista e célebre autor de Crônica de uma Morte Anunciada parece um bom caminho para encerrar este texto. No seu discurso El mejor oficio del mundo, o autor colombiano propôs três recursos de trabalho indispensáveis ao labor jornalístico: um bloco de anotações, uma ética a toda prova e um par de ouvidos atentos. Vamos desejar que nossos jornalistas tenham e/ou mantenham uma ética a toda prova. Porque os ouvidos atentos estão prenhes das piores palavras e estultices jamais proferidas na República.

(*) Sandra Bitencourt é jornalista, doutora em Comunicação e Informação pela UFRGS, membro do Conselho do Observatório da Comunicação Pública e Diretora de Comunicação do Instituo Novos Paradigmas (INP). 

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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