Opinião
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7 de fevereiro de 2020
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18:00

Bolsonaro e Wong precisam um do outro; Democracia em Vertigem e American Factory, também (por Alexandre Haubrich)

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Sul 21
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Bolsonaro e Wong precisam um do outro; Democracia em Vertigem e American Factory, também (por Alexandre Haubrich)
Bolsonaro e Wong precisam um do outro; Democracia em Vertigem e American Factory, também (por Alexandre Haubrich)
Cena do documentário “Democracia em Vertigem” | Foto: Divulgação

Alexandre Haubrich (*)

Teremos no domingo uma cerimônia do Oscar esperada como poucas no Brasil. Acho que a última vez que os brasileiros se envolveram tanto com a premiação foi em 1999, quando todos torceram pelo Central do Brasil e por Fernanda Montenegro, hoje objeto do ódio dos que odeiam a democracia. Dessa vez, ao contrário de 1999, uma parte dos brasileiros, essa mesma que odeia a democracia, irá torcer contra – vejam só – um filme chamado Democracia em Vertigem. Nesse grupo, estão inclusos personagens como Pedro Bial, associado ao Instituto Millenium (órgão de defesa do grande empresariado), e integrantes do atual governo federal, que utilizam até mesmo recursos públicos para atacar a cineasta brasileira Petra Costa, que escreveu e dirigiu o filme. Um dos concorrentes de Democracia em Vertigem na disputa pelo Oscar de melhor documentário é, na verdade, um complemento fundamental para entender o que há por trás da história contada por Petra: American Factory, ou Fábrica Americana, dirigido por Steven Bognar e Julia Reichert e produzido por Jeff Reichert e Julie Parker Benello, da produtora Higher Ground Productions, propriedade de Barack e Michelle Obama.

Golpe, crises e precarização trabalhista

Em Democracia em Vertigem, Petra Costa conta a história do golpe de 2016 no Brasil, com pitadas da ascensão do bolsonarismo. Mostra, enfim, a vertigem da democracia no Brasil, que parece cada vez mais em processo de desmaio graças ao avanço do autoritarismo institucional e do ódio social. Narra as origens do golpe nas manifestações dos patos da Avenida Paulista, na pressão da mídia hegemônica pela derrubada do governo, nas articulações de deputados e senadores para derrubar a presidenta eleita, Dilma Rousseff. Chega ao impeachment em si e, por fim, à ascensão fascista da ultradireita bolsonarista.

Em American Factory, a história é de uma fábrica na cidade de Moraine, que faz parte da região de Dayton, no estado de Ohio, nos Estados Unidos. Ali, na crise econômica de 2008, uma fábrica da General Motors (GM) foi fechada. Em 2014, instalou-se no mesmo local a Fuyao Glass America, empresa chinesa que produz vidros automotivos e fornece justamente para, entre outras gigantes do setor, a GM. O proprietário da Fuyao é Cho Tak Wong, cuja fortuna é estimada em mais de 2 bilhões de dólares. Mas os trabalhadores e as trabalhadoras da Fuyao em Ohio, que ganhavam em média 28 dólares por hora quando trabalhavam diretamente para a GM, recebem, da empresa chinesa, 12 dólares a cada hora.

Para além dos baixos salários, o documentário mostra a precarização do trabalho, o aumento da pressão sobre os trabalhadores e dos acidentes laborais, o esforço da empresa para desestimular a participação sindical (esforço esse que vai da pressão ideológica às demissões), as tentativas de quebra da legislação trabalhista estadunidense. Mostra, ainda, a atuação dos supervisores para pressionar os operários e a tentativa de copiar o que a fábrica faz na China, ampliando em muito a exploração, a dominação, a atomização e o descarte dos trabalhadores.

Irmãs siamesas

Não é difícil traçar um paralelo entre as realidades narradas pelos dois documentários. A verdade é que são duas realidades irmãs siamesas. O golpe de 2016 é fruto da sanha exploradora do capital. Seu objetivo central, assim como o do bolsonarismo, em meio às bravatas e às disputas ideológicas, é justamente a ampliação da exploração dos trabalhadores e das trabalhadoras e do controle do capital sobre as instituições, o mundo do trabalho e as práticas sociais.

Não foi por acaso que Michel Temer, o presidente do golpe, admitiu em entrevista de setembro de 2016 que Dilma fora retirada da Presidência por não seguir o que havia sido apontado na “Ponte para o Futuro”, documento no qual o PMDB (depois transformado em MDB, envergonhado) apresentava seu projeto de país – quando o documento foi divulgado, Temer ainda ocupava a vice-Presidência. Um dos itens da “Ponte para o Futuro” tratava justamente da “flexibilização” e “modernização” das leis do trabalho. Esse item seria posto em prática pouco depois de Temer arrematar a Presidência, com a reforma trabalhista aprovada em 2017. Essas mudanças nas regras laborais promovidas pelo governo golpista nada mais são do que a concretização legal de parte do sonho dourado de Cho Tak Wong e de outros empresários bilionários e milionários: o afrouxamento das regras de proteção aos trabalhadores.

Para os trabalhadores e as trabalhadoras, o pesadelo

O que é o sonho dos donos do capital, é o pesadelo dos trabalhadores e das trabalhadoras. Os funcionários da Fuyao Glass America têm todas as pioras nas condições de vida, veem reduzida sua segurança laboral e sua estabilidade empregatícia, sofrem mais acidentes de trabalho, recebem salários menores, são mais pressionados pelas chefias diretas, não têm direito à organização coletiva. E, se não fossem as amarras legais, os diretores da fábrica deixam claro no documentário que gostariam de obrigar os trabalhadores a empilhar horas-extras.

No Brasil do golpe, da reforma trabalhista e de Bolsonaro, as amarras legais que garantem algum respiro aos trabalhadores da Fuyao são destruídas dia a dia. Trata-se de um processo que, na prática, já vinha se estabelecendo desde os anos 1990 no país, reflexo das mudanças globais nas relações de trabalho que geraram, em níveis variados, precarização no mundo inteiro, em especial nos países de capitalismo periférico. Mas, graças ao projeto de país conduzido primeiro por Temer e depois por Bolsonaro e Paulo Guedes, procedimentos antes inaceitáveis foram legalizados, enfraquecendo as redes de proteção aos trabalhadores e às trabalhadoras. Ao contrário do que os defensores de medidas como a liberação das terceirizações, a reforma trabalhista e a Medida Provisória da “Carteira Verde Amarela” pregavam e pregam, não há geração de empregos consistente, apenas o aumento assustador da precarização, o rebaixamento dos salários e saltos exponenciais e constantes da informalidade.

Em meio à crise econômica global e local, o capital se protege e os trabalhadores sofrem. O alto índice de desemprego obriga trabalhadores e trabalhadoras a aceitarem empregos de baixos salários, altas cargas horárias e poucos direitos. Se eles e elas não aceitarem, alguém aceitará, e assim o poder de barganha dos empresários aumenta, gerando um ciclo que objetiva espremer ao máximo a força de trabalho e depois descartar o trabalhador.

Organização e luta de classes

No caso de American Factory, destaca-se em diversos momentos do documentário o incômodo do dono e dos diretores da Fuyao com a intenção de alguns trabalhadores de formarem um sindicato que reunisse os mais de dois mil funcionários. Até uma empresa de consultoria externa é contratada para demover os trabalhadores da ideia, convencendo-os de que um sindicato atrapalharia as “boas” relações estabelecidas entre funcionários e empresa. Cartazes são espalhados nas paredes defendendo a não sindicalização, defensores do sindicato são perseguidos e demitidos, palestras são oferecidas para demonstrar como a negociação direta entre patrões e empregados é mais saudável para todos.

Não é diferente do que acontece no Brasil. Por aqui, a reforma trabalhista atacou diretamente os sindicatos em sua fonte de financiamento, o governo Bolsonaro feriu mais de uma vez a autonomia sindical e as campanhas antissindicais são uma constante nos setores dominantes da mídia e nas vozes dos membros do atual governo. Enfraquecer os sindicatos, nos Estados Unidos, na China ou no Brasil, é uma estratégia com o mesmo fim: dificultar a organização e a luta dos trabalhadores e das trabalhadoras por mais direitos e em defesa do respeito aos direitos já conquistados.

Por trás das diferenças culturais tão bem expressar em American Factory, o que aparece é a luta de classes. O maior ou menor nível de exploração, que o documentário ilumina, não se refere apenas aos governantes e à história institucional e cultural de cada país, mas também à luta dos trabalhadores – também vinculada, é verdade, tanto a aspectos institucionais quanto a questões culturais. É nas dinâmicas de organização, mobilização e luta que limitações à sanha do capital são formuladas e efetivadas.

Com ou sem democracia, o que importa é o lucro

A história já demonstrou em diversas ocasiões que, para o capital, pouco importa se o lucro acontece em um contexto democrático ou ditatorial. Na América Latina não faltam exemplos recentes de golpes articulados entre elites políticas e econômicas locais e estrangeiras para a implementação de políticas econômicas ultraliberais. Também não faltam exemplos um pouco mais antigos, sendo a ditadura de Augusto Pinochet, no Chile, um dos casos mais clássicos.

Se for possível manter algum verniz democrático, melhor para o capital, que consegue garantir certa estabilidade política, social e econômica. Mas, se as coisas começam a complicar e gerar mínimas ameaças, derruba-se um governo e substitui-se por outro mais afinado com as formas atualizadas de lucrar em cima dos trabalhadores.

O governo Bolsonaro, mesmo eleito (via fake news, dribles à legislação eleitoral e o impedimento da candidatura favorita, destaque-se), não foge à regra. Tenta impôr pautas morais ao debate público, atacando mulheres, negros e negras, indígenas, LGBTs, etc. Busca construir no “comunista”, no “petista” e no “vagabundo” as encarnações de inimigos comuns do “cidadão de bem”. E, com esse posicionamento discursivo-ideológico, legitima junto a uma parcela da população uma política econômica de destruição dos direitos dos 99%. Bolsonaro e o bolsonarismo, com todo seu ódio às diferenças, são, no fim das contas, instrumentos para o lucro dos Wongs daqui (dos quais os exemplos são conhecidos) e de fora do país.

As pessoas precisam da democracia e a democracia precisa das pessoas

No final de American Factory, aparecem questionamentos rápidos sobre o processo de automação das fábricas, com a previsão do fechamento de vagas de emprego na Fuyao. Abre-se, aí, uma porta para uma discussão que pode parecer de outra natureza, mas que é inseparável, neste momento histórico, do debate e dos embates em torno dos direitos dos trabalhadores e das trabalhadoras.

O necessário e urgente debate sobre a automação das fábricas e dos demais espaços de trabalho, no contexto de avanço das novas tecnologias sobre todo o tecido social, não está separado das disputas entre trabalho e capital. As mudanças técnicas pelas quais as sociedades atuam passam podem tanto servir para aumentar o lucro dos donos do dinheiro quanto para liberar tempo dos trabalhadores sem que estes percam ganhos salariais. Qual dos dois caminhos irá prevalecer irá depender apenas dos resultados parciais da luta de classes.

Certo é que, para que não se avolume o processo/ciclo atual de ampliação do desemprego estrutural e do exército de reserva, retirada de direitos, precarização do trabalho e ultraexploração, é preciso uma democracia verdadeira, que garanta espaços de participação e deliberação do conjunto da população tanto nas organizações de trabalhadores quanto nos âmbitos do Estado. Em que pese críticas justas e necessárias a ambos os filmes, esse é um dos importantes recados que nos deixam: a cada dia em que perdemos a batalha pela democracia, perdemos um pouco mais o horizonte da emancipação. E a cada dia em que o descarte de pessoas prevalece, a democracia vai se apagando.

(*) Jornalista e cientista social, mestre em Comunicação

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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