Opinião
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5 de fevereiro de 2020
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10:43

Anormal (por Wilson Ramos Filho)

Por
Sul 21
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Foto: Divulgação

Wilson Ramos Filho (*)

O Rio de Janeiro sempre teve algo de síntese da brasilidade, por vezes antecipando tendências.

Durante boa parte da ditadura militar foi governado pelo partido da oposição consentida, com o moderado chaguismo. Em 1982, entretanto, elegeu o “radical” Leonel Brizola como governador, apesar da Rede Globo, derrotando ao mesmo tempo todos os “filhotes da ditadura” como o valente gaúcho gostava de se referir a alguns de seus adversários na Arena e no MDB, antecipando o principal confronto ideológico que marcaria a década de oitenta.

Em sentido inverso, depois do Golpe de 2016, os cariocas e fluminenses gabaritaram, erraram em cem por cento de suas escolhas nas eleições majoritárias. A tendência que se anunciava com a escolha de Crivella para prefeito da capital se confirmou com a expressiva votação em Bolsonaro e na eleição do governador e de dois senadores de extrema-direita em 2018. O Rio de Janeiro sintetizou com louvor algo visível quando se analisa a hegemonia da direita no Brasil brasileiro, mulato ariano, inzoneiro e enzoneiro, terra de nosso senhor.

Nestes tempos sombrios, vale a pena observar o que ocorre lá se quisermos imaginar os resultados das próximas eleições municipais que ocorrerão dentro de poucos meses em todo o país. Na antiga Sede da Corte, mais que em outras capitais, é normal a diversidade em várias dimensões da vida. Tenho passado bastante tempo na cidade nos últimos anos e posso compará-la com Curitiba. O que é normal no Rio, em Curitiba seria excentricidade, embora a recíproca não seja verdadeira.

O samba da Mangueira deste ano contém indícios de crítica ao Messias das arminhas com a mão, com um enredo sobre Jesus da Galileia (quase escrevi da goiabeira, ato falho de minha parte) e seu contexto – o mesmo personagem que, com seus familiares e amigos, está em quase todos os discursos de Crivella, Witzel e Bolsonaro, e no universo de sentidos dos eleitores deles – embora com a promessa (a ser conferida) de crítica social no Sambódromo. No Rio é normal o sincretismo. Católicos celebram entidades da umbanda e do candomblé e ateus se utilizam de interjeições de fundo religioso, evangélicos praticam banhos de descarrego, tudo junto e misturado, como se ouve nas ruas. Em Curitiba isso não seria normal, soaria contraditório.

No dia de Iemanjá, genuína entidade africana, representação autêntica das tradições ancestrais, deusa branca como uma europeia, um bloco de carnaval no Leme reuniu centenas de foliões. A bandinha, metais e percussão, por três horas embalou um animado grupo de devotos e de turistas curiosos com a quantidade de pessoas que lançavam flores ao mar. A maioria das músicas não era composta de temas carnavalescos ou religiosos, o batuque não era de terreiro; o repertório transitava de tangos como besame-mucho a trilhas musicais de filmes estadunidenses, passando por sucessos de Rita Lee e Cazuza, tudo em ritmo de samba. A galera se divertia, pulava, ensaiava passos e se encharcava de chuva, suor e cerveja. Ao final, depois do óbvio aiaiaiai-tá-chegando-a-hora, os instrumentos de sopro silenciaram para que a bateria marcasse o compasso para um oleoleolá-lulá-lulá. Ouviram-se vários gritos de Marielle-vive enquanto, contrariados, muitos se afastaram reclamando que ali não era lugar para aquilo. No Rio ninguém estranhou, em Curitiba isso não seria normal. Era capaz de baterem em quem tivesse tamanha petulância. No Rio, os inconformados apenas saíram de perto, resmungando.

Mais adiante, duas dezenas de militantes, todos com mais de cinquenta anos, camisetas alaranjadas, distribuíam panfletos de divulgação do programa do Partido Novo. Eram pessoas bem-de-vida, condição denunciada pela fraseologia do grupo que aproveitava os festejos para difundir seu ideário. Não havia nenhum grupo ou partido de esquerda fazendo o mesmo ou reclamando que ali não era lugar para aquilo. No Rio isso também é normal, principalmente em Copacabana, onde moram milhares de funcionários públicos aposentados e elegantes pensionistas daqueles que foram e são da pátria a guarda. Curitiba não precisa desses voluntários para a difusão dos dogmas neoliberais. Terra de ridente paisagem pela riqueza que encerra,

Curitiba tem a imagem dum paraíso na terra, todos sabem, pela voz de seu bufão alcaide. Os inofensivos sacis e garbaldis fazem a festa sem misturanças no deteriorado centro histórico. Cada coisa em seu lugar.

O Rio é diferente, plural, diverso, contraditório. E talvez por isso se constitua em síntese antropológica e política do resto do país.

Um carioca, anônimo, me atingiu. Não fisicamente, tranquilizo-os. Tinha uma cara boa, sorriso franco, de bem com a vida. Na camiseta exibia o epitáfio, demasiadamente carioca, de nossa época; não quer nada de mais, é uma pessoa normal, deseja apenas ser feliz do jeito que der. Não é de esquerda, nem de direita, demonstra estar convicto disso. Não quer saber quem matou Marielle ou conhecer o conteúdo das propostas do Partido Novo, ou de qualquer outro. Não se importa com política. O que lhe basta está estampado na vestimenta. Ouvia música sertaneja, em decibéis acima do razoável, na caixinha JBL, essa invenção diabólica, e sambava ao som da voz fanha de uma música-de-corno com guitarras e acordeon, sincretismo musical, guia de contas vermelhas no pescoço, fitinhas coloridas nos punhos, chinelo de dedo, bermuda de surfista e camiseta com dizeres premonitórios de um porvir medieval, ameaçadoramente normalizador, com uma proposta concreta de vida em sociedade a me impactar.

FAMÍLIA
IGREJA
FUTEBOL e
CERVEJA

Verdadeira receita da felicidade para pessoas normais, estas quatro palavras, grafadas em preto na camiseta branca, exprimem uma plataforma política simples, direta, fácil de entender. Normal. Sedutora, acima de tudo, sincrética síntese de um desejo individual com um projeto coletivo conservador. Família, igreja, futebol e cerveja. O resto a gente arruma, dá um jeito, se deus quiser, normalização tocante de nossa realidade atual.

Rita Lee, a roqueira insubmissa, muitos anos atrás, cantou irônica querer ser normal  em Curitiba, lembrou-me meu compadre Mauro Auache.

“Saudades da terra
Daquela vidinha boa
Entre um milagre e uma guerra
Quando Deus era brasileiro
E ria-se à toa
Lá no sul do Cruzeiro
Destino desejo
Santo pandemônio
Saudades do Ozônio
Da minha infância querida
Quero o essencial da vida
Quero ser normal em Curitiba
Saudades da terra daquele planeta azulzinho
Entre Vênus e Marte quando arte era puro dinheiro
E o estranho no ninho
Vinha lá do estrangeiro
New York, Paris
É impossível ser feliz
Saudades da Elis
Da minha infância querida
Quero o essencial da vida
Quero ser normal em Curitiba
Renascer de parto natural
Mamar numa doce muxiba
Crescer num país tropical
Supermercado em Carapicuíba
Manter o ciclo menstrual
Noivar, casar com o Giba
Viver de aumento salarial
Campeã de buraco e biriba
Quero o essencial da vida
Quero ser normal em Curitiba”.

Ao contrário do Rio de Janeiro, sempre contraditório, minha Curitiba natal, linda jóia feita de luz e de flores, de fato, é a capital mais normal do país, com milhares de habitantes normais que certamente envergariam garbosos aquela camiseta do felizão que sambava ao som do brega sertanejo, não vendo incompatibilidade entre seus passos curtos – só no sapatinho – e o ritmo meloso que reverberava lamentos de infortúnio amoroso.

Cada cidade a seu modo, nesta áspera era bolsonara, tende à normalidade e à normalização do que é ou deveria ser excepcional e causar indignação: desigualdade social obscena, arbitrariedades judiciais, violência policial covarde, fundamentalismos, de mercado e religiosos, elementos de um tipo peculiar de desesperançado fascismo social, mesmo neste período pré-carnavalesco de fugazes alegrias inventadas.

Não, não sou e não quero ser normal, nem em Curitiba, nem no Rio. Sou esquisito.

(*) Jurista, Doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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