Opinião
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21 de janeiro de 2020
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21:05

O ‘caixa dois’ de Moro e o domínio do fato (por Marcelo Danéris)

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O ‘caixa dois’ de Moro e o domínio do fato (por Marcelo Danéris)
O ‘caixa dois’ de Moro e o domínio do fato (por Marcelo Danéris)
Jair Bolsonaro e Sérgio Moro. Foto José Cruz/Agência Brasil

Marcelo Danéris (*) 

“Acho que ali tem um monte de bobageirada”, disse o ex-juiz e atual Ministro da Justiça, Sergio Moro, no Programa Roda Viva do dia 20 de janeiro de 2020. Em tempos nos quais inclinações nazifascistas do governo Bolsonaro ficaram vergonhosamente expostas, lembro o jurista e filósofo alemão Carl Schmitt. Em “A Tirania dos Valores”, Schmitt afirma que as justificativas de conduta decorrentes de práticas ex officio costumam se apoiar na razão instrumental do “agente virtuoso”, que omite do público sua ambição, e supõe ser portador de valores superiores, com legitimidade inata para garantir a aplicação das penas devidas, e por, alegadamente, representar “a vontade geral do povo”, em nome da justiça, mesmo que sem respaldo na lei. Com este postulado, firma sua inequívoca razão para desintegrar o direito do outro, e agir à sombra da Constituição e do devido processo, justificado pelos valores que representa e os fins que objetiva.

Mais de sete meses depois das primeiras revelações do conteúdo das mensagens de WhatsApp entre a Operação Lava-Jato e o então juiz Sergio Moro, publicadas pelo site The Intercept Brasil e pelo jornal Folha de São Paulo, que envolviam, especialmente, o processo de julgamento do ex-presidente Lula, um fato ficou evidente ao País: para garantir o sucesso de objetivos políticos inconfessos e a condenação do réu-candidato, Moro se utilizou de “recursos judiciais não contabilizados”.

Conforme as conversas reveladas, Moro recebeu informações e participou de diálogos com os procuradores “por fora” dos autos do processo, orientou suas condutas, especialmente do procurador Deltan Dallagnol, sugeriu ações à Operação Lava-Jato, planejou estratégias de impacto político, validou provas e descartou outras, deu conselhos, ofereceu pistas e antecipou decisões. Moro inaugurou sua própria versão de “Caixa 2”, no caso, na esfera do processo judicial brasileiro, mimetizando as praticas políticas criminosas que condenava. A atuação ex officio do juiz, seja em favor de uma das partes ou por interesses oblíquos, além de comprometer de todo o processo, revelou a utilização de recursos análogos aos utilizados por políticos envolvidos em caixa dois.

Provavelmente alguns espertos do Direito se apressarão em afirmar que o crime de “caixa dois jurídico-processual” não existe e tão pouco está tipificado na Lei Orgânica da Magistratura Nacional, portanto não há como enquadrar nem o crime, nem a pena. Dirão ainda que o direito moderno e o princípio da Reserva Legal não permitem a aplicação da analogia in malam partem, ou seja, contra o acusado. Ora, primeiro é preciso lembrar que o crime de caixa dois tampouco está tipificado no Código Eleitoral brasileiro. O caixa dois na esfera política tem por objetivo obter recursos financeiros não contabilizados que garantam as condições necessárias para o bom desempenho eleitoral, com vistas a impulsionar a carreiras com mandatos ou cargos. O “caixa dois processual” tem por objetivo acessar recursos judiciais “não contabilizados”, fora dos autos, para garantir condenações em determinados julgamentos que possam impulsionar carreiras com cargos ou mandatos.

O enquadramento de políticos e partidos na prática de caixa dois está apoiado na combinação de pelo menos três fontes, a saber: o Código Eleitoral; a lei sobre crimes do colarinho branco, Lei 7.492/86; e a lei sobre crimes contra o sistema financeiro nacional, Lei 8.137/90. Portanto, afastando a analogia in malam partem, no caso em análise, para o “caixa dois” de novo tipo, inaugurado por Moro, talvez a melhor combinação de normas legais seja o Código Eleitoral; a Lei Orgânica da Magistratura Nacional, de Ética da Magistratura e o Código de Processo Penal.

De acordo com o artigo 350 do Código Eleitoral, “Omitir, em documento público ou particular, declaração que dele devia constar, ou nele inserir ou fazer inserir declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, para fins eleitorais [judiciais?]: Pena – reclusão até cinco anos e pagamento de 5 a 15 dias-multa, se o documento é público. (…) Parágrafo único – Se o agente da falsidade documental é funcionário público e comete o crime prevalecendo-se do cargo ou se a falsificação ou alteração é de assentamentos de registro civil, a pena é agravada”. Conforme o art. 36, Inc. III, da Lei Orgânica da Magistratura Nacional, “É vedado ao magistrado manifestar, por qualquer meio de comunicação, opinião sobre processo pendente de julgamento, seu ou de outrem, ou juízo depreciativo sobre despachos, votos ou sentenças, de órgãos judiciais, ressalvada a crítica nos autos e em obras técnicas ou no exercício do magistério”. O art. 49 prevê ainda que: “responderá por perdas e danos o magistrado, quando: I – no exercício de suas funções, proceder com dolo ou fraude; Il – recusar, omitir ou retardar, sem justo motivo, providência que deva ordenar o ofício, ou a requerimento das partes”.

O Código de Ética da Magistratura, art. 8º diz “O magistrado imparcial é aquele que busca nas provas a verdade dos fatos, com objetividade e fundamento, mantendo ao longo de todo o processo uma distância equivalente das partes (acusação e defesa), e evita todo o tipo de comportamento que possa refletir favoritismo, predisposição ou preconceito”. O Código de Processo Penal, art. 254, determina que o juiz deva declarar-se suspeito caso “tiver aconselhado qualquer das partes”.

“A defesa já fez o showzinho dela”, disse Sérgio Moro em uma das tantas mensagens divulgadas enquanto julgava Lula, sugerindo a Deltan Dallagnol publicar uma nota oficial contra a defesa. Os diálogos ocorreram entre os anos de 2015 e 2018, e revelam mais que a coordenação de ações e a autoridade objetiva exercida por Moro sobre os procuradores da força-tarefa da Lava-Jato, revelam crimes cometidos e o “domínio do fato”. Neste último, a Ação Penal 470, que levou a condenação do ex-ministro José Dirceu, se aplica da mesma forma ao ex-juiz não por analogia, mas por jurisprudência. A tese do domínio do fato, em síntese, caracteriza os crimes de ação praticados com intenção nos quais o autor é aquele que tem o domínio da parte e do todo dos atos criminosos praticados, tanto como executor direto, quanto como partícipe funcional, ou mediato. Ou seja, também é aquele que domina a realização do crime, planejando, comandando e instruindo a sua execução e continuidade, afastando o critério formal-objetivo que identifica unicamente o autor material do ato criminoso.

A suposta conformidade legal da Operação Lava-Jato e do julgamento de Lula, que Moro e Dallagnol buscam desesperadamente sustentar, choca-se com a Constituição Federal e com os princípios internacionais do devido processo legal em um Estado Democrático de Direito. A Declaração Universal dos Direitos Humanos que, com o fim da Segunda Guerra Mundial e a derrota da Alemanha nazista – então sede do “Tribunal do Povo”, no qual o juiz era ao mesmo tempo acusador e julgador –, destaca claramente que “todo ser humano tem direito, em plena igualdade, a uma justa e pública audiência por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir sobre seus direitos e deveres ou do fundamento de qualquer acusação criminal contra ele”. O princípio da imparcialidade do magistrado é um direito universal do ser humano, pressuposto que determina a validade do processo no Estado de Direito. A nossa Constituição Federal de 1988 consagrou este princípio no artigo 5º, inciso LIV.

Em 2016, enquanto trocava mensagens com Deltan, o então juiz Sergio Moro, em pronunciamento na Câmara dos Deputados, afirmou que o caixa dois “muitas vezes é visto como um ilícito menor, mas é trapaça numa eleição”. Em 2017, disse em palestra na Universidade de Harvard que “caixa dois é um crime contra a democracia”. A flagrante dissimulação da própria conduta ética faz lembrar a assertiva que sintetizou o ethos do período de exceção no Brasil: “às favas, senhor presidente, neste momento, com todos os escrúpulos de consciência”, dita pelo então ministro do Trabalho do governo Costa e Silva, Jarbas Passarinho, durante reunião para edição do Ato Institucional nº5, em dezembro de 1968. Tão desejado por Flavio Bolsonaro e Paulo Guedes.

Em abril de 2018, Lula foi preso; em outubro, Bolsonaro foi eleito presidente da República, e em janeiro de 2019, Sérgio Moro tomou posse como Ministro da Justiça. Tal demonstração de desassombro pode ter lhe garantido o posto, e quem sabe, uma candidatura à presidência ou uma futura indicação ao Supremo Tribunal Federal. In Bolsonaro he trusts. Para Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, em “Como as democracias morrem”, “as instituições se tornam armas políticas, brandidas violentamente por aqueles que as controlam contra aqueles que não as controlam. É assim que autocratas eleitos subvertem a democracia – aparelhando tribunais e outras agências neutras e usando-os como armas, comprando a mídia e o setor privado (ou intimidando-os para que se calem) e reescrevendo as regras da política para mudar o mando de campo e virar o jogo contra os oponentes”.

Às favas os princípios da imparcialidade e do julgamento justo, portanto. “Dura lex sed lex” para os outros, noves fora a história, Moro, sob proteção do foro privilegiado, antes criticado, e tão semelhante aos tantos políticos investigados por caixa dois, nega a autenticidade das mensagens, não reconhece as provas, alega não lembrar dos fatos, ataca denunciantes, persegue delatores, prevarica acessando informações de investigações sigilosas, e tenta destruir possíveis provas. Para a história, seu correspondente não haverá de ser o juiz italiano, Gherardo Colombo, responsável pelos julgamentos da Operação Mãos Limpas na Itália da década de 1990, como tenta reivindicar para si. Ao invés disso, sua figura poderá ficar mais associada ao lado de nomes como Roland Freisler e Quartus de Wet.

Logo após os vazamentos, em um de seus tantos tuítes, escreveu aos que se manifestavam em seu apoio: “eu vejo, eu ouço”. Sete meses depois de todos terem ouvido e lido, Moro segue ministro, Lula segue condenado e a Justiça continua muda. Ou melhor, Glenn Greenwald, jornalista do The Intercept Brasil, foi denunciado pelo Ministério Público Federal em janeiro deste ano.

(*) Cientista político

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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