Opinião
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13 de janeiro de 2020
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20:18

O ardil marcheziano da adaptação (por Jorge Barcellos)

Por
Sul 21
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O ardil marcheziano da adaptação (por Jorge Barcellos)
O ardil marcheziano da adaptação (por Jorge Barcellos)
Prefeito Nelson Marchezan Jr.. Foto: Guilherme Santos/Sul21

Jorge Barcellos (*)

O que diz o Prefeito Nelson Marchezan Jr. quando sela o destino dos cobradores de ônibus com um projeto de lei que propõe sua extinção? Que sua função não é mais necessária e que, portanto, eles devem se adaptar. Não é o mesmo argumento que o Prefeito usou na extinção dos guardadores de carros?  E não foi o mesmo argumento que governantes antes dele disseram a carroceiros quando outra lei os retiraram das ruas?

Fala-se o tempo todo que tudo isso é “efeito do neoliberalismo”, “consequências da evolução tecnológica”, etc, mas é exatamente disto que se trata? Barbara Stiegler  em “Il fault s’adapter, sur nouvel impératif politique” (Gallimard, 2019) diz que não.  A autora dedicou-se a estudar a figura de Walter Lippman (1889-1974) cujas ideias ajudaram a definir o neoliberalismo. A autora encontrou nesse tipo de argumento fontes evolucionistas, quer dizer, ele é baseado na ideia de que os indivíduos devem se adaptar ao ambiente neoliberal. O “il faut s’adapter” veio substituir o “laisse-faire”, isto é, enquanto que o problema nos anos 10-20 era a adaptação dos indivíduos ao novo ambiente resultante da revolução industrial, hoje o problema é a adaptação dos trabalhadores ao ambiente resultante da revolução tecnológica. Em ambos os casos, a questão é como reabilitar trabalhadores em seus novos ambientes enquanto veem suas habilidades diminuídas e a solução é um líder ou especialista capaz de libertar o trabalhador de seu ambiente, para moldá-lo, transformá-lo e adaptá-lo ao ambiente globalizado como fim de uma evolução. Este é o lugar almejado pelo Prefeito.

O pressuposto é que a ideia de se adaptar ao trabalho torna o mercado mais eficiente. Ora, isso implica que o neoliberalismo se alimenta de uma teoria da competição, de uma concepção de natureza humana evolucionista que exige que reconheça que os trabalhadores são imperfeitos, inadequados para as condições criadas pelo neoliberalismo e que devem se transformar rapidamente para o novo mundo que veem nascer. Não é exatamente esta a posição dos projetos de lei de Nelson Marchezan Jr que ataca estes profissionais e seu trabalho? O uso constante do argumento de que os trabalhadores “precisam se adaptar”, sejam eles motoristas ou professores, encarna o neodarwinismo do Prefeito que se baseia na aceitação da ideia de evolução das sociedades humanas. O papel do Estado não é apenas criar condições para o mercado, mas também de trabalhar a sociedade inclusive, intervindo de forma invasiva na vida dos indivíduos. Tomando o mercado como destino final do homem, o Prefeito acredita que o desemprego é o fim natural de determinadas classes de trabalhadores como cobradores, guardadores de carros, carroceiros, entre outros.

O problema é que isso reforça o caráter antidemocrático da gestão de Marchezan. Ao propor um destino final para os cobradores e guardadores de carros, ele não oferece a opção de escolha para estes trabalhadores, eles não têm o direito de ficar na sua profissão e nesse sentido, suas leis são um notável exemplo de biopolítica na capital (Michel Foucault). A proposição de um senso de evolução das profissões e o estabelecimento de um objetivo predeterminado para estes profissionais não passa de arbítrio puro: frente a inadequação dos cobradores ou guardadores de carro ao mundo, a conclusão é que são trabalhadores em desajuste com o mundo e que precisam aprender novas profissões. Nunca é a hipótese radical, de que é o mundo que não é adequado para suas potencialidades. Por isso Stiegler, inspirado em John Dewey, defende a reabilitação do ambiente capitalista para o homem. Para o Prefeito, é o contrário.

Cobradores e guardadores de carros, na visão de Marchezan, passam a ser aqueles que precisam serem reabilitados, trazidos novamente para o mundo do trabalho. Produto de uma má orientação dos impulsos, ficar fixado numa profissão é errado e por essa razão, Marchezan convoca os especialistas que ministrarão cursos de atualização para novas profissões para estes trabalhadores. A vontade destes trabalhadores não é considerada, ou é considerada equivocada, visão autoritária que significa que para o Prefeito estes trabalhadores são irracionais, fixados em estágios. Ora, considerar tais profissionais como “com defeito”, buscar reajustá-los aos “novos tempos”, é justamente parte da ideologia neoliberal que vê o povo como massa informe, que precisa de um “guia” para ser adaptado, outra forma de liquidar a democracia na cidade por que retira o poder de decisão dos trabalhadores para dá-lo ao Prefeito.

“Precisam se adaptar” é um mantra que é preciso combater urgentemente pois seu objetivo é despersonalizar trabalhadores, tratá-los como massa, retirar seu direito democrático de opção de trabalho, substituíndo pela decisão dos especialistas de plantão em geral, e do gestor em particular. Ora, isso só é possível de se fazer pelo consentimento dos trabalhadores e pela existência de uma opinião pública defensora da ideia de que os trabalhadores devem se contentar com as propostas de trabalho que o mercado oferece. Marchezan encontrou uma forma sutil de escapar dos conflitos, os projetos do prefeito têm como pressuposto um ardil evolutivo, darwiniano. Ora, hábitos podem ser tão frutíferos quando a inovação, o que faz falta nas iniciativas do Prefeito é justamente levar em consideração que, frente a emergência de novas tecnologias no transporte e no espaço público, é imaginar outra função para os cobradores, para guardadores de carros, propor-lhes a experimentação de novas rotinas de trabalho, enquanto fazem seu próprio trabalho. Era isso que cobradores faziam, cobravam, mas também auxiliavam o cobrador, cadeirantes, etc. Incapaz de criar alternativas no trabalho, Marchezan não convida os atingidos para um debate sobre seus projetos, revela a preferência pelo caminho da arbitrariedade, da utilização de pressupostos contingentes cujo efeito são projetos de lei que retiram a deliberação coletiva das categorias atingidas.

(*) Historiador, Mestre e Doutor em Educação. Autor de O Tribunal de Contas e a Educação Municipal (Editora Fi, 2017) e “A impossibilidade do real: introdução ao pensamento de Jean Baudrillard “(Editora Homo Plásticus,2018), é colaborador de Sul21, Le Monde Diplomatique Brasil, Jornal do Brasil, Carta Maior, Folha de São Paulo e do Jornal O Estado de Direito. Mantém a página jorgebarcellos.pro.br.

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