Opinião
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25 de janeiro de 2020
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10:30

Entre o fascismo e o capitalismo: as “alas ideológicas” do regime bolsonarista (por Fernando Nicolazzi)

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Sul 21
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Entre o fascismo e o capitalismo: as “alas ideológicas” do regime bolsonarista (por Fernando Nicolazzi)
Entre o fascismo e o capitalismo: as “alas ideológicas” do regime bolsonarista (por Fernando Nicolazzi)
Roberto Alvim, ex-Secretário Especial da Cultura, do governo Bolsonaro. (Foto: Reprodução)

Fernando Nicolazzi (*)

“O fascismo usa a retórica da ideologia, mas constitui de fato um fenômeno de marketing, a propaganda do poder.”
Toni Morrison

Roberto Alvim pesou a mão e foi exonerado do cargo. O vendaval político e midiático foi maior que sua capacidade de se segurar em algum galho frágil da imensa árvore do autoritarismo bolsonarista. Mas a árvore tem outros galhos mais fortes e longas raízes que se ancoram fundo no solo, está longe de se abalar com esse vento recente e passageiro.

Alvim foi mais um dos arrivistas ineptos que tentou a sorte no regime e foi engolido por ele. Houve outros e ainda haverá muitos. É da lógica de um regime em que o improviso inconsequente e o anseio destrutivo se converteram em principal projeto de governo. Certamente, o teatrólogo não será abandonado e seus préstimos serão compensados de uma forma ou de outra. Mas seus poucos minutos de infâmia sob os holofotes do “mito” já acabaram. No final das contas, ele não era o Goebbels que pensava ser.

Mas há algo no episódio que chama a atenção e que diz respeito à forma como se está naturalizando a barbárie fascista no país. Consolidou-se na mídia, e uma jornalista como Vera Magalhães é das suas divulgadoras mais constantes, a ideia de que o regime bolsonarista é composto por “alas” variadas, diferentes entre si e que, em muitos casos, seriam contrapostas em seus intuitos políticos, em seus ideais e em suas formas de atuação às “áreas técnicas” do governo.

Assim, por exemplo, há uma “ala ideológica”, cujo núcleo duro se ampara predominantemente nos dogmas olavistas e que orienta as políticas voltadas para a educação, a cultura e as relações internacionais. Há ainda outros setores mais ligados ao movimento evangélico que supostamente seriam uma ramificação dessa “ala ideológica”, cujo conservadorismo lhe é próximo, mas que, na verdade, não se confunde totalmente com ela, pois seus fundamentos são outros e sua estrutura é muito mais assentada socialmente que a base olavista. A política nacional para os direitos humanos é orientada por tais setores.

De qualquer forma, na platitude do jornalismo preocupado mais com etiquetas do que com análises, tudo isso conformaria o chamado núcleo “ideológico” do regime, que normalmente é tratado no limiar entre o risível da chacota e o incômodo do absurdo. O trato dado a um ministro como Weintraub ainda permanece, pelo menos para os grandes jornais que compartilham ideias com o ministro, no primeiro lado do limiar. O trato conferido a Alvim, pelo contrário, ultrapassou a chacota e o absurdo da situação toda garantiu sua demissão.

Mas, olhando com atenção, não são tão nítidas assim as diferenças entre um e outro e seus interesses no fundo se assemelham. O modus operandi é o que definiu e define o destino de cada um e Alvim realmente pesou a mão. Sobre isso, o professor de filosofia da PUC-RJ Rodrigo Nunes escreveu recentemente um ótimo artigo publicado na Folha de São Paulo.

Mas no cotidiano jornalístico, o regime não é feito apenas dessa chamada “ala ideológica”. Como se fossem uma espécie de contraponto à infantilidade dos olavistas e ao destempero dos evangélicos, haveria alas que nem recebem o nome de “ala”, dado o suposto fundamento técnico de suas ações e a suposta necessidade modernizante de suas medidas. Não seriam alas, mas sim “áreas”, como se a simples troca terminológica lhes garantissem um profissionalismo maior. As políticas nas “áreas” da economia e da segurança pública são os exemplos mais evidentes disso.

Ora, é justamente essa escolha o que chama a atenção. Por que algumas “alas” são consideradas “ideológicas” enquanto outras são tratadas como se fossem imunes e avessas a qualquer tipo de ideologia? Seria realmente possível, no âmbito do funcionamento do regime, desvencilhar tão facilmente o reacionarismo das políticas voltadas para o campo cultural da destruição neoliberal imposta pelas políticas econômicas? O fato de muitos dos seus colaboradores se definirem como “conservador nos costumes e liberal na economia” não mostra justamente que se trata de duas faces de uma mesa moeda?

Não à toa, em um jornal como a Folha de São Paulo, por exemplo, vimos matéria recente, assinada por Júlia Moura, cuja manchete é mais do que significativa desse anseio por desvencilhar uma coisa da outra. Segundo a chamada, referindo-se diretamente ao caso Alvim, “citação nazista na cultura e agenda econômica não se misturam”, complementando com o já corriqueiro tom declaratório das matérias: “dizem analistas”.

A notícia conta que, mesmo após o profundo incômodo social provocado pela fala do ex-secretário, o mercado trabalhava em alta, avesso às minúcias morais que corrompem o tecido social. Era como se a sociedade, essa coisa imperfeita formada por pessoas e seus contraditórios valores éticos, não pudesse de forma alguma atrapalhar a precisão técnica da economia, com seus exatos valores monetários. De acordo com um dos analistas consultados, as duas coisas não se misturam e a citação nazista de Alvim seria apenas mais uma “polêmica do governo de Jair Bolsonaro”.

Um “analista” popular no circuito midiático, como Samuel Pessôa, chegou a afirmar que a “questão moral” envolvida no episódio se resumia a um tema da “vida privada”. Alvim seria apenas “um cara maluco que falou uma coisa horrorosa e foi demitido”. O importante é que, para ele, “a economia está melhorando” e, complementando seu raciocínio, “o mercado não tem posição política”. É como se fosse tolerável o sujeito vestir uma suástica dentro de casa, desde que isso não atrapalhasse os negócios. Mas e quando ele leva essa suástica para se sentar à mesa de bar ou para o gabinete de algum ministério?

É um sentimento compartilhado por banqueiros e outros “agentes do mercado”. Para o economista-chefe do Banco Fator, o que importa é que o governo está “passando as reformas”. Até um analista judeu foi chamado para dar seu parecer. Segundo ele, que atua em empresa de investimentos, o fato “não interfere na aprovação das reformas, que é a métrica pela qual o mercado vai avaliar o governo”. Para o “mercado”, portanto, tudo não passou de uma mera “polêmica” e a “área econômica” do regime não se confunde com sua “ala ideológica”.

Mas seria tão simples e fácil tal distinção? Bastaria meia dúzia de “analistas” afirmando a supremacia do mundo das finanças sobre a sociedade para garantir uma assepsia do mercado, livrando-o dos gérmens políticos e morais que poderiam comprometer todo o sistema? O regime teria, de fato, duas faces contraditórias, uma necessária para implementar as “reformas que o país precisa” e outra dispensável, destinada apenas a causar rebuliço nas redes sociais?

Apesar do tom assertivo da manchete, ela ignora algo que está no próprio texto da matéria: a opinião (uma única!) dissonante. Segundo ela, feita por Nelson Marconi, professor da FGV, “é muito ruim tentar dissociar as duas coisas. Uma eventual continuidade desse discurso [de Alvim] gera um autoritarismo que interfere na pauta econômica e é um tiro no pé, pois em nome de uma agenda econômica, você topa a perda de liberdade da sociedade e a degradação das entidades sociais. Isso é péssimo para a economia”. Ou seja, os mercados não são assim tão avessos a questões de ordem moral.

O que a posição do professor manifesta, e que está na matéria apenas para cumprir a cota de participação dos tais “dois lados”, é justamente a indissociabilidade entre o funcionamento do mercado e os planos da moral e da política. Ao contrário do que propalam os ideólogos do neoliberalismo, o mercado não é uma entidade desprovida de moralidade ou de interesses, que é o núcleo fundante da ação política. Sobretudo, o mercado não é apenas um sistema descarnado, mas sim um conjunto de ações e regras que são praticadas e gerenciadas por pessoas de carne, osso, desejos, interesses, valores morais e que devem respeitar certos códigos estabelecidos socialmente.

Quando nos dizem que a fala de Alvim não teve consequências no mercado, na verdade está sendo dito que ela não provocou efeitos nos agentes que atuam no mercado, o pessoal da “área econômica”, pois eles consideraram tudo uma mera bravata, mais uma das polêmicas da “ala ideológica” do regime. Ora, tal posição serve apenas para omitir a própria ideologia que motiva as ações das outras “áreas”. E nesta ideologia está contida a ideia de que pouco importa a “degradação das entidades sociais” ou a destruição completa das formas de solidariedade que constituem uma sociedade, o que interessa e a manutenção da lógica expropriatória do mercado e de suas reformas.

O regime bolsonarista funciona em bloco e, embora possam parecer desconectadas, suas linhas de atuação operam em sintonia. Isso não quer dizer que a tal “ala ideológica” serviria apenas para fazer uma cortina de fumaça sobre as medidas destrutivas na economia e na segurança pública. Como se sabe, a precarização das condições materiais de existência, pauta econômica, provoca uma massa de pessoas desalentadas e excluídas dos processos sociais que precisam ser contidas pela força e pelo encarceramento, que é a pauta principal da segurança pública.

Mas o desalento e a precariedade material vêm acompanhados também por medidas que incidem decisivamente na conformação de subjetividades que possam se adequar ou se readequar ao maquinário neoliberal. Para isso, a definição singular de cultura, pautada por supostos valores essenciais da nação que visam anular o pluralismo e a diversidade, e o controle autoritário dos processos educacionais, amparados na falácia da doutrinação do marxismo cultural e no privilégio dado à família, servem como medidas de produção de sujeitos morais adequados à lógica do regime.

Esferas como as da cultura e da educação atuam justamente para mostrar que nem tudo se esgota na lógica de mercado e para evidenciar que a sociedade deve sempre ter prerrogativas sobre o mundo das finanças, não o inverso. Daí a atenção cuidadosa do regime para transformá-las ou mesmo destruí-las de modo a tornar inquestionável o predomínio do mercado, inclusive tornando-as reféns da própria lógica de mercado, como bem o demonstra o Future-se. Daí, também, o esforço em tentar dissociar uma coisa da outra, a “ala ideológica” da “área econômica”.

Não custa recordar que alguém certa vez já sugeriu que a esse escamoteamento da realidade se desse o nome de ideologia. E não chamar a ideologia de ideologia, seja ela aquela mais tosca divulgada por fundamentalistas de youtube, seja aquela aparentemente mais técnica e racional, assumida pelos “agentes do mercado”, é uma forma pueril, embora midiaticamente eficaz, de tentar esconder seu pesado caráter ideológico. Além disso, a falácia ideológica contra as ideologias é também uma estratégia para separar coisas que estão intimamente ligadas na estrutura de funcionamento do poder, chamemos elas de “ala ideológica” ou de “área técnica”.

Toni Morrison certa vez escreveu que “o fascismo produz o capitalista perfeito”. No Brasil de hoje, não há dúvidas de que o capitalismo produz o seu fascista perfeito, tornando-o, inclusive, presidente da República.

(*) Professor do Departamento de História da UFRGS

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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