Opinião
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17 de janeiro de 2020
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13:36

Brasil Paralelo, uma empresa colaboracionista (por Fernando Nicolazzi)

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Brasil Paralelo, uma empresa colaboracionista (por Fernando Nicolazzi)
Brasil Paralelo, uma empresa colaboracionista (por Fernando Nicolazzi)
“O bolsonarismo, com sua matriz ideológica olavista, se alimenta de medo e de ódio”. (Foto: Reprodução/Instagram)

Fernando Nicolazzi (*)

Nenhum regime autoritário existe sem que haja nele pelo menos duas coisas fundamentais. Em primeiro lugar, a disposição para o uso desenfreado da violência, seja ela física ou simbólica. Em segundo, uma base ideológica que justifique e dê fundamento moral a tal uso. O bolsonarismo, essa forma de autoritarismo que mescla em doses fartas e contraditórias elementos fascistas, populistas e neoliberais, já deu mostras de que dispõe e faz uso de forma bastante pragmática das duas coisas.

O responsável maior pelo regime, este a quem seus seguidores chamam de “mito”, não mede esforços para demonstrar publicamente sua tendência personalista à violência. Da mesma forma, a estrutura militarizada do aparelho repressivo no Brasil, desprovida de controles sociais eficazes, serve ao regime como garantia contra iniciativas que esbocem qualquer forma de reação. Tudo isso não é novidade e se trata da herança histórica de nossa cultura autoritária que está à disposição do regime.

O elemento que é inédito, igualmente violento e perigoso, é a base ideológica que lhe dá sustentação moral. Não é necessário muito esforço para perceber que o olavismo, seja na sua versão tarja preta, seja na mais genérica, funciona como um dos fundamentos principais da ideologia do regime. E a novidade (talvez já não tão nova assim, dado o grau de familiaridade que hoje mantemos com ela), reside tanto na mensagem (predominantemente mentiras e ofensas), quanto em seu meio (as redes sociais digitais). Por isso, de descontrolado o olavismo se tornou incontrolável. Ele transcende à figura irrisória de seu fundador. Seus efeitos também.

Olavo de Carvalho é o ideólogo que, menos por talento intelectual e mais pela disposição autoritária de seus seguidores, conseguiu estabelecer de forma bastante difusa os princípios de uma hegemonia que se ampara em dois elementos básicos: a disseminação do medo e o cultivo do ódio. Valendo-se, então, de uma estrutura de compartilhamento que não conhece limites éticos ou legais, o olavismo se espalhou pelos mais variados interstícios sociais e, com a ascensão de Bolsonaro à presidência, foi tornado política de Estado para a área da cultura, da educação, do meio ambiente e da política externa.

Entre as pessoas físicas e jurídicas que se ocupam de espalhar a palavra de Olavo pelo país, encontra-se a produtora Brasil Paralelo. Como se sabe, a empresa é responsável pela criação de conteúdos de história que conciliam falsificação documental, distorções interpretativas, preconceito religioso, inverdades históricas e desonestidade intelectual. Não é difícil comprovar este argumento.

O uso de imagens feitas de garimpeiros na década de 1980 representando guerrilheiros dos anos 70 é um caso conhecido de falsificação documental usado no relato da empresa. As distorções interpretativas encontram-se, por exemplo, quando se utiliza a realidade do império romano de mais de um milênio atrás para argumentar sobre o fim do desarmamento em nossa sociedade contemporânea. Pautada pelo fundamentalismo cristão, a história vendida pela empresa é carregada por um forte e preconceituoso sentimento anti-islâmico.

Já a afirmação de que o regime militar instaurado com o golpe de 64 se limitou, no seu início, a simplesmente cassar direitos políticos é inverídica do ponto de vista histórico e factual. Finalmente, uma empresa que ataca e se vale de ofensas infundadas contra professores e professoras como estratégia de marketing não é, em absoluto, uma empresa que prima pela honestidade intelectual. Mas o problema não para por aí.

A nova empreitada da Brasil Paralelo intitula-se, curiosa e cinicamente, “Pátria Educadora”, resgatando e distorcendo o mote utilizado pelo governo Dilma Rousseff. A divulgação do projeto, realizada em listas de assinantes de correio eletrônico, parte de uma pergunta básica: “qual a intenção do governo ao te OBRIGAR a estudar?”, com o destaque da caixa alta dado ao verbo obrigar. O texto problematiza a questão do direito social à educação, que é igualmente um dever estabelecido constitucionalmente para o Estado e para as famílias, considerando-o não apenas uma “política antiga”, mas algo que, como uma doença, “vem se agravando com o tempo”. Sim, a empresa considera o dever da educação como um problema. E quais as razões disso?

Primeiro, porque ela considera que “se você for uma pessoa de capacitada (sic) para ensinar” e quer “educar seu filho em casa” ou prefere “contratar os melhores professores do mundo”, você supostamente não poderia. Além disso, ainda de acordo com a empresa, “se surgir alguma empresa que vende educação de forma mais eficiente ou mais barata do que as opções que o governo fornece […] isso é proibido”.

Como se vê, não apenas a desinformação é a prática costumeira da empresa, mas parece ter se tornado seu vício inerente. Não há nenhuma legislação no país que proíba quem quer que seja, pessoa capacitada ou não, de educar o filho no espaço doméstico, tampouco é crime contratar os melhores ou os piores professores para darem aula em casa. Da mesma forma, não há qualquer proibição a uma empresa vender educação, por pior que soe essa expressão. As escolas privadas estão aí para desmentir os rapazes da Brasil Paralelo.

A desinformação é tão flagrante que ela é ainda colocada em negrito no texto da propaganda: “pela nossa lei, você é multado ou preso se fizer qualquer uma dessas coisas”. Nada mais falso! Note-se como a estratégia aqui é a de disseminar o medo (da multa e da prisão), que logo em seguida é convertido em ódio contra a Constituição, supostamente a grande culpada por tudo.

No meio de toda essa confusão argumentativa, que ainda tem espaço para menções ao nazismo e, como não poderia faltar, ao comunismo (essa obsessão patológica do olavismo), a empresa chega a definir os estudantes como “hospedeiros” de conteúdos chamados por eles de ideologias, como se a educação fosse, de fato, uma doença transmissível. Não à toa, lamentam que “a educação obrigatória é o primeiro passo para o governo ter nas mãos uma máquina de transmissão de ideias”. Eis aqui o grande problema para os rapazes paralelos, a existência de uma sociedade em que ideias sejam transmitidas e circulem, produzindo outras ideias.

Ou seja, o que incomoda aos alunos do Olavo, aspirantes a ideólogos do regime bolsonarista, é a capacidade da educação produzir pensamento. Acostumados a simplesmente reproduzir o que seu mestre mandou, eles se converteram em patéticos cruzados cujo inimigo é a educação formal, suas instituições e seus profissionais. Daí o ódio que manifestam constantemente contra as instituições de ensino e contra aqueles e aquelas que ali atuam. Daí também essa estratégia de propagar o medo contra as ideias e contra o pensamento. O nome disso ainda é violência moral. Obviamente, a perspectiva lucrativa de tornar a empresa uma fornecedora de conteúdo contratada pelo regime não está fora de cogitação.

Como eu sugeri mais acima, o bolsonarismo, com sua matriz ideológica olavista, se alimenta de medo e de ódio. Essas são duas coisas que não crescem espontaneamente nos campos da sociedade, tornando necessárias pessoas dispostas a cultivá-las. A Brasil Paralelo, com seus sócios e seus colaboradores, vem há algum tempo realizando esse trabalho de semeadura do autoritarismo nas terras brasileiras. Já não há mais como disfarçar, ela atua como base ideológica do regime: é uma empresa colaboracionista.

(*) Professor do Departamento de História da UFRGS.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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