Opinião
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20 de dezembro de 2019
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13:42

Uso de armas por civis (por Antônio Rangel Bandeira)

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Sul 21
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Uso de armas por civis (por Antônio Rangel Bandeira)
Uso de armas por civis (por Antônio Rangel Bandeira)

Antônio Rangel Bandeira (*)

As novas gerações não conheceram o humorista Stanislaw Ponte Preta, que disse: “As três coisas mais perigosas na vida são croquete de botequim, mulher dos outros e arma de fogo”. Será? É preciso identificar primeiro quais as causas do complexo fenômeno da violência urbana, na busca da redução dos homicídios por arma de fogo. Necessário se faz informar-nos sobre as várias análises existentes, porque são divergentes, e não abrir-se apenas para aquelas que confirmam nossas crenças. O método científico exige isenção, para que se reflita a realidade. Mas nessa busca, vários fatores dificultam essa imparcialidade: cultura infanto-juvenil impregnada de ficção violenta; associação entre identidade masculina e uso da força; reprodução de atos violentos observados ou vividos na infância; visão maniqueísta do adversário, visto como inimigo a exterminar e não a ser convencido; medo e raiva provocados pelos crimes violentos etc . Tudo isso influi na visão do problema, distorcendo a realidade com preconceitos, mitos, interesses e medos. É o que se denomina “ideologia”, valores deformadores de um enfoque imparcial, primeiro constatada por Immanuel Kant, e desenvolvida por Karl Manheim, entre outros

Divulgação

Acabo de lançar um novo livro, “Armas para quê?” (Editora LeYa, prefácio do ex-ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann), em que analiso o obscuro universo dos 17 milhões de armas que circulam no Brasil (2010), e seu impacto na segurança das pessoas. Nele reúno a experiência de ex-instrutor de armamento no Exército, e 20 anos de pesquisas e capacitação de policiais e militares de 19 países, como ex-consultor do Escritório da ONU sobre Drogas e Crimes, de Viena. Na obra, analiso com isenção os prós e os contras do uso de armas por civis, baseado nas políticas e pesquisas de países que restringem, ou que liberam, o porte de armas por civis, e seus resultados, como nos Estados Unidos, Japão, Reino Unido, Austrália, Suíça, Colômbia, Canadá, Argentina etc. Aqui, vou apenas mencionar alguns desses argumentos prós e contras, para demonstrar sua relevância.

   “Arma de fogo é ótima para autodefesa” – Ela é ótima para o ataque, e muito precária para a defesa, porque nessa última influi o “fator surpresa”. Nos assaltos, o agressor escolhe o local e o momento do ataque, e normalmente a vítima é surpreendida, e só na fantasia do cinema tem tempo de reagir. Em 1995, o então deputado Jair Bolsonaro foi assaltado por dois jovens armados no Rio, que levaram sua moto e sua pistola Glock. Os jornais divulgaram seu comentário na ocasião: “Mesmo armado, me senti indefeso”.

Alguns supõem que, contra assaltos, melhor andarmos armados. No entanto, o “fator surpresa”, mais variáveis como a experiência do meliante, a dificuldade de se atingir um alvo que se move, mais a participação de cúmplices, tornam a autodefesa armada temerária. O respeitado Violence Policy Center, dos EUA, concluiu que “para cada criminoso morto por um civil com arma de fogo em autodefesa, ocorrem 34 mortes de vítimas, 78 suicídios e 2 mortes por disparo acidental”. É raro um desfecho favorável.

“Residências protegidas com arma estão mais seguras” – Só na aparência, porque “arma atrai arma”, isto é, arma é objeto de desejo do assaltante. Segundo o FBI, “‘é mais frequente ladrões usarem armas em estados com maiores taxas de acessibilidade às armas. Ao contrário, em Massachusetts, que restringe a posse de armas, e se sabe que em geral não se tem arma em casa, na maioria dos assaltos não são usadas armas de fogo, pois a penalidade para o seu uso seria muito maior no caso do assaltante ser pego. Em casas com armas, os assaltantes já chegam atirando”. É raro o caso em que se tem a oportunidade de usar arma contra o assaltante. O mais provável é que sua arma seja roubada. De cerca de 77 mil armas apreendidas na ilegalidade em São Paulo em 1998, 71.400 haviam sido roubadas, principalmente de residências. Em 2005, os apresentadores William Bonner e Fátima Bernardes foram assaltados com uma pistola anteriormente roubada da residência de um militar reformado semanas antes. Além disso, arma em casa é um risco para a família. Se está segura num cofre, não se presta à autodefesa. Se municiada e acessível, é um perigo. Famosa pesquisa do médico Arthur Kellermann comprovou que, “nos EUA, lares com armas de fogo aumentaram o risco de homicídio interfamiliar em 2,7 vezes, os acidentes em 4 vezes e os suicídios em 11 vezes, se comparados com residências sem armas”. As maiores vítimas são as mulheres: 40% das mulheres mortas por arma de fogo no Brasil foram assassinadas por seu cônjuge, ou ex-cônjuge, geralmente em casa. O instituto suíço Small Arms Survey adverte: “Para muitas mulheres, a casa é mais perigosa que a rua”.

  “A polícia não pode estar em toda parte, temos que nos defender” – Se é assim, também nem sempre as ambulâncias chegam a tempo, e temos que ter um hospital em casa. A modernidade nos trouxe serviços públicos essenciais, como saúde e segurança. Se não são bons, temos que pressionar o governo a melhorá-los, votando melhor, reclamando, como fizeram outros países. A República tem que ser construída, conquistada. Querer substituir o governo só beneficia os ricos. Armar todo mundo só vai aumentar o tiroteio, armar a bandidagem ainda mais (as milícias surgiram assim) e agravar o problema. Temos é que reformar a polícia, o sistema penitenciário, combater a corrupção e controlar as armas. Não temos que inventar. Basta seguir o exemplo dos países que reduziram a violência.

Armas não matam, quem mata são as pessoas” – Slogan da National Rifle Association pra vender mais arma, esse sofisma é tão falso quanto afirmarmos que “pão não engorda, engorda quem come pão”. O senador Daniel Moynihan ironizou: “Armas não matam, quem mata são as balas”. Ou, segundo o médico Danilo Blank, da UFRGS, “Se são as pessoas que matam, são as armas de fogo que lhes permitem matar”. Desfazendo o sofisma: “Armas não matam, quem mata são as pessoas armadas”.

“Não é com arma legal que se cometem os homicídios” – Em São Paulo, 4 em cada 10 armas apreendidas no cometimento de crimes tinham sido legalmente compradas. Nos EUA, quase todos os massacres dos últimos 20 anos foram cometidos com armas legalmente compradas, e apenas 15% dos homicídios por arma de fogo foram cometidos por desconhecidos, de acordo com seu Departamento de Justiça.

“As ditaduras desarmam o povo” – Bobagem. A China despótica e o Japão democrático proíbem armas para civis. Não há essa relação entre regime político e armas. A nossa ditadura militar não controlava as armas. Eu tinha três. Na verdade, ditaduras garantem a segurança do Estado, e democracias também garantem a segurança do povo. Inventaram que Hitler desarmou a Alemanha. Mentira. Foi a liberal República de Weimar que desarmou, visando justamente conter o braço armado do partido nazista (SA) em ascensão, no que fracassou.

Chamo a atenção para as pesquisas realizadas pela rica indústria bélica brasileira sobre o uso de armas por civis: não há pesquisas. Ou não faz, ou não publica, porque desmoralizariam a sua política de estímulo à autodefesa. As poucas pesquisas financiadas pela National Rifle Association foram desmentidas pelos meios acadêmicos, e acusadas de “fraude metodológica”. Todas as pesquisas empíricas realizadas no Brasil comprovaram que, como regra, “mais armas, mais mortes” e “quem reage, morre”.

Nesse Natal, celebremos a vida. Boas Festas!

(*) Sociólogo, ex-consultor da ONU e do Viva Rio.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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