Opinião
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22 de dezembro de 2019
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16:58

Fui processado pelo David Coimbra (por Fernando Nicolazzi)

Por
Sul 21
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Fui processado pelo David Coimbra (por Fernando Nicolazzi)
Fui processado pelo David Coimbra (por Fernando Nicolazzi)
Processo foi motivado por artigo publicado no Sul21 em 2018. (Foto ilustrativa: Freepik)

Fernando Nicolazzi (*)

Fui processado pelo David Coimbra, o funcionário da RBS, em função de um texto irônico que escrevi em julho de 2018. Sim, fui processado por uma ironia. Desconfio que este seja o primeiro caso registrado em que alguém que ganha a vida escrevendo tenta criminalizar uma figura de linguagem. Imagino ainda que, criada a jurisprudência, não só a ironia, mas a metáfora, a metonímia e talvez mesmo a sinédoque, essa pobre figura já castigada pelo nome, estejam preocupadas com os riscos jurídicos a que estarão submetidas a partir de agora.

A ironia que escrevi está no artigo “O idiota do David Coimbra”, publicado pelo Sul21 em 07 de julho de 2018. Na verdade, o recurso irônico foi a forma que escolhi para realizar um comentário crítico de algumas colunas que Coimbra havia publicado, nas quais ele insistia em nomear e ofender variadas pessoas usando alcunhas como “imbecil” ou “idiota”, termos estes bastante recorrentes em seus textos. Por exemplo, além do líder sul-africano Nelson Mandela, definido por ele como um “imbecil”, todos que passaram por alguma universidade no Brasil foram chamados de “rematados idiotas”. Como professor universitário, achei que era o caso de tentar entender as razões de tamanha soberba por parte de um mero funcionário da RBS.

Aparentemente, Coimbra ficou sensibilizado com o que escrevi. Talvez tenha sido a ironia o que o incomodou. Mas imagino também que o caso possa ter sido motivado por outras razões, entre elas o fato de que meu texto expôs, de forma bastante direta e incisiva, o que são as colunas escritas por ele. Contrariando a música, o fato é que neste caso Narciso parece achar feio o que é um espelho.

Por isso ele ingressou com dois processos tentando me condenar civil e criminalmente pela ironia que escrevi, inclusive solicitando pena de prisão. O processo criminal foi extinto e na vara cível eu ganhei… mas depois perdi. Explico: a decisão em primeira instância foi favorável a um princípio básico de liberdade de expressão e de pensamento crítico, algo que, supunha ingenuamente, deveria ser defendido por todo escritor, considerando que não houve ofensa em meu texto. Não satisfeito com o resultado, Coimbra recorreu e o processo foi julgado em segunda instância.

Ali, a relatora manteve a decisão anterior, respaldada naquele mesmo princípio básico mencionado. Seus dois colegas, no entanto, divergiram de seu posicionamento e me condenaram por supostamente ter ofendido a honra do colunista. Antes de uma derrota, creio então que houve uma espécie de empate técnico: duas decisões favoráveis a mim, duas ao colunista. Mas as regras do jogo estabeleciam que o placar da segunda partida seria definidor do resultado. Então, depois de ter ganhado, eu perdi.

Poderia ter pedido uma melhor de três, recorrido a instâncias superiores, demandado uma análise no VAR, mas o desgaste pessoal e o custo financeiro, somado ao que já fui obrigado a despender desde que toda essa história começou, me fizeram parar por aqui, engolir o sentimento de injustiça e acatar a determinação judicial. Saí de campo e paguei o colunista. Embora não concorde com a decisão, aceito-a.

Mas gostaria aqui de mencionar o teor das decisões, que me pareceram muito significativas de toda essa situação. Na primeira instância, resultou claro ao juiz que, apesar do tom incisivo de minha crítica, a qual certamente uma figura pública como a do funcionário da RBS está sempre sujeita, não houve intenção de ofender sua honra pessoal. A decisão contextualiza meu texto, colocando-o diretamente como uma resposta à ofensa cometida por Coimbra em relação a todos os egressos das universidades brasileiras (inclusive os juízes e juízas que julgaram o processo, inclusive os próprios advogados contratados e as testemunhas arroladas pelo autor), chamados por ele, repito, de “rematados idiotas”. A ação, portanto, foi julgada improcedente com base no direito à liberdade de expressão, o qual Coimbra, sempre tão disposto a usufruir dele, julga não caber a determinadas pessoas.

Na segunda instância, a relatora do recurso interposto pelo autor do processo manteve a perspectiva da livre manifestação do pensamento como fundamento da democracia, não verificando qualquer abuso de minha parte em relação ao direito da personalidade de quem quer que seja. O que ela enxergou no texto foi apenas minha posição pessoal, manifestada, por certo, de forma crítica e irônica. Condenar o que escrevi, ou seja, condenar a ironia, seria para ela como condenar o pensamento por um suposto delito de opinião, algo que, em uma democracia, soaria um tanto abusivo.

Mais importante ainda, segundo seu parecer caberia aos leitores, tanto os do meu texto como os das colunas de Coimbra, o julgamento a respeito de seu teor. Em outras palavras, o espaço propício para essa discussão seria a esfera pública onde são manifestadas e debatidas ideias, argumentos e opiniões. E concluiu seu voto de forma lapidar: “as críticas são essenciais ao pluralismo e, portanto, não podem conferir ao ofendido o poder de eliminá-las, sobretudo por incômodas”. De onde se conclui que, incomodado com a discordância de ideias, o ofendido David Coimbra intentou eliminar aquilo que é essencial ao pluralismo democrático: a legitimidade da crítica.

Para o outro juiz, a quem coube o segundo e divergente voto, meu texto teria ultrapassado os limites da crítica, adentrando o terreno da ofensa pessoal. Contudo, ele salientou por diversas vezes as ambiguidades contidas na forma irônica que escolhi, destacando, inclusive, que o “demandado”, ou seja, eu, “logrou tecer fortes críticas a diferentes escritos do autor”. A principal divergência no voto, a meu ver, reside em que, se a primeira magistrada procurou conferir ao espaço da opinião pública o poder de decisão em relação ao teor da crítica, situando o debate em termos democráticos, seu colega considerou a manifestação de meu texto como passível de condenação na esfera jurídica, valendo-se do sentimento punitivista que assola nossa sociedade.

O voto deste julgador ressaltou ainda que eu poderia ter escrito minha crítica de modo diferente, afirmando que a forma irônica escolhida supostamente teve o propósito de ofender o colunista. Neste caso, o que sustentou seu argumento foram as reiteradas vezes em que utilizei a expressão “o idiota do David Coimbra” em meu texto (doze vezes, segundo o cômputo oficial). Ora, creio que aqui transcendemos a esfera jurídica e chegamos claramente ao âmbito do estilo de escrita que escolhi para manifestar minha crítica, o que, em última instância, acabou sendo definidor no julgamento.

A reiteração da expressão supostamente ofensiva foi um recurso estilístico conscientemente utilizado para mostrar aos leitores o excesso que transborda nos textos de Coimbra com o uso do termo “idiota”, fato que pode ser facilmente atestado por quem acompanha suas colunas. Nesse sentido, não havia intenção de ofendê-lo, mas tão somente mostrar o ridículo da situação. O fato de o julgador definir como “ambígua” minha posição deixa evidente que a suposta ofensa não é algo desprovido de dúvida razoável e caberia ao leitor o juízo crítico a respeito disso.

Por fim, o terceiro magistrado não elaborou um voto mais pormenorizado, restringindo-se a acompanhar o voto divergente que me condenou ao pagamento de indenização por danos morais com as finalidades compensatória, punitiva e pedagógica. Não sei se o autor da ação se sente compensado, mas certamente a ironia foi punida. Quanto à dimensão pedagógica que se pode tirar disso tudo, duas últimas ponderações.

A primeira delas é que a situação nos ensina muito bem quem é David Coimbra. Isso fica evidente não só a partir da própria existência do processo, mas também de um dos textos que analisei do colunista, no qual, além de dizer que há muitos idiotas em Porto Alegre, ele fez uma orgulhosa homenagem à operação Lava-Jato e um elogio ao seu lugar de origem, a cidade de Curitiba. Para o funcionário da RBS, a operação só poderia acontecer na capital paranaense pois lá “a elite cultural está a salvo da tacanhice ideológica”. Lembro que, neste caso, é a alguém como Sérgio Moro que o colunista está se referindo.

Tal “elite cultural”, ainda segundo o autor, teria formado uma “nova casta de funcionários públicos”. Para ele “são jovens sérios, honestos, modestos e trabalhadores, que querem o bem do Brasil. São quase monótonos, de tão certinhos”, escreveu. Menciono isso só para mostrar que nem sempre é necessário fazer uso da ironia para mostrar o ridículo do que muitas vezes David Coimbra escreve para a empresa onde trabalha. O funcionário da RBS, que se arroga o direito de chamar tanta gente de imbecil e de idiota, não poupa esforços para elogiar alguém como Deltan Dallagnol e sua turma, cuja atuação beirando ilegalidades jurídicas e perversidades éticas é há algum tempo de conhecimento geral. Isso certamente é bastante pedagógico a respeito de David Coimbra.

A segunda lição que tiro de toda essa história ampara-se, na verdade, em uma dúvida. Se David Coimbra se mostrou realmente tão preocupado com sua imagem no espelho ao me processar, o que será que ele diria a respeito de outro artigo seu, escrito em maio de 2011 e iniciado com uma curiosa afirmação: “Muita gente me chama de imbecil. Talvez eu seja, não sei. Verdade que a maioria não me acha imbecil, mas muitas vezes a maioria está errada”? Ora, se o próprio ofendido não tem lá muita certeza se é ou não um imbecil, como poderia sua elevada personalidade estar abalada por uma ironia que, antes de supostamente ofendê-lo, mostrou apenas o teor daquilo que ele mesmo escreve corriqueiramente? Obviamente, trata-se de uma pergunta retórica que não carece de resposta. A lição já está dada.

Encerro lembrando que certa vez, num texto onde, só para variar, chamou alguém de idiota, David Coimbra sugeriu que “o hipócrita tem freios na própria hipocrisia”. Lendo e relendo algumas de suas colunas e após ter enfrentado este processo, desconfio que nem sempre isso ocorra. Por vezes, não há freio que consiga fazer parar um hipócrita.

(*) Professor do Departamento de História da UFRGS

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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