Opinião
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22 de dezembro de 2019
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10:05

Era uma vez…o Capitólio (por Luiz Antonio T. Grassi)

Por
Sul 21
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Foto: Guilherme Santos/Sul21

Luiz Antonio T. Grassi

 Imagino um filme que começa mostrando escavação do que será a Avenida Borges de Medeiros. A imagem avança e mostra um elegante prédio, de estilo eclético na esquina da rua Demétrio Ribeiro. Cartazes nas amplas portas anunciam “Casanova – O Príncipe dos Amantes”. Vê-se que é um filme mudo francês, com ator russo. É uma inauguração. Alguém lê um jornal de 12 de outubro de 1928. Sobre a fachada, um nome: Capitólio. Começa a história do Cine-Theatro Capitólio.

Penso em imagens passando rapidamente, com décadas se sucedendo e a história avançando – cinema falado, sessões repletas com mil e quinhentos espectadores na platéia e nas galerias, bailes de carnaval e outros eventos, a relação de público com o cinema mudando, uma fase de administração por arrendatários com mudança de nome (“Premier”), volta à identidade de Capitólio e finalmente a decadência.

Meu filme imaginário detém-se na última e melancólica sessão de 30 de junho de 1994. Os poucos espectadores deixam a sala desanimados, saem o projecionista, o porteiro e a bilheteira ; o cinema fecha pela última vez suas portas.

Em nova sucessão de imagens, o prédio vai perdendo sua cores, ganhando pichação e se deteriorando rapidamente. Podemos ver articulações e conversas de quem não aceita esse final e aparece um documento que oficializa o tombamento do prédio e outro que passa à Prefeitura a propriedade do mesmo. Nova passagem do tempo e o prédio continua abandonado.

Já chega o final do século XX e o telhado começa a cair… Será mais um cinema que fica na lembrança? Será mais um prédio antigo a ser substituído por uma nova construção?

Aparecem novos protagonistas: a Fundação de Cinema de Porto Alegre (Fundacine), criada em 1998 por profissionais da cinematografia entra em campo para impedir a derrocada. Ao mesmo tempo, aparecem em cena os moradores das imediações, reforçados por outros cidadãos ligados afetivamente ao Capitólio. Observam-se mobilizações, abaixo-assinado com centenas de adesões, e a formação de um movimento organizado para salvar o Capitólio.

Cenas sucedem-se de conversações entre os diversos protagonistas, novas idéias, mais pessoas que aparecem, reuniões em restaurante próximo (Corcovado) transformado em local de encontro. As pessoas que participavam voluntariamente decidem organizar-se e surge a AAMICA – Associação dos Amigos do Capitólio

Mas…o quê poderia ser um Capitólio restaurado? Voltar a “cinema de calçada”? Um centro comunitário do bairro? Uma casa de cultura?

A idéia trazida pela Fundacine e acolhida pela Prefeitura Municipal passa a ser a bandeira de todos os envolvidos na salvação do Capitólio: transformá-lo em uma Cinemateca. Imagino uma cena em que um grande acervo de filmes e outros materiais relacionados ao cinema aparecem dispersos ou sendo reunidos mas sem ter onde ser armazenados convenientemente. Prefeitura, Fundacine e AAMICA mobilizam-se e acompanham o projeto arquitetônico, supervisionado pelas equipes do Patrimônio Hstórico e de Obras da Prefeitura, que mantém as características históricas mas introduz alterações funcionais que permitem a instalação de uma verdadeira cinemateca.

Entra em cena a Petrobras. Em 2003, o Ministério da Cultura aprova a aplicação da Lei Ruanet, de incentivo à Cultura e a Petrobras passa a patrocinar as obras. Imaginemos a cena em que, dentro da carcassa do prédio, uma encenação (do grupo Falos & Stercus) e um curta-metragem (“Moviola”) festeja, com um público entusiasmado, o início das obras. (Em pequenos “flashes” podemos ver pessoas comuns da vizinhança perguntando, ao longo dos anos: “quando vão inaugurar o Capitólio”).

O ritmo agora é bem mais lento… Aparecem representantes da Petrobras; reuniões da AAMICA com a Fundacine; sucessão de reuniões de associados da AAMICA em diversos locais; articulação da AAMICA pela recuperação da praça Daltro Filho, adjacente ao Capitólio; busca de antigos freqüentadores e reuniões com eles…As obras continuam, mas às vezes parecem não ir adiante. Petrobras continua a patrocinar, o BNDES também contribui.

Finalmente, cenas de inauguração: Cinemateca Capitólio Petrobras começa a nova etapa do velho cinema. É 27 de março de 2015. Uma nova era vai começar na casa da rua Demétrio Ribeiro esquina com a Avenida Borges de Medeiros.

A equipe de funcionários da Coordenação de Cinema e Audiovisual, vinculada à Secretaria Municipal de Cultura assume a administração da Cinemateca. Projeção de clássicos do cinema, filmes novos ou raros, ciclos, sessões de noite inteira, cursos, debates, palestras de personalidades nacionais ou estrangeiras, incentivo à formação de grupos cineclubísticos ou assemelhados, uma gama enorme de atividades ligadas à valorização da antigamente chamada “sétima arte” são desenvolvidas. A biblioteca vai crescendo e fornecendo material para pesquisas acadêmicas ou para leitura ou informação dos amadores. O setor educacional promove a allfabetização audiovisual voltada para o público infantil e jovem. Salas multimídia e de exposições complementam a sala de exibição, totalmente renovada. O acervo audiovisal, com centenas de filmes e diversos formatos recebe, examina o estado de conservação de cada unidade, recupera, armazena e conserva a verdadeira riqueza de material cinematográfico que constitui o coração da Cinemateca. E o espaço da cafeteria constitui-se como ponto de encontro de cinéfilos assim como de moradores da vizinhança e de toda a cidade.

Ainda pode ser mostrado o público, na sua diversidade generacional, social e cultural, demonstrando que a Cinemateca Capitólio é, como pretende ser, um espaço aberto a todas e todos e vocacionado para fomentar a inclusão sem nenhuma discriminação..

Finalmente chegamos aos dias de hoje. Quando tudo parecia encaminhar para um “happy end” continuado, surge a surpresa. Entramos no mundo real…

Mesmo com todo o sucesso da instituição e com a competência dos gestores públicos, a Cinemateca Capitólio entra no rol das instituições culturais da cidade que sofrem a ameaça de entrega a alguma organização não governamental qualificada como OS (Organização Social). Trata-se do processo chamado de “contratualização”, ou seja, sua gestão entregue por prazo limitado a uma ONG escolhida a partir de edital lançado pela Prefeitura. Efetivado esse processo, os atuais gestores (agentes públicos) dariam lugar à nova equipe ligada ao ente vencedor. O curioso, porém, é que os recursos financeiros continuariam a ser dotados pelo governo municipal.

Face a essa perspectiva, entidades ligadas a profissionais de cinema e a comunidade resolveu reagir. Uma grande reunião foi realizada em 29 de julho, quando os Secretários Municipais de Relações Institucionais e de Cultura foram questionados e a grande maioria dos presentes manifestou-se contrário à proposta. Em 3 de setembro, reunião da Comissão de Educação da Câmara Municipal novamente possibilitou o debate dos mesmos interlocutores. Vereadores propõem-se a fazer um pedido de informações, de forma oficial, à Prefeitura, uma vez que não são conhecidos nem divulgados os detalhes do edital. Até o momento, continua esse desconhecimento, apesar da anunciada decisão de que o edital esteja para ser lançado. Pode-se perguntar: a Cinemateca manter-se-á fiel à sua missão original? Quais as garantias que a contratada dará de manter o nível e as características atuais? Qual o argumento para que os recursos orçamentários passem para uma ONG e não continuem sendo geridos pela atual equipe de agentes públicos? Quais os critérios de escolha entre os entes candidatos? Essas e outras são dúvidas que surgem e não são respondidas

Diante desses novos desafios, diversas reuniões prepararam a retomada da AAMICA, finalmente reativada em 9 de dezembro, com eleição de uma Comissão Diretiva e admissão de novos sócios. Afinal, a AAMICA representou a comunidade durante todo o processo que culminou com a inauguração da Cinemateca. Não poderia ficar ausente, agora.

A partir de então, a AAMICA está se mobilizando para fazer frente à essa proposta de contratualização, defendendo que a Cinemateca Capitólio continue sendo administrada diretamente pela equipe de profissionais funcionários do Município que se mostraram inteiramente à altura da missão.

Fundamentalmente, a AAMICA quer trazer a comunidade, tanto os vizinhos que participaram com seu apoio à recuperação do antigo cinema, quanto a população de toda a cidade (pois o Capitólio sempre foi um ícone urbano de Porto Alegre) e os cinéfilos e profissionais do cinema para conseguir reverter essa proposta da Prefeitura. A AAMICA considera que é possível que as autoridades municipais entendam o significado da Cinemateca e a importância do trabalho que vem sendo feito e que sejam sensíveis ao apelo de profissionais da cinematografia, de personalidades da área cultural, de cinéfilos e de todos aqueles que, por diversos motivos, sentem-se ou sempre sentiram-se ligados afetivamente ao antigo Cine-Theatro Capitólio, agora a bem sucedida Cinemateca Capitólio.

(*) Presidente da Associação dos Amigos da Cinemateca Capitólio.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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