Opinião
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15 de dezembro de 2019
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10:47

Direito, Estado de Exceção e Fascismo (por Valton de Miranda Leitão)

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Sul 21
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Direito, Estado de Exceção e Fascismo (por Valton de Miranda Leitão)
Direito, Estado de Exceção e Fascismo (por Valton de Miranda Leitão)
“O Terceiro Reich pode ser considerado, do ponto de vista jurídico, como um estado de exceção que durou 12 anos”. (Reprodução/Youtube)

Valton de Miranda Leitão (*)

Ao apresentar, em junho de 2019, no Congresso Brasileiro de Psicanálise, em Belo Horizonte, o meu artigo “Fundamentos Psicanalíticos do Autoritarismo Jurídico” com o subtítulo “Leitura de O Processo de Franz Kafka”, dei-me conta da enorme extensão que o tema apresenta para o sistema jurídico, político e a psicanálise no mundo e no Brasil atualmente. A leitura kafkiana do Direito no livro “O Processo” evidencia não somente o inconsciente do autor e do seu personagem central, Josef K, mas igualmente a disposição sociocultural vigente no mundo moderno para a conspurcação da Lei com objetivos políticos.

No referido artigo fiz notar que a genialidade de Kafka concentrava-se principalmente no diálogo entre K e o sacerdote na catedral: “É impressionante o fato de que o capelão sintetiza numa investidura tripartite o juiz, a divindade e a soberania política, tornando-o um Moisés redivivo. A tríplice investidura deverá ser assumida na práxis judiciária por uma personalidade cujo Self grandioso contenha tais elementos combinados.

Nesse sentido, é como se o mitológico, o histórico, o político, o religioso fossem atualizados numa espécie de tipo ideal concreto. A seguinte citação da fala do pregador é digna de nota, “… em relação ao tribunal você se engana – disse o sacerdote. ─ Nos textos introdutórios à lei consta o seguinte, a respeito desse engano: Diante da lei está um porteiro. Um homem do campo dirige-se a este porteiro e pede para entrar na lei. Mas o porteiro diz que agora não pode permitir-lhe a entrada. O homem do campo reflete e depois pergunta se então não pode entrar mais tarde. “É possível”, diz o porteiro, “mas agora não”. Uma vez que a porta da lei continua como sempre aberta, e o porteiro se põe de lado, o homem se inclina para olhar o interior através da porta. Quando nota isso, o porteiro ri e diz: “Se o atrai tanto, tente entrar apesar da minha proibição. Mas veja bem: eu sou poderoso. E sou apenas o último dos porteiros. De sala para sala, porém, existem porteiros cada um mais poderoso que o outro. Nem mesmo eu posso suportar a visão do terceiro”.” (Leitão apud Kafka, 2019)

Essa situação que foi vivida tanto no hitlerismo, no fascismo italiano e no stalinismo agora se apresenta com tons cada vez mais vivos na política brasileira (demandas constantes ao famigerado AI-5 com seus apelos a tortura e a censura). Esse dispositivo que engrandece o Poder Executivo e torna menores os outros poderes, entretanto, utiliza o Poder Judiciário para paradoxalmente abolir a democracia em nome da democracia. O “juiz” mitologizado transforma-se em legislador implacável que fala como donatário das tábuas da Lei, ungido pela divindade seja Jeová ou Cristo.

A seguinte citação do livro de P. C. Sandler sobre as origens do inconsciente freudiano em Goethe, vem a propósito: “E, em um certo sentido, como Arnold Toynbee iria dizer muito tempo depois, todo legislador é despótico, pois integra uma “minoria dominante opressiva”. (Toynbee apud Sandler, 2001). O fascismo pressupõe o Estado de Exceção sobre o qual deita raízes, mas tem características específicas cujos lampejos estão na política de Extrema-Direita praticada no Brasil hoje. A categoria de “extrema” é necessária para distinguir os pensadores de Direita que mantem, apesar de sua ambivalência, apreço pela ordem democrática.

A seguinte citação de Agamben é importante: “Segundo opinião generalizada, realmente o estado de exceção constitui um “ponto de desequilíbrio entre direito público e fato político” que – como a guerra civil, a insurreição e a resistência – situa-se numa “franja ambígua e incerta, na intersecção entre o jurídico e o político”. ”. (Saint-Bonnet e Fontana apud Agamben, 2004). E ainda: “Tome-se o caso do Estado nazista. Logo que tomou o poder (ou, como talvez se devesse dizer de modo mais exato, mal o poder lhe foi entregue), Hitler promulgou, no dia 28 de fevereiro, o Decreto para a proteção do povo e do Estado, que suspendia os artigos da Constituição de Wiemar relativos às liberdades individuais. O decreto nunca foi revogado, de modo que todo o Terceiro Reich pode ser considerado, do ponto de vista jurídico, como um estado de exceção que durou 12 anos”. (Agamben, 2004).

O fascismo é um ideário político que tem na violência seu principal instrumento de ação. O discurso violento é metodicamente utilizado por um Eu narcísico individualizante que pretende alcançar a condição de mito. Essa mitologização exerce forte atração sobre certos setores do inconsciente de classe média e mesmo da população mais pobre, pois fala a linguagem divina do retorno a ordem social e a moral dos costumes. Trata-se de algo bíblico como no Apocalipse de João, no qual o anjo vingador vem para restabelecer o bem na luta contra o mal. O dispositivo fascista do discurso unívoco tem, é preciso reconhecer, um forte atrativo político com sua carga de preconceitos atávicos contra minorias e/ou aversão odienta contra as raças negra e indígena. Além disso, a clivagem social é estimulada para que um setor demonizado da política, como a esquerda, possa ser impunimente atacado.

Assim, ainda com Agamben: “Diante do incessante avanço do que foi definido como uma “guerra civil mundial”, o estado de exceção tende cada vez mais a se apresentar como o paradigma de governo dominante na política contemporânea”. (Agamben, 2004). Nesta situação jurídico-política, o psicanalista não pode ser desvinculado do cidadão cujas responsabilidades ético-comunitárias devem ser assumidas.

A teoria freudiana do inconsciente precisa ser defendida contra tendências evangelizadoras que já estão presentes em projetos no Congresso Nacional Brasileiro. Freud, em “O Futuro de uma Ilusão”, travou um debate com o pastor Pfister, seu amigo, mostrando que o inconsciente divinizado era um contrassenso lógico ou psico-lógico. Um psicanalista fascista é a negação absoluta da psicanálise. O fascismo inconsciente ou conscientemente vê em Eros um obstáculo para o seu projeto de Poder. Isso tudo aproxima a mentalidade fascista da paranoia como bem acentuou Elias Canetti ao estudar o caso Schreber, imortalizado por Freud. Os defensores de Eros contra Tanatos não podem se intimidar com a censura que paira velada ou escancaradamente nas Instituições brasileiras atualmente.

É preciso lutar pelo amor e pela dignidade que muitas vezes se torna bandeira daqueles que sob o disfarce de combate a corrupção assumem o fascismo como proposta política. A seguinte citação ainda de Sandler enfatiza esse papel: “Apenas o insight originado do sentimento – em seu ápice, do amor por um objeto ou coisa – pode iluminar” (Hamann apud Sandler, 2001). O inconsciente reprimido, tanto em Kafka quanto na política contemporânea, retorna com o discurso calvinista das mãos limpas contradizendo a própria Constituição italiana: “Quando os poderes públicos violam as liberdades fundamentais e os direitos garantidos pela Constituição, a resistência à opressão é um direito e um dever do cidadão”. (Constituição italiana apud Agamben, 2004). Josef K ao final de O Processo é executado sob o olhar benevolente da senhorita Buchner, representante do Tribunal. A autorização para matar já está na simbologia da arte perversa dos cartuchos quanto na proposta de uma Lei anticrime em cujos recônditos esconde-se a própria criminalidade.

(*) Psicanalista Didata da Sociedade Psicanalítica de Fortaleza

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.

 


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