Opinião
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26 de novembro de 2019
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17:36

Tulio e Leite contra a escola pública: os “guris” ideais do neoliberalismo (por Eduardo Morello)

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Sul 21
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Tulio e Leite contra a escola pública: os “guris” ideais do neoliberalismo (por Eduardo Morello)
Tulio e Leite contra a escola pública: os “guris” ideais do neoliberalismo (por Eduardo Morello)
Governador Eduardo Leite | Foto: Reprodução

Eduardo Morello (*)

Para minhas antigas “profes”e colegas da escola pública, como forma de agradecimento e imenso carinho.

Em tempos em que “caiu os butiás do bolso” tornou-se uma rotina no Rio Grande do Sul, dois de nossos “guris”, Tulio (“jornalista”) e Leite (“governador”), querem colocar a escola pública no “Super” e no “Atacado”. Os guris seguem à risca a cartilha neoliberal como “bons” e “obedientes” alunos, a tal ponto que um apoia e o outro busca implementá-la como um modelo alternativo as escolas públicas, de modo a liquidar o que ainda resta destas. As ideias centrais de tal cartilha aparecem na “redação” (artigo de opinião) do guri Tulio intitulada de “Um novo modelo de escola pública entra na pauta do governador do RS” (24.05.2019/GAUCHAZH), fruto de uma “conversa de bodega” com empresário Jon Hage (conforme nosso guri, “fundador e presidente da CSUSA, empresa pioneira em um modelo alternativo de escolas nos Estados Unidos, as charter schools”) após o mesmo ter conversado com o nosso outro guri, o “governador”.

Trata-se, pois, de um modelo de escola, à primeira vista, “bem-sucedido” nos EUA, até porque tudo que é made in USA pode ser considerado “melhor” e “inovador”, eis de cara o pungente “complexo de vira lata” dos guris. Tal modelo, por sua vez, consistiria “resumidamente”, segundo o guri-jornalista, no seguinte: “os investidores constroem a escola e montam a estrutura. Os pais decidem, por livre e espontânea vontade, matricular seus filhos. O governo paga – menos do que pagaria em uma escola pública – pela educação. A gestão é liderada por um conselho comunitário”.

De modo geral, esse modelo produz uma perversão da dimensão pública do ensino, pois, ao estabelecer uma parceria entre setores distintos, com lógica de funcionamento e sentidos diferentes, tende a apagar as linhas divisórias entre ambos. No caso do Estado, a perversão se dá em torno da noção de “investimento”, que é trocada pela ideia de “gasto”. Isso significa que o Estado não investe em educação, senão gasta. Em outras palavras, a fim de “desonerar” o Estado, a educação passa a ser vista como gasto e não como investimento. Entretanto, o Estado continuará gastando, supostamente “menos”, numa escola em que não se sabe mais se é pública ou privada, ou melhor, continuará investindo recursos públicos (“impostos” de todos os contribuintes) em uma escola privada.

Nessa perspectiva, o guri Leite tem transformado a escola pública, com sua gestão economicista e mercadológica simplista, em “mercadoria” de baixo valor, com a radicalização dos desmontes e precarização do ensino, de modo a colocá-la não só no “Super”, mas também no “Atacado” para ser vendida a preço de banana. Para a infelicidade do povo “gaúcho” e para a alegria das grandes corporações educacionais, com seus institutos e fundações de fachada e seus respectivos investidores, que agora podem não só transformá-la em “mercadoria”, mas também em “ações” na bolsa de valores. Tanto num caso quanto no outro, a educação é mercadoria posta nas prateleiras para ser vendida e consumida por uma clientela cada vez mais ávida e condicionada pelas “qualificações” interruptas e ao longo de toda vida exigidas pelo próprio mercado. Mas, para Hage, escreve o guri Tulio, o Estado não abriria mão de “estabelecer, fiscalizar e cobrar os parâmetros contratuais”. Ora, a “inocência” do “obediente” aluno não o deixe perceber que se trata de um “novo” modelo de privatização, que não apenas “descentraliza” e des-responsabiliza Estado, senão também coloca nas mãos invisíveis do mercado a regulação. Dessa forma, o Estado torna-se “mínimo” em relação a direitos como educação e a saúde, entre outros, e “forte” para o financiamento do setor privado.

Dito isso, privatização da escola acontece em dois sentidos: primeiramente, no sentido do financiamento, em parte privado, e da gestão privada da escola, o que supostamente desonera o Estado, transformando a educação em “mercadoria” e “ações” lucrativas para os investidores (ou alguém é ingênuo o suficiente, como nosso guri Tulio, para pensar que os investidores “constroem escolas e montam estruturas” como uma “boa ação” de final de ano, sem visar qualquer ganho?). O segundo sentido é de que a privatização se dá em termos de assumir um modelo de sociedade e, paulatinamente, um modelo único de escola e não alternativo, na qual predominaria um único pensamento e seus valores, a saber, o pensamento neoliberal. Este, por sua vez, aparece na superfície através das seguintes expressões presentes na “redação” do guri-jornalista, quais sejam: “eficiência com menor custo”, “aumento da competição e, consequentemente, a qualidade das escolas”.

Desse modo, “eficiência”, “menor custo”, “competição” e “qualidade” (sabe-se diabos o que esta de fato significa!) trazem à tona o pensamento neoliberal com a sua lógica da concorrência, a qual parece espalhar-se feita um fungo em todas as esferas da vida humana. No caso da escola, agora “empresa”, a concorrência destrói e esvazia a dimensão pública da educação na medida em que ela passa tão somente a que atender as necessidades da clientela, pais e alunos (e o “cliente” sempre tem razão!), assim como as demandas dos investidores e do próprio mercado. Resultado disso é formação de um “novo homem” ávido consumidor, empreendedor e empresário de si, resiliente e, sobretudo, um “escravo voluntário” (como os motoristas de aplicativo, a “uberização do trabalho”) tão flexível e adaptável as mudanças do mercado, quanto feroz competidor, já que a lógica da concorrência passa a ser a nova lei da Terra.

Seguindo essa lógica, já algum tempo, temos o ranking das “escolas de qualidade”, por meio das avaliações de larga escala, seja em nível nacional, sejam em nível internacional. Tal ranking endossa não só concorrência entre as escolas, criando segregação e aumentando a desigualdade entre elas mesmas, senão também reforça o discurso e a prática meritocrática, mediante a avaliação por desempenho. Nesse caso, os “bons professores” são transformados igualmente em empresários de si que, além de se auto-explorem, culpando a si mesmo por nunca conseguirem atingir as metas estabelecidas pela escola-empresa e seus investidores, devem ser resilientes. Tais professores, caso sobrevivam, estarão em escolas virtualmente de “qualidade”, abertas para terceirização de todas as atividades (na verdade terceirização antecipada pela reforma trabalhista), inclusive do próprio trabalho docente, o que precarizaria e puniria ainda mais o magistério. Portanto, professoras e professores sem piso, sem salário, sem plano de carreira… em fim, sem quaisquer direitos, tornados escravos voluntários.

Ademais, os pais, transformados em clientes, podem decidir livremente em quais escolas devem estudar os seus filhos. É claro, que todos os pais em sã consciência escolheriam matricular seus filhos nas “escolas de qualidade”. Contudo, dependendo da região, onde se encontram essas escolas, muitos pais não terão condições de levar os seus filhos até elas, aumentando a segregação e desigualdade. (Ah! Mas se querem um futuro melhor para os seus filhos devem se esforçar mais e mais, pois, afinal, com esforço todo mundo consegue chegar lá, não é?!).

Por fim, o título da “redação” do bom e obediente aluno Túlio precisa ser reescrito, decerto afirmaria sua antiga “profe” de português do Grupo Escolar Anne Frank. Isso porque, o título não expressaria as ideias desenvolvidas no conjunto da “redação”, de maneira que, se ela pudesse sugerir uma mudança seria a seguinte: “Um novo modelo de privatização da escola pública entra na pauta do governador do RS”.

Todavia, o fim (do poço) parece nunca chegar… Como não bastasse o entusiasmo do nosso guri-jornalista com esse alternativo modelo escola, escreve outra “redação”: “Ser contra a greve não é ser contra os professores” (18.11.2019/ GAUCHAZH). Trata-se, inicialmente, de um relato pessoal, em tom nostálgico, do fato de ter estudado em escola pública (supracitada), o que parece torná-lo imediatamente em expertise em escola pública e defensor das “profes”. Porém, a sua defesa acaba tão logo começa. Pois, segundo ele mesmo, “essa greve convocada agora pelo magistério é inoportuna e inútil. Primeiro, porque pune as pessoas erradas: pais e alunos que já sofrem, assim como seus mestres, os efeitos do desmonte do ensino público […] Segundo, porque a paralisação não altera em uma vírgula a rotina do governador e dos deputados, os verdadeiros e legítimos responsáveis pelo pacote que mexe com os servidores”.

Ora, Tulio, sua preocupação e solidariedade com a escola pública e com as “profes” é tão comovente quanto vazia. A greve não é, e nunca foi, sinônimo de “punição”, ela é a última medida, uma vez que todas as outras foram tentadas, sem sucesso. Ao invés de ser contra suas antigas “profes”, deverias usar as suas “boas lembranças” da escola pública para mobilizar a sociedade em defesa do ensino público e delas. E, não ser a favor de sua completa destruição!

Deverias sair às ruas de mãos dadas com elas e com outras professoras e professores nessa defesa. Deverias ouvi-las, e não somente o empresariado, as fundações e institutos a eles ligados! Ouvir atentamente a todas e a todos, sobretudo, as “profes” e seus respectivos estudantes, para a construção coletiva e plural de um modelo de escola verdadeiramente pública. Mas, ao que tudo indica, o guri Tulio escolheu andar de mãos dadas com o guri Leite e o empresariado, pois assume o modelo alternativo deles, um modelo de privatização da escola pública, de transformação da escola em empresa e da educação em mercadoria e ações. Um modelo que é imposto, desde fora e de cima para baixo, sem a participação de toda a sociedade, apenas de um grupo minoritário, para a tristeza de suas antigas “profes” e do povo “gaúcho”. Então, quem está punido a todas e a todos não são as “profes” em greve, senão os “guris” ideais do neoliberalismo.

(*) Ex-professor do magistério público estadual do Rio Grande do Sul. Mestre em Educação – UPF. Doutorando em Filosofia – UFSM. Atualmente professor substituto de Filosofia – IFRS.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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