Opinião
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23 de novembro de 2019
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10:18

O transporte coletivo precisa ser levado a sério em Porto Alegre (por Meu Ônibus Lotado)

Por
Sul 21
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O transporte coletivo precisa ser levado a sério em Porto Alegre (por Meu Ônibus Lotado)
O transporte coletivo precisa ser levado a sério em Porto Alegre (por Meu Ônibus Lotado)
Foto: Joana Berwanger/Sul21

Meu Ônibus Lotado (*)

Recentemente, a prefeitura de Porto Alegre divulgou um “projeto de priorização do transporte coletivo”, prometendo implantar 22 quilômetros de faixas exclusivas para ônibus e lotações. Aqueles que viram que um privilégio mínimo do transporte individual estava sendo retirado chiaram, como de praxe. Logo se viu que as faixas exclusivas não eram tão exclusivas assim, quando a Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC) permitiu que táxis também trafegassem nelas, numa mudança de posição impressionante: em 2018, o prefeito Marchezan Jr. havia vetado emenda que permitia que táxis circulassem em faixas exclusivas, argumentando que isso “traria grave ameaça à segurança e à mobilidade do trânsito”.

A prioridade ao transporte coletivo, assim, logo mostrou não ser tão prioridade. Mas esse caso não é o único. Em agosto de 2019, a prefeitura anunciou que havia sido implantado um sistema de GPS que cobriria 100% da frota de ônibus da cidade. Basta abrir o aplicativo CittaMobi, que permite acesso às informações de posicionamento dos veículos, para perceber que muitos ônibus não indicam onde estão porque o aparelho de GPS não emite sinal. Se realmente há GPS em 100% da frota, ele não funciona em 100% da frota – o que tem o mesmo efeito de não haver GPS em 100% da frota. A questão é de retórica. Além disso, o prazo máximo para implantação do sistema, previsto em decreto, era dezembro de 2018. Ele só foi implantado, com problemas, sete meses e meio depois.

Esses exemplos evidenciam duas questões importantes: primeiro, que a “priorização do transporte coletivo”, até agora, é mais um termo da retórica oficial do que ação prática. Segundo, que a prefeitura, ao se aproximar do ano eleitoral, vem procurando passar a imagem de que se preocupa com o transporte coletivo. Dois exemplos ilustram ainda melhor esse segundo ponto.

O primeiro deles é o Terminal Triângulo. Destelhado por um forte temporal em dezembro de 2014, o terminal por onde passam diariamente cerca de 110 mil pessoas teve as obras de reforma da cobertura iniciadas somente em meados de junho de 2019, dois anos e meio depois de Marchezan Jr. assumir o governo e quatro anos e meio após o destelhamento. A estimativa para a conclusão da obra é o fim deste mês. Coincidentemente, pouco menos de um ano antes das eleições. A obra, aliás, foi custeada pelo Grupo Zaffari, numa espécie de contrapartida pela compra de um amplo terreno na Zona Norte. Sem investimento da prefeitura, portanto. Transporte coletivo não vale investimento público?

O segundo dos exemplos é a renovação da frota da Carris. Alardeia-se que a empresa adquirirá oitenta e sete ônibus novos. Recentemente, a Câmara Municipal aprovou a autorização de um empréstimo junto à Caixa para o financiamento dos veículos. Omite-se, contudo, que o Executivo enviou projeto para a mesma Câmara ampliando a vida útil dos ônibus comuns de dez para doze anos, aprovado pela base aliada e sancionado como lei em junho de 2018. Omite-se ainda que o prefeito Marchezan Jr. assinou, em abril de 2019, um decreto que ampliou a vida útil dos ônibus em mais dois anos, ou seja, permitindo que coletivos com quatorze anos rodassem pela cidade. Desse modo, o Executivo pôde adiar o prazo que obrigaria a Carris a ter que comprar ônibus novos.

Além disso, o pregão eletrônico para aquisição de novos veículos foi lançado ainda em fevereiro de 2019, mas o projeto de lei para autorizar o financiamento da Caixa só foi enviado à Câmara no final de setembro, conforme o sistema da casa. Se, em junho de 2019, a diretora-presidente da Carris, Helen Machado, declarou acreditar que os novos ônibus estariam rodando em outubro deste ano, ficam as questões: o que mudou desde então e por que o Executivo adiou a compra de novos ônibus para que eles só entrassem em circulação em 2020, ano eleitoral? Essa será a primeira e única compra de ônibus novos na gestão tucana. Será apenas coincidência que os ônibus serão entregues em fevereiro, não apenas em ano eleitoral, mas no mês de reajuste da tarifa? A compra anterior havia sido realizada em 2015, ainda no governo de José Fortunati.

Pode ser, de fato, uma grande coincidência que as quatro maiores iniciativas da prefeitura em relação ao transporte coletivo só serão concluídas a menos de um ano das eleições – isso se sistema de GPS operar em 100% da frota até outubro de 2020. Se o jingle de campanha do atual prefeito afirmava que “uma nova atitude é Marchezan”, passar três anos atacando um setor para, no ano final, trazer-lhe supostas melhorias é uma atitude mais velha que os ônibus que circulam em Porto Alegre. Não custa lembrar que Marchezan Jr. extinguiu a segunda passagem gratuita por meio de decreto no seu primeiro ano de governo, mesmo depois de ter garantido que a manteria; promoveu três aumentos de tarifa maiores que os índices de inflação do ano anterior; e enviou uma série de projetos de lei à Câmara Municipal atacando os passageiros do transporte coletivo – entre eles, o que acaba com a meia passagem universal dos estudantes, medida que, tudo indica, não foi aprovada somente pela ampla mobilização dos secundaristas, o que evitou uma evasão ainda maior nas escolas porto-alegrenses (vale lembrar de um dado assustador que dá a dimensão do que o Executivo planeja: no colégio Júlio de Castilhos, o valor da passagem é o principal fator de evasão escolar).

Já que o parágrafo anterior remeteu à campanha eleitoral, lembramos mais uma promessa de campanha de Marchezan Jr. não cumprida. Em entrevista, o atual prefeito defendia que algumas sinaleiras seriam programadas para que abrissem quando os ônibus se aproximassem delas: “a sinaleira facilita, dá preferência ao transporte público”. Essa promessa jamais saiu do papel, mas é desnecessário dizer isso para quem perde horas por semana em cruzamentos nos quais os ônibus são obrigados a disputar espaço com uma multidão de carros.

Todos os exemplos anteriores mostram que o transporte coletivo precisa começar a ser levado a sério em Porto Alegre. Isso implica, inevitavelmente, tirar privilégios do transporte individual. A prefeitura tem tentado melhorar a sua imagem em relação ao transporte coletivo, faltando menos de um ano para o pleito eleitoral. Claramente, o receituário neoliberal da atual gestão deu errado no transporte coletivo – e em muitos outros setores. Retirar direitos dos passageiros, com o risco de elevar a evasão escolar; sempre aumentar a tarifa acima da inflação em vez de buscar alternativas para o seu financiamento, com o efeito de limitar os deslocamentos dos mais pobres pela cidade; aumentar a vida útil dos ônibus para quatorze anos, permitindo que nós andemos em ônibus de 2006: a propaganda oficial vai tentar esconder tudo isso. Se, no ano que vem, os marqueteiros de Marchezan Jr. tentarem vendê-lo como um governante preocupado com o transporte coletivo, todos nós saberemos qual a verdade. Talvez mais do que nunca, Porto Alegre precisa de uma pessoa na prefeitura capaz de levar o transporte coletivo a sério. A doutrina neoliberal demonstrou mais uma vez ser um fracasso nesse setor. É preciso que o Estado garanta os direitos e a dignidade dos passageiros, principalmente os mais pobres.

(*) A Meu Ônibus Lotado é uma iniciativa cidadã presente no Twitter e no Facebook. Criada em 2016, debate o sistema de transporte coletivo em Porto Alegre e faz pressão em órgãos governamentais.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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