Opinião
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9 de novembro de 2019
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12:21

O fascismo atual como máquina suicida (por Jorge Barcellos)

Por
Sul 21
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Jair Bolsonaro | Foto: Reprodução

Jorge Barcellos (*)

A publicação de Ruptura (n-1 Edições, 2019) é um feliz achado para os tempos de crise atual. Espécie de manifesto de autoria anônima assinado pelo Coletivo Centelha, ele não nomina seus membros porque acredita que esta já é uma estratégia de luta, e só por isso, já nos surpreende.

O livro reúne ideias de diagnóstico, estratégia e revolução para os dias atuais. A primeira contribuição do coletivo é quanto ao diagnóstico de conjuntura que realiza. A ideia de que o capital impulsiona determinado padrão de dominação desde os anos 70, o destaque que dá a experiência chilena como ditadura que opera pelo expurgo contínuo dos descontentes, a valorização que dá a imaginação numa proposta de distopia de acumulação do capital, tudo serve para caracterizar nosso modo de governo neoliberal em todas as esferas como perverso modelo de precarização da vida, do trabalho e da subjetividade. Em todos os lugares e formas, é a colocação em prática dos sonhos de nossas classes dominantes e é notável que numa obra tão curta se descreva com exatidão de sentidos o que está ocorrendo nos governos Jair Bolsonaro, Eduardo Leite e Nelson Marchezan Jr neste exato momento.

Que políticas adotam nossos governantes? É a política do fim dos mantras do passado, do fim da ilusão da social democracia que vemos no fim da ideia do ”neoliberalismo com rosto humano”, da possibilidade de “diálogos, parcerias e concertação” entre classes, substituídos pelo mantra do consumismo como “emancipação” e “empoderamento”. O coletivo Centelha não se refere apenas ao caso chileno hoje em convulsão, mas também ao que ocorreu na França de Emmanuel Macron com suas políticas de desmontes de direitos sociais que se tornaram metas de nossos governantes. Lá, o povo foi as ruas numa violência que resultou na prisão de mais de 1.500 coletes-amarelos. Aqui, depois da invasão das ruas de 2013, reina a mais pura apatia. Por quê?

A razão deve ser procurada em nossa história: somos herdeiros de uma tradição política reformista. Aqui, a mudança radical da sociedade nunca foi vista como o caminho “do bem” e exceto pelas manifestações de 1964 que levaram o povo às ruas pela defesa da democracia, as eleições onde a direita saiu vitoriosa serviram para mostrar que o país deixou de ser o laboratório da esquerda, espaço de experiência para o impulso revolucionário. Ele se diluiu na sociedade e na máquina pública, bastando ver para isso a situação dos professores, dominados pelo sentimento de luta pela sobrevivência.

Quando foi que a esquerda perdeu seu espaço? Para o coletivo Centelha, com a crise de 2008 que levou a direita a ocupar o espaço político. A crise econômica foi o estopim para a revolta da direita com a socialdemocracia, que passou a colocar a política ultraneoliberal como uma exigência no contexto internacional, de Merkel na Alemanha à Cameron no Reino Unido e daí para o exigi-la no contexto nacional foi um passo. Nasce no cenário internacional o discurso contra o livre comércio, pelo retorno do protecionismo, pela crítica as propostas de seguridade e garantia social, tudo embalado de um fundo racista e nacionalista, o que fez concentrar as perdas em alguns setores da população.

Qual a contradição não mencionada pela direita? De que seu discurso nacionalista se contradiz com a política que reduz a seguridade social. A seguridade social nasceu como garantia de Estado para os filhos da pátria, embalada pela defesa do afastamento do país da solidariedade internacional ou quaisquer formas de universalidade. O discurso neoliberal, ao contrário, apropria-se do que interessa apenas ao capital, a ideia de defesa do nacional (leia-se indústria nacional, comércio nacional, empresa nacional, e… elites nacionais) que a proposta original nacionalista da seguridade social continha para esquecer em seguida o seu cerne, a necessidade de dar apoio as classes nacionais, justamente as mais frágeis. É como se preferisse a criança à água do banho, o que a direita fascista nacional faz é explorar o elemento superficial de uma política para negá-la.

“O fascismo coloca em circulação uma máquina suicida que pede sempre mais” definição apresentada pelo Coletivo Centelha que define a política econômica atual como fascismo, como o regime que capitaliza em cima da sua própria crítica, do descontentamento com o neoliberalismo para adotar a bandeira da defesa da pauperização, pela não pelo ataque a lógica da acumulação do capital, mas pelas defesa de políticas de austeridade que mentem ao afirmarem que beneficiam a todos quando na verdade, atacam os “menos humanos”, na concepção do coletivo Centelha. Essa definição fica clara quando vemos aplicada pelo fascismo suicida do governo federal, que reforma o Estado nacional, extingue ministérios e propõe uma reforma administrativa que sufoca a administração pública; no fascismo do governo estadual com sua politica de parcelamento de salários que sufoca professores, soldados e cabos; no fascismo do governo municipal cuja reforma administrativa aniquila a carreira de honestos e dedicados servidores públicos.

Somos nós que em todos estes níveis somos os “menos cidadãos”, somos o alvo fácil de políticas de austeridade que servem apenas para criar condições de rentabilidade para o capital “criar uma boa imagem para investidores”, etc. O Estado em todos os níveis tornou-se suicida porque tornou-se o caminho de grupos econômicos afirmarem-se no poder, atendendo a interesses do sistema financeiro, latifundiário. É suicida porque não há mais pacto social, não há mais socialdemocracia, não há acordo social de classes, há apenas subjugação através do estado – e é neste ponto que ultrapassa a fronteira e torna-se fascista. Segundo o coletivo Centelha, numa primorosa associação, é esse acordo frágil entre militares, industriais, altas elites burocráticas e partidos que fazem do estado brasileiro em todos os níveis se aproximar, paradoxalmente, do estado …nazista!

O coletivo Centelha sugere ainda algo mais perverso: de que o grupo no poder sequer deseja governar algo, o que ele quer é “gerir a impossibilidade de governar, perpetuar a crise usando o próprio líder como produtor de instabilidade. Sua forma de gestão é a perpetuação da crise”. Isso é perverso porque nega os fins do estado como conhecemos e sua comprovação está exatamente nesse sentimento que cada um de nós tem quando vemos as trapalhadas de Jair Bolsonaro, que mostram que sob o discurso de que é preciso gerir a crise o que se esconde é a produção de instabilidade a todo o custo. Basta ver sua forma de fazer política, de governar a agenda pública, afinal, só falamos daquilo que Bolsonaro faz. Não é o que acontece no Estado quando não se já não bastasse a perpetuação da crise do governo Sartori com o parcelamento salarial, o governo Leite usa e abusa da mesma estratégia administrativa? Não é essa impossibilidade de governar que está em andamento na gestão local, quando a máquina pública é desmontada, quando serviços terceirizados estão envolvidos em falcatruas assumindo serviços que
deveriam ser de servidores públicos?

Para o grupo Centelha, a ascensão fascista foi baseada no descontentamento geral com as promessas da democracia liberal. Se a eleição de representantes da direita em todos os níveis foi possível pela sua capacidade de mobilização estrutural, a crítica à falsidade de seu projeto deve vir em primeiro lugar. Mas como o faremos isso? Para o coletivo Centelha, trata-se de criticar a política parlamentar, recusá-la, criticar sua distância da soberania popular, o que significa defini-la também como fascista e portanto, negar a política. Será o caso? A radicalidade do coletivo está em negar as instituições, mas esta não foi exatamente a tática que a direita usou para chegar ao poder? E se a resposta revolucionária de que fala o coletivo Centelha não for a negação da política, mas ao contrário, for um esforço a mais para a prática transformadora?

Se é verdade que não devemos fazer pacto com quem nos espolia, que chama torturadores de heróis, também é verdade que até agora não fomos capazes de salvar o capitalismo de si mesmo, de sua tendência ao fascismo que é tornar o outro seu objeto. Os movimentos das ruas no Chile estão para mostrar que mais uma vez, ainda é preciso dar a voz ao desejo como prega o coletivo Centelha, talvez nossa única saída, mas não do modo que propõem: encontrar a porta de saída que bate na nossa cara é exigir, prontamente das instituições políticas e seus representantes, que cumpram seu papel, qual seja, o de provir o bem social público.

(*) Historiador, Mestre e Doutor em Educação. Autor de O Tribunal de Contas e a Educação Municipal (Editora Fi, 2017) e “A impossibilidade do real: introdução ao pensamento de Jean Baudrillard “(Editora Homo Plásticus,2018), é colaborador de Sul21, Le Monde Diplomatique Brasil, Jornal do Brasil, Carta Maior, Folha de São Paulo e do Jornal O Estado de Direito. Mantém a página jorgebarcellos.pro.br.

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