Opinião
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28 de novembro de 2019
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15:33

GLO = Garantia de licenciosidade para a opressão (por Jacques Távora Alfonsin)

Por
Sul 21
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GLO = Garantia de licenciosidade para a opressão (por Jacques Távora Alfonsin)
GLO = Garantia de licenciosidade para a opressão (por Jacques Távora Alfonsin)
Para analista do Instituto Sou da Paz, Bolsonaro tem “uma verdadeira obsessão, um fetiche, por arma de fogo”. Foto: Reprodução/Instagram

Jacques Távora Alfonsin (*)

Dia 25 deste novembro, em conversa com jornalistas, o presidente (?) Bolsonaro revelou sua disposição de encaminhar Medida Provisória, por ele chamada de GLO (Garantia da Lei e da Ordem), autorizando a força pública da União executar mandados de reintegração de posse contra “marginais” (expressão sua) que, apesar de obrigados a se desapossarem de terras rurais por força desses mandados judiciais, os governos estaduais estejam demorando para cumpri-los.

Embora ainda não se saiba se ele vai, ou não, cumprir a sua ameaça, nem os poderes que a tal medida franqueará, a verborreia legislativa baixada contra pessoas e, ou, grupos de gente excluída socialmente pelo atual (des)governo desde a sua posse, avisa que o pior está mesmo por vir. A serviço da bancada ruralista, do poder econômico latifundiário, da invasão de terras ocupadas por gente pobre com posses consolidadas, já se pode antecipar todos os maus efeitos desta outra infeliz iniciativa do quanto, hoje, ainda possa se chamar “administração pública”.

A generalização irresponsável de julgar-se qualquer ocupação de terra como feita por “marginais” criminosos, sob um tom depreciativo e humilhante como o utilizado pelo presidente (?), para sustentar a sua decisão, transforma-se num bom argumento contrário aos motivos que inspiram a sua pretensão. Na hipótese de chegar à condição de lei, ela adere à aceitação indiscriminada do preconceito que identifica toda/o a/o pobre como o presidente (?) o faz.

Marginal não tem um sentido único. Não é possível negar-se existirem muitas/os marginais que são, na verdade, “marginalizados”, sujeitadas/os sem culpa ou responsabilidade alguma por viverem uma situação deplorável de pobreza e miséria como a sua. O sistema socioeconômico gerador dessa injustiça mais do que denunciada e provada, por gozar de um cômodo anonimato, não vai pesar nada na Medida provisória GLO?

A resposta tem tudo para ser negativa, a vista das políticas públicas sobre terra implementadas pelo (des)governo federal. Mesmo que a história do mundo todo esteja cheia do testemunho de multidões de “marginalizados”, pessoas excluídas socialmente por gente rica e poderosa como a composta pela bancada ruralista atualmente mandando no Congresso Nacional, a administração pública federal é notoriamente cúmplice dela. Mesmo assim, as suas vítimas conseguiram conquistar terra e direitos; foram responsáveis por feitos heroicos protagonizados por sua própria força de organização e luta, contra poderes muito superiores ao seu, em armas e dinheiro, sem outra causa que a da própria indignação contrária às injustiças que sofreu e sofre até hoje.

Ainda que muitos exemplos dessas lutas tenham fracassado, como a Editora Caros Amigos procurou mostrar em 12 fascículos sobre as “revoltas populares no Brasil”, chegam a ser vergonhosos os exemplos da covardia oficial brasileira, que sacrificou milhares de antepassadas/os nossas/os em nome de motivações servis à dominação de uma classe social sobre outra, em nosso terra. Tudo ao feitio da inspiração agora presidencial (?) da opressão pretensamente jurídica ser obedecida como lei, dane-se a competência autônoma dos Estados partes da nossa Federação e do nosso território, de acordo com letra expressa da Constituição Federal.

No fundo, a iniciativa dessa ameaça “presidencial” (?) desnuda o interesse de quem ela realmente deseja servir, visivelmente contrário aos direitos sociais violados pelo descumprimento da função social da terra, comprovado repetidamente pelas ocupações de terra rural organizadas pelo MST. A GLO certamente dará poderes de destruição dos direitos sociais credores daquela função, e de toda a organização popular que exija o seu cumprimento. Poderes que, por sua fundamentação ilícita provada no passado, já recebeu críticas contundentes do quanto interferem na própria liberdade alheia, como atesta o professor espanhol de Direito Constitucional Juan María Bilbao Ubillos, em sua obra, “La eficácia de los derechos fundamentales frente a particulares” (Madri: Imprenta Nacional Del Boletim Oficial Del Estado 1997, p. 243, aqui traduzida uma das suas lições pensamentos para o português):

“Dar rédea solta a essas formações de poder supõe questionar de novo, afinal de contas, a possibilidade de realizar a liberdade. O direito formal e igual para todos tem por si próprio a tendência de fazer aos fortes ainda mais fortes, e aos débeis … ainda mais débeis. Quem carece de poder social próprio ou de uma especial proteção, quem é impotente por si mesmo, acaba por não poder já realizar sua liberdade jurídica frente aos titulares do poder social. A liberdade realizável para todo o mundo em princípio, se volatiliza, vai-se progressivamente convertendo em uma forma vazia. A desigualdade social se converte em falta de liberdade social. Pode-se permitir isso?”

Para o atual (des)governo federal, a resposta para esta pergunta é, certamente, sim. Em matéria de terra, ele exerce todo o seu poder em dar rédea solta para quem já tem poder de sobra contra as/os que não têm nenhum. Estas/es são consideradas/os, não como cidadãos dotados de direitos, mas como inimigos. Inimigos de uma GLO, uma lei, e de uma ordem garantida, presidida, mandada e executada em favor de uma classe abastada contra outra pobre ou miserável.

Embora a República (?) brasileira reconheça os direitos sociais como fundamentais, com cláusulas pétreas previstas na Constituição Federal, nenhum deles goza do respectivo e garante poder social comparável ao dos direitos patrimoniais, por exemplo. A ausência de garantias devidas à sua efetividade prática é, sabidamente, uma das questões mais tormentosas enfrentada por quantas/os sofrem o desrespeito da existência, da validade e, conseqüentemente, da eficácia dos direitos sociais. Com a tal GLO, o vigente (des)governo federal dará mais um passo, como o de ganso, próprio dos militares, no rumo da sua infidelidade aos fins do Estado de direito e à Constituição, em sentido visivelmente contrário aos do primeiro e da segunda, como ensina o mesmo professor Juan María:

“O Estado mesmo deve também canalizar, delimitar o poder social existente ou em formação, e impedir que ponha em jogo por inteiro sua superioridade frente aos não-poderosos e afogue a liberdade jurídica destes.”

O presidente (?) Bolsonaro vive relembrando a obediência a Deus, como um verdadeiro carimbo de legitimidade para as Medidas provisórias que assina, a obrigação de se instaurar no país um sistema legal de segurança jurídica, imposta pela aplicação rigorosa de penas inspiradas em suas políticas rigorosamente legalistas. O respeito à liberdade, aí, pode ser medido pela responsabilidade sob a qual ela é vivida. A Medida Provisória, como qualquer lei, não está imune ao abuso da liberdade refletir-se no seu poder de imposição. A propósito, não se sabe se o presidente (?), por suas frequentes lembranças de Deus, como alguém que pune e castiga, já leu a carta de São Paulo aos romanos. Deveria lê-la, se não por outra razão, pela de não usar o nome de Deus em vão. É o que se pode depreender de um comentário de Paul Ricouer a esta carta, em uma de suas obras, “O conflito das interpretações” (Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda, 1978):

“A obediência ao mandamento, porque é ordenado, torna-se mais importante que o amor do próximo e que o próprio amor de Deus. É a essa exatidão na observância, que chamamos de o legalismo. Com ele, ingressamos no inferno da culpabilidade, tal como o descreve São Paulo: a própria lei torna-se fonte de pecado; ao fornecer a consciência do mal, ela excita o desejo da transgressão, suscita o movimento infindo da condenação e da punição. {…} Lei e pecado se engendram mutuamente num círculo vicioso que se torna um círculo mortal. Assim, a culpabilidade revela a maldição de uma vida sob a lei. {…} A culpabilidade anuncia uma acusação sem acusador, um tribunal sem juiz, um veredito sem autor”. (pág. 359).

Assim, a liberdade, no contexto sob o qual as políticas do presidente (?) tem-se feito impor, muito mais do que uma palavra, é um direito que está encontrando dificuldade de ser exercido, tanto por quem tem medo de perdê-la (latifundiários por exemplo) quanto por quem tem a coragem de conquista-la (povo sem terra, quilombolas, indígenas, etc.). A lei que pretenda garanti-la – valha a lição de São Paulo – desequilibra os seus efeitos na medida em que só pretenda incutir medo e sirva de escudo contrário à coragem.

Pelo que o presidente (?) Bolsonaro diz e faz, ele prefere eliminar o medo das pessoas que já gozam desse direito mesmo ao custo da repressão violenta à coragem daquelas que ainda não o conquistaram, embora, em letra constitucional expressa, ele figure como garantido a todas/os. A GLO projetada pelo presidente (?), será igual ao (des)governo que preside: uma democracia formal, essencialmente oposta aos direitos humanos fundamentais sociais, suficiente para despistar um Estado ditatorial de exceção.

(*) Procurador aposentado do Estado do Rio Grande do Sul e membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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