Opinião
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19 de novembro de 2019
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14:07

Expurgos e cassações (por Lorena Holzmann)

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Sul 21
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Manifestação estudantil em defesa da anistia | Foto: Banco de Dados do Museu da UFRGS

Lorena Holzmann (*)

Nos anos imediatamente anteriores ao golpe de 1964, a sociedade brasileira se movimentava em torno da demanda por reformas de base, entre as quais a reforma universitária.Posições pró-reformas e em oposição a elas polarizavam os debates no interior das instituições de ensino superior, sobretudo as públicas. Estudantes e professores promoviam e participavam de discussões e atividades não só sobre a reforma universitária, mas também de pauta mais ampla das reformas de base demandadas no país.

O movimento estudantil era forte, articulado e combativo. O campo favorável às reformas, dirigindo a UNE, desenvolvia forte intervenção cultural entre a população por meio do Centro Popular de Cultura (CPC) e da UNE Volante, incentivando e promovendo ações no teatro, no cinema, na música. A organização entre os professores era incipiente ou inexistente.

É nesse contexto de grande mobilização que ocorre o golpe, com efeitos imediatos de repressão e de intervenções nos espaços identificados com a proposta de mudanças no país.

Nas universidades, iniciaram as cassações de professores que haviam tido participação naqueles espaços e naquelas atividades.

Por imposição das autoridades que haviam ocupado o governo, foram instituídas comissões de inquérito, “tribunais” que deveriam averiguar casos de subversão, de incitação à desordem e à indisciplina e de “pregação comunista e esquerdizante” por professores em sala de aula. Alguns professores aceitaram integrá-los, acreditando que, com sua atuação, os avanços da repressão sobre a universidade poderiam ser detidos; outros a aceitaram com o propósito de implantar na universidade os “novos valores” que deveriam orientar sua atuação.

Começa aqui, a grande iniquidade que macula a história da nossa UFRGS. A mesquinharia, o revanchismo, a inveja, a vingança encontraram terreno fértil para operar. Divergências pessoais, distintas orientações teóricas e metodológicas de professores e seu prestígio ou rejeição entre os alunos foram transformados em argumentos de acusação de atividades subversivas e de incitação dos estudantes à indisciplina e de perversão da juventude estudantil. Também foram argumentos acusatórios a participação de professores em eventos extrauniversidade ou sua vinculação a grupos políticos, partidários ou não. Sempre acusações vagas e denúncias apócrifas. Em 1964, foram expurgados ou aposentados 17 professores de 7 faculdades.

Após a promulgação do AI-5, em dezembro de 1968, a situação no país e na Universidade tornou-se mais repressiva, e um novo ciclo de cassações ocorreu no ano seguinte. Em 1° de setembro, o DOU publicou lista de aposentadoria de 13 professores da UFRGS e, no dia 10 de outubro, nova lista. Com 6 nomes.

Reconstituir esses episódios, ainda que resumidamente, é importante para levar à reflexão sobre o papel da universidade na sociedade e como ela pode ser manipulada para servir a interesses estranhos às finalidades previstas em seu nascimento na sociedade ocidental, como espaço de liberdade de pensamento, confronte respeitável de ideias, estímulo à dúvida e rejeição a certezas absolutas, base da construção de conhecimento com as ferramentas e o rigor do método científico.

A universidade não é uma instituição apartada do contexto mais amplo que a abriga, faz parte dele e, no seu interior, se manifestam os conflitos, oposições e embates que ocorrem na sociedade. Quando forças retrógradas, obscurantistas, resistentes à mudança dominam o país, a universidade tende a incorporar o mesmo ideário e suas práticas, ainda que a resistência sobreviva. O confronto se acirra em seu dia a dia.

Foi o que aconteceu nos anos 1960, quando a própria universidade, com a adesão de parte de seus professores, assumiu as funções de guardiões de uma ordem avessa às transformações requeridas pelo país.

É o que estamos vendo acontecer nos dias atuais. Quando se completam 50 anos da divulgação da última lista de cassações na UFRGS, a universidade pública brasileira está sob fortíssimo ataque de forças obscuras, negadoras dos valores da ciência e do conhecimento, da cultura e da arte que nela se produzem e dela se difundem, a preocupação com seu futuro tem sólidos fundamentos na realidade.

É relevante lembrar o comentário do professor Nelson Souza, expurgado da Faculdade de Arquitetura, quando fazíamos as entrevistas para coletar o material que deu origem ao livro dos expurgos na UFRGS: “Nós pensávamos que poderíamos mudar o país a partir da universidade. Nos enganamos”.

Mas a universidade pode e deve ser um espaço de resistência, articulado com as forças progressistas da sociedade brasileira, que se comprometem e atuam no sentido de construir um país mais justo, menos desigual e no qual vigore um Estado democrático de direito.

P.S. A exposição detalhada do processo de intervenção na UFRGS pós-1964 está registrada no livro Universidade e Repressão – Os Expurgos na UFRGS. 2ª.ed., Porto Alegre: LPM, 2008.

(*) Socióloga, Professora Titular aposentada da UFRGS.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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