Opinião
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21 de outubro de 2019
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12:08

Regularização fundiária não é ação entre amigos. Os aprendizados de 10 anos do Terra Legal Amazônia (por Carlos Guedes de Guedes)

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Sul 21
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Regularização fundiária não é ação entre amigos. Os aprendizados de 10 anos do Terra Legal Amazônia (por Carlos Guedes de Guedes)
Regularização fundiária não é ação entre amigos. Os aprendizados de 10 anos do Terra Legal Amazônia (por Carlos Guedes de Guedes)
Foto: Divulgação/ Ministério do Meio Ambiente

Carlos Guedes de Guedes (*)

Dizia um colega de Incra, velho como o diabo, que regularização fundiária é simples, mas complicada: você tem que conciliar a área a ser regularizada com a família que a ocupa. A coisa se complica porque tanto as pessoas como os limites das áreas estão em constante movimento; quem estava lá pode não estar mais; a natureza é cobiçada para se tornar meio de produção e especulação. Quando o movimento de pessoas e territórios envolve mais de 50 milhões de hectares, trata-se de um problema de alta complexidade. Esse era o tamanho do desafio da regularização fundiária rural e urbana que 10 anos atrás o Governo Federal resolveu enfrentar na Amazônia Legal.

A regularização fundiária rural se distingue da reforma agrária, mas as duas não são políticas excludentes. A regularização fundiária trata de reconhecimento do direito à terra por quem a ocupa de fato. Em 2009, durante o Governo Lula, compreendeu-se que tal iniciativa contribuiria para aprimorar o controle do desmatamento na Amazônia. A partir de 2004, o Brasil já havia conseguido reduzir drasticamente os índices a partir de uma ação combinada de comando e controle ambiental, moratória fundiária[1], retomada de glebas públicas abandonadas e destinação para assentamentos e Unidades de Conservação. A reação de quem estava sendo atingido foi brutal, e o assassinato da Irmã Dorothy Stang em 2005 ilustra o ambiente de conflito.

A proposta do Terra Legal era incorporar às iniciativas em curso mecanismos de incentivo social e econômico para públicos até então invisíveis, e dinamizar as economias locais[2]. A formalização das propriedades rurais e dos núcleos urbanos gera efeitos como atrair crédito, serviços, alavancar arrecadação tributária municipal. No território amazônico a regularização poderia ainda internalizar as externalidades ambientais geradas pelo desmatamento acobertado pela informalidade no uso e domínio da terra. Era um debate que se travava no espaço real da correlação de forças, envolvendo diferentes segmentos da sociedade, governantes locais, e as tensões que vinham desde os locais que seriam diretamente beneficiados até a visão internacional sobre a Amazônia.

No caso das propriedades rurais, o Brasil inovou a política fundiária integrando-a à gestão ambiental. O cumprimento ambiental virou cláusula para confirmação do título definitivo da propriedade. Áreas desmatadas depois de 2004 não poderiam ser regularizadas[3], para não beneficiar possíveis ganhos especulativos com a expectativa da regularização, garantindo coerência entre as agendas fundiária e ambiental.

Temas controversos estavam diretamente relacionados com o perfil do beneficiário da política. Estava se reconhecendo um ocupante que não se enquadrava nem como oriundo das populações indígenas, tradicionais ou ribeirinhas, mas que também não eram grandes grileiros de terras. São pessoas com trajetória de vida no interior da Amazônia em busca de oportunidades, ou levadas pela própria ação do Estado brasileiro. Famílias que sofrem cotidianamente as dificuldades da informalidade e do não reconhecimento do direito à terra. Definiu-se em lei a prioridade para pequenos e médios ocupantes, e a linha de corte para regularização foi para áreas até 15 módulos fiscais[4], com rito da regularização expedito para os pequenos posseiros. O preço da terra levou em consideração um valor compatível com o perfil das atividades produtivas dos seus ocupantes, evitando que acabassem pagando pelo movimento especulativo da terra. Não se tratava de preço de “banana”, mas de um preço que tivesse como referência todos os alimentos produzidos ou coletados, que não acompanham em renda o valor especulativo da terra. Tal movimento especulativo deveria ser atacado por outras políticas como a tributária[5] e de controle sobre a ação de estrangeiros.

A curva de aprendizagem se deu no tempo e na dimensão de atuar na Amazônia. As experiências iniciais na região da BR-163 no estado do Pará operadas pelo Incra já apontavam o tamanho da dificuldade a ser enfrentada: nem todas as terras anunciadas como matriculadas em nome da União e do Incra tinham chegado efetivamente ao registro de imóveis; as medições de glebas do tamanho de países feitas nos anos 70 precisavam ser atualizadas; títulos que circulavam e nunca foram a registro deveriam ser analisados. Os novos títulos deveriam ser registrados em cartórios sem estrutura e com histórico de ações de correição[6], e as famílias beneficiadas com a terra conquistada começariam uma nova fase, demandando suporte para viver, produzir e preservar[7].

A titulação massiva não veio no início, mas legados da política foram deixados. A coordenação de iniciativas entre os órgãos federais para destinação a novas áreas protegidas ambientalmente e para beneficiários da regularização fundiária, a criação de um grupo gestor com participação ativa dos governos estaduais e assento para Ministério Público e movimentos sociais, e o desenvolvimento de novas ferramentas de gestão territorial como o Sistema de Gestão Fundiária – SIGEF[8], foram marcas inquestionáveis do Programa. Os Mutirões Arco Verde-Terra Legal[9] possibilitaram não somente o cadastramento das ocupações mas também a possibilidade de documentação pessoal, orientação produtiva e acesso a crédito às famílias, passando inicialmente pelos 33 municípios com maiores índices de desmatamento à época. Do cadastro partia-se para medição das propriedades e por rigorosa análise para expedição dos títulos, já que se trata de patrimônio público que é repassado para o particular.

O Terra Legal foi prova que para termos uma ação de Estado devemos ter governos comprometidos com iniciativas que transcendem seus mandatos. Da maior contratação de georreferenciamento já realizada pelo Governo Federal até o momento[10], tem-se mais de 43,7 milhões de hectares medidos – território equivalente a 1,5 vezes o Estado do Rio Grande do Sul ou mais que uma Alemanha inteira – definindo limites e reconhecendo direitos em todos os estados Amazônicos. Foram 785 núcleos urbanos com áreas repassadas ou em repasse a 148 municípios em que vivem mais de 6 milhões de pessoas; 122 mil ocupações de particulares georreferenciadas com área inferior aos 15 módulos fiscais[11], sendo 99,2 mil com área inferior a 100 hectares[12]. Limites de Terras Indígenas, Unidades de Conservação e Projetos de Assentamento foram devidamente delimitados e reconhecidos. O Terra Legal contribuiu no controle do desmatamento, seja pelas parcelas já identificadas ou mesmo pelo não medido, permitindo atuação mais eficaz dos órgãos ambientais ao separar “o joio do trigo”. Segundo estudo apresentado na Universidade de Brasília (DISARZ, 2018)[13], apenas 4,5% dos imóveis titulados apresentaram ocorrências de infrações ou embargos ambientais, e a área desmatada pós-titulação representou apenas 3% do total desmatado nos mais de 1 milhão de hectares regularizados.

Quando se pretende recolocar a regularização fundiária como prioridade da ação agrária do governo, deve-se entender que sobre o mesmo instrumento pode se deixar diferentes legados. Dissociar a ação fundiária da agenda ambiental e privilegiar quem pode pagar pela medição das suas propriedades em detrimento de uma maioria de posseiros sem condições para tal pode resultar em mais concentração fundiária e aumento do desmatamento. Vetar transparência e espaços de participação da sociedade civil no acompanhamento da execução, monitoramento e avaliação da política permitirá a pressão sobre quem até o momento não foi regularizado porque não devia ser regularizado mesmo. As famílias que terão seu direito reconhecido não podem ser abandonadas à própria sorte, em uma disputa desigual com o capital em expansão nas regiões de fronteira agrícola e mineral do Brasil. Regularização fundiária não deve ser “como o diabo gosta”, mas como a Amazônia e o povo brasileiro merecem.

Notas

[1] “Portaria Conjunta N° 10 – Incra | Arquivo.” http://www.incra.gov.br/tree/info/file/2400. Acessado em 18 out. 2019.

[2] “ENTREVISTA-Mangabeira quer desenvolvimento … – Estadão.” 16 mai. 2008, https://www.estadao.com.br/noticias/geral,entrevista-mangabeira-quer-desenvolvimento-para-salvar-amazonia,173913. Acessado em 17 out. 2019.

[3] Alterada pela Lei 13.465/17 para o ano de 2008, retirando todo o sentido da proposta inicial.

[4] Outra alteração da Lei 13.465/17, ampliando a regularização sem rito licitatório para imóveis até 2.500 hectares, limite determinado pela Constituição Federal de 1988.

[5] “Escolhas lança estudo sobre Imposto Territorial Rural em ….” 27 mar. 2019, http://www.escolhas.org/escolhas-lanca-estudo-sobre-imposto-territorial-rural-em-seminario/. Acessado em 20 out. 2019.

[6] “CNJ anula 5 mil registros imobiliários supostamente … – G1.” 19 ago. 2010, http://g1.globo.com/politica/noticia/2010/08/cnj-anula-5-mil-registros-imobiliarios-supostamente-irregulares-no-para.html. Acessado em 18 out. 2019.

[7] “MDA lança programa para atender municípios que compõem ….” http://www5.sefaz.mt.gov.br/-/mda-lanca-programa-para-atender-municipios-que-compoem-operacao-arco-verde. Acessado em 17 out. 2019.

[8] “SIGEF é vencedor do prêmio e-GOV 2014 – Incra.” 29 mai. 2014, http://www.incra.gov.br/noticias/sigef-e-vencedor-do-premio-e-gov-2014. Acessado em 20 out. 2019.

[9] “Mutirão Arco Verde Terra Legal ultrapassa 100 mil ….” 28 jul. 2009, https://www.mma.gov.br/informma/item/5630-mutirao-arco-verde-terra-legal-ultrapassa-100-mil-atendimentos-esta-semana. Acessado em 17 out. 2019.

[10] “Governo vai mapear terras na Amazônia | EXAME.” 10 out. 2010, https://exame.abril.com.br/mundo/governo-vai-mapear-terras-amazonia-534886/. Acessado em 17 out. 2019.

[11] Dados até 30/09/2019, disponíveis em www.acervofundiario.incra.gov.br

[12] “Programa Terra Legal – quem são os beneficiários da … – MDA.” http://www.mda.gov.br/sitemda/sites/sitemda/files/user_arquivos_1684/ARTIGO.26%20de%20set.pdf. Acessado em 15 out. 2019.

[13] “Técnicas de geoprocessamento aplicadas a análise do ….” 13 jun. 2019, http://bdm.unb.br/handle/10483/22165?mode=full. Acessado em 18 out. 2019.

(*) Analista em reforma e desenvolvimento agrário do Incra, presidente do Incra entre 2012 e março de 2015.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21. 


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