Opinião
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16 de outubro de 2019
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19:17

O neoliberalismo em ataque ao ensino público (por Jorge Barcellos)

Por
Sul 21
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Adriano Naves de Brito, secretário Municipal de Educação de Porto Alegre em reunião com diretoras das escolas da rede municipal de ensino. Foto de Luciano Lanes/Divulgação PMPA.

Jorge Barcellos (*)

A guerra social como política

O jornalista Romaric Godin acaba de lançar o livro “A Guerra Social na França” (La Decouverte Editions, 2019) mas muito do que diz pode ser aplicado no Brasil e as políticas educacionais promovidas pela Prefeitura de Porto Alegre. A tese de Godin é que o neoliberalismo pode levar as sociedades democráticas ao autoritarismo pelo incentivo a oposição entre capital e trabalho, o que hoje, para o autor, é muito forte em seu país. Para Godin o problema na França é que o seu modelo social está cedendo a uma nova ordem econômica que apresenta o neoliberalismo como fundamento e paradigma básico para a construção de uma sociedade mais justa quando ele não é. A razão é que o neoliberalismo coloca o mercado no centro do funcionamento da sociedade usando o Estado como seu fiador, isto é, ao invés de o Estado ter o papel de educar e disciplinar o mercado, a ideia neoliberal é que sua função é garantir seu bom funcionamento e não o da sociedade. Para isso usa o Estado para mercantilizar a sociedade e disseminar as noções de concorrência em todos os níveis “a ordem espontânea do mercado só existe se o poder público a garantir” afirma Godin.

Não se trata mais da retirada do estado do campo social substituído pelo mercado, se trata da sua redefinição no sentido de um estado que apoia políticas fiscais, concorrência e liberação do lucro. Para o autor, a Guerra Social de que trata o título do livro é a consequência da lógica do desenvolvimento neoliberal porque onde as forças públicas até então se inclinavam a favor do trabalho, passam a favorecer políticas de acumulação de capital e lucro das empresas “luta liderada pelo neoliberalismo para promover o capital no trabalho”, guerra travada dia a dia nas empresas que é aos poucos introduzida no Estado, através de uma violência de baixa intensidade apoiada por leis que legitimam os princípios da ordem neoliberal, expressão de uma guerra intelectual que tenta fazer com que valores, símbolos e sentidos do capitalismo sejam aceitos como “natural” e da “ordem das coisas”.

A ideia de guerra intelectual de Godin é particularmente interessante para explicar o cerne do projeto de reforma da Lei de Gestão Democrática das escolas públicas municipais elaborada pelo Secretário Municipal da Educação de Porto Alegre Adriano Naves de Brito. No último dia 03/10, Brito promoveu uma reunião com diretores das escolas municipais para dar informações sobre o projeto de lei de sua autoria que altera a Lei 7365, de 17.11.1993 (https://bit.ly/2VGWnS0) que estabeleceu eleições democráticas para diretores dos estabelecimentos de ensino.

Agora, por sua proposta, são introduzidos novos dispositivos, entre eles uma avaliação periódica com base nos índices do IDEB, fazendo uma reforma na lei de eleição de diretores da capital. Para mim este é mais um ataque a educação municipal (veja um balanço em https://bit.ly/33eURt5) porque redefine a figura do diretor de escola dentro do contexto neoliberal, nó górdio que determina as próximas ações do secretário (https://bit.ly/2ofYBeV) e que corresponde a uma nova etapa da guerra intelectual que o secretário trava com seus servidores, para usar a expressão de Godin. Ora, entendo que caracteriza essa proposta o fato de que ela transforma a escola num lugar de produção de indicadores antes que produção de cidadãos, de produção de resultados e medidas antes de condições de ensino. Exploremos este ponto de vista.

O diretor escolar como agente do capital

Em termos gerais, o Projeto de Lei 20/2019 (https://bit.ly/31hBzBJ) revela que a administração municipal não vê o diretor da escola como ator integrado ao processo de ensino, mas antes como o “capitalista infiltrado” na escola cujo objetivo é transformá-la em máquina de produção, em infraestrutura educativa e cultural, pois o projeto revela a ausência dos compromissos assumidos pela lei anterior, o verdadeiro compromisso com toda a sociedade, com os excluídos, com o combate aos processos de exclusão e com a defesa de seus atores privilegiados, alunos e professores. Nas entrelinhas sugere uma visão na qual os alunos são apenas produtores de indicadores, já que os processos que visam introduzir não se interrogam sobre sua condição, sua vida e seus projetos. Aliás, o único projeto de vida que a proposta de lei sugere é que o aluno deve sonhar em ser assimilado pelo mercado, papel cuja direção é outorgada agora ao diretor da escola e devemos dizer claramente que isso trata-se da total inversão de prioridades construídas por professores a que se opõem seus representantes.

Não admira que o projeto de lei pretenda que as escolas sigam critérios de produtividade externos ao ambiente escolar, mas centrais ao mundo do trabalho e nem que se não se perceba porque tais critérios vão na contramão da filosofia das escolas. É mais uma vez a velha tese da produtividade, aparentemente progressista, que se encaixa como uma luva na defesa do capitalismo predador capitaneada pela atual administração municipal de Porto Alegre: os pressupostos neoliberais do governo Nelson Marchezan Jr. já alcançam os gabinetes da educação, buscando a última cartada para o ciclo final governativo que agora começa. Não se admira também a alteração sociológica que a catástrofe da reforma da eleição de diretores irá produzir no cotidiano da escola, o hiato geracional cujo dano no mundo escolar já é possível antecipar. Pois não se trata de que os diretores de escola passam a ser de pouca confiança para a administração, a proposta revela que são também os demais profissionais escolares a eles subordinados motivo de desconforto. As novas regras eleitorais colocam em xeque as demais equipes, que passam a ser colocados em suspeita, já que a reforma do processo eleitoral, do modo como está sendo conduzida, mostra o desapreço dos administradores de plantão pela realidade escolar e ignora as conquistas da gestão democrática até agora.

A reforma eleitoral é proposta à força e a revelia da comunidade escolar: a reunião do secretário com diretores escolares não foi de discussão, foi de apresentação do projeto. Não houve construção coletiva, não houve debate com as entidades representativas para sua construção, foi uma reunião protocolar sem direito à veto ou voto, e a ausência desta construção coletiva diz muito das intenções do governo. A razão é que, em meu entendimento, se o secretário não pode atacar a todos os atores da escola, ele ataca aqueles que podem ser mais facilmente ser postos em dilemas de decisão, os diretores, e portanto, objeto de cooptação política, criando para isso, um conflito de interesse de representação artificial com a comunidade ao ampliar seu voto, manipulação evidente das regras do jogo eleitoral escolar para exercer dominação.

Os elementos ausentes da proposta

Desde sua instalação, o governo Marchezan Jr e do secretário Brito atuam de forma nefasta sobre a realidade escolar municipal. Alterando processos de trabalho e rotinas administrativas, afeta negativamente construções coletivas que vinham funcionando na escola de forma legítima e ordenada. Como disse uma professora nas redes sociais, se porventura o secretário municipal de educação pudesse ser submetido a seus próprios critérios, ele não obteria aprovação. Sua proposta é baseada numa manipulação grosseira de sentido, constrói um discurso sedutor – quem é contra aumentar a liberdade de pais? – que visa retirar a independência que o cargo de diretor escolar exige, forma dissimulada do secretário ampliar o exercício de seu poder sobre a escola. Faltam a sua proposta conceitos básicos de democracia e pedagogia, o respeito a herança cultural da comunidade, o respeito a tradição das práticas de professores, alunos e comunidade coletivamente construídos, típicos de projetos cujos mandatários vivem fechados em seus gabinetes. Ora, o que o impede o secretário municipal de educação de ir ao limite de seu projeto?

Por que não escolher logo os diretores escolares entre gestores e marqueteiros, porque não reduzir a escola ao espaço do marketing tão necessário para a gestão do prefeito às vésperas da eleição? O problema para os administradores neoliberais é que a escola não é um teatro, uma empresa ou uma fábrica destinada a ser entregue a programadores e empresários. É um contrato entre gerações – sequer a palavra é adequada -, espaço onde o que conta é a capacidade de transmitir o legado do passado a geração do presente: podemos e devemos aperfeiçoar a democracia escolar, mas nunca em nome dos valores do capital, que são sempre nefastos, mas em seus próprios termos, isto é, aqueles que garantem as condições do exercício democrático escolar propriamente dita.

Por que a democracia escolar como vem sendo praticada amedronta os neoliberais? Por que as pessoas não são naturalmente a favor da perda de direitos e proteções, não abandonam os processos que construíram coletivamente legitimados por sua história. Ora, o que o projeto revela é que o governo neoliberal quer se apropriar do universo escolar, o que implica em limitar garantias individuais dadas a diretores escolares, excluir no seu interior as políticas de defesa da diversidade de experiências de ensino defendidas pelo campo democrático. A ideia neoliberal “do mundo como ele é e que não pode ser mudado”, de que todos devemos nos submeter a indicadores, é a imagem perfeita neste universo porque apresenta suas políticas como estratégia de combater a crise da educação. A escola municipal está em crise? É claro que sim! Devemos fazer algo? Certamente. Mas esse “algo” não é a redução da democracia escolar, crítica a ideia de que as comunidades escolares têm o direito de gestionarem a si próprias com base em princípios que eles mesmos elegeram, isto é o que é visto como um obstáculo: “ora, tudo isso é uma bobagem quando o mercado já tem os princípios essenciais! ”.

O termo de Godin que define este tipo de ação neoliberal no interior do estado é definido como “democracia emoldurada”: o voto é possível, desde que seus resultados estejam atrelados aos objetivos que o gestor impõe. Ora, questionamento de políticas a favor do capital não é aceito pelos gestores de plantão é claro, o que o secretário propõe é sua versão do conceito de Godin, é a “democracia escolar emoldurada”, onde todos participam, desde que o critério de avaliação não seja o eleito pela comunidade mas o reconhecido pelo mercado, pelo universo da produção, e nada melhor do que “índices de desempenho” em matemática e português para fazê-lo.

O que está ausente na proposta do secretário é essa assunção clara: o que os neoliberais recusam é o questionamento das políticas a favor do capital na escola. Marchezan e Brito não podem aceitar o questionamento e a recusa da submissão a valores e metas por que visam a criação de uma escola que eduque trabalhadores para o mercado. A reforma de diretores está sendo imposta goela abaixo porque sempre que o mercado se vê ameaçado, ele recorre a práticas autoritárias e violentas. A proposta é autoritária por que não considera a longa história da construção da democracia pela comunidade, é autoritária porque é concebida autoritariamente, isto é, sem participação dos interessados. Incapaz de se assumir como o governo autoritário que é, o jeito é usar da força política no espaço legislativo e do uso da violência política sem restrições – pois é exatamente isso que ocorre quando se passa por cima dos processos construídos de forma comum – para construir no interior da rede escolar as formas de garantir a dominação simbólica e o aprofundamento da política favorável aos valores do capital.

Um processo em escala mundial

O processo de desagregação das políticas públicas, e com ela a educação, não é exclusivo do Brasil. Godin assinala que mesmo na França e demais países europeus que desenvolvem políticas de bem-estar social desde os anos 80, esse processo está em andamento. Comparando sua análise com o caso brasileiro, ainda que a legislação trabalhista seja mais protetora na França, observa-se no Brasil as políticas neoliberais foram fortes nos anos 80 e 90. Quer dizer, enquanto as desigualdades se estabilizaram na França, ao contrário, no Brasil aumentaram acentuadamente como resultado de políticas neoliberais. Exceção as políticas de combate à pobreza que receberam incentivos importantes como o Bolsa Família e ações que incentivaram a permanência das crianças nas escolas.

Godin caracteriza o caso francês como de pequeno conflito social, onde os defensores das políticas neoliberais foram derrotados e cujo efeito foi a redução da intensidade de suas políticas. No Brasil este jogo teve nuances já que tais grupos nunca saíram efetivamente derrotados do embate político, ao contrário, viram expandir-se o universo de sua atuação, alcançando a educação. Ambos países tiveram de lidar com processos de desindustrialização e buscar por políticas de competitividade, e para isso, mais no Brasil do que na França, precisaram de um estado apoiador de políticas econômicas neoliberais capaz de engajar nele seus processos educacionais. Se, como afirma o autor, o resultado da história das políticas econômicas na França foi a criação de um estado civilizado na luta entre capital e trabalho, um estado que rejeita sua adesão total ao capital, no Brasil isso não ocorreu. Aqui, o caráter negociado das conquistas trabalhistas transformou o estado em um ente frágil e incapaz de rejeitar a adesão ao capital como se viu nos governos do PT.

Para Godin, ainda que o caso francês seja diverso do alemão e inglês, é preciso reconhecer os diferentes níveis de luta entre as elites econômicas, os modelos neoliberais pretendidos para as políticas públicas, tiveram um especial campo de luta na educação. Em Porto Alegre, não foi diferente: encabeçando um projeto de educação integral, defendendo a escola democrática e cidadã, logo logo a educação municipal seria alvo das políticas neoliberais na capital. É exatamente o que vemos agora. A lição que fica da leitura de Godin comparando ao caso brasileiro é que nossas elites, ao contrário das europeias, acreditam que o modelo ainda neoliberal tem fôlego em todos os campos, e por isso, no caso de Porto Alegre, onde o neoliberalismo é governo, dinamizam transformações no campo educacional como forma de difusão dos princípios neoliberais: a escola, nesta visão é a fábrica, e os diretores, são seus gerentes. Godin assinala que na França, a reorganização das políticas neoliberais é apenas “aparentemente humana”, já que continuam cortes de impostos para ricos e o fim da solidariedade social para os pobres; aqui, a reorganização das políticas neoliberais, principalmente na educação, não faz disfarce algum para aparentar um lado “humano”, pois de todos os processos que lhe interessam, a reforma do sistema de eleição de diretores não esconde os objetivos de formatar a educação das novas gerações.

A eficácia como paradigma neoliberal

É aí que o projeto de lei de reforma da eleição de diretores encontra seu lugar na lógica neoliberal em andamento. O ponto foi descrito por Cristian Laval em A Escola não é uma empresa (Editora Planta, 2004; Boitempo, 2019): no discurso da modernização, a noção de eficácia se torna um valor a ser implantado, ideal, concepção onde tudo deve ser sempre mensurável e possível de ser reproduzido em larga escala através de testes. O efeito dessa cultura de avaliação, aponta Laval, é a “subordinação crescente da escola aos imperativos econômicos. Ela acompanha a “obrigação de resultados” conhecida por se impor tanto a escola como a toda organização prestadora de serviços “(Laval, p.209). O que o projeto de lei reforça na escola é a cultura da competitividade, o que transforma a avaliação no momento chave do processo educativo, e não a aula propriamente dita. Tal processo esquece que os laços que prendem os diretores as escolas não são obtidas por critérios de produtividade, mas construídos no dia a dia na vida da escola.

É difícil explicar ao secretário municipal de educação de Porto Alegre esse fato porque ele se comunica com sua rede de ensino por e-mail, vê a rede de ensino apenas como espaço da agitação social que deve ser controlada e de processos de trabalho que precisam ser otimizados, mesmo que isso signifique fazer filas de crianças para a merenda. Diz uma professora municipal: “E se a regra com relação a tempo de exercício do magistério na educação básica pudesse ser critério para a escolha de secretário de educação? Um secretário sem experiência nenhuma de educação básica na rede pública, que não põe os pés nas escolas, que se comunica com as direções apenas por e-mail, e só faz reunião presencial para comunicar “novidades”, que não comparece nas reuniões da Comissão de Educação, é uma pessoa capacitada para exercer esta função? Poderia ser também critério de manutenção da equipe de assessoria pedagógica da SMED e do Secretário os índices do IDEB?”

Os professores criticam o comportamento do secretário porque acreditam que na sua visão afetos, experiências e sensibilidades não contam, e é esse desprezo pelas relações intangíveis da escola com seu meio que lhes importam. Como sugere a professora, cujo nome é aqui mantido em anonimato para evitar perseguições, qual foi a última vez que o secretário conversou com as crianças e os professores se não para lhe passar ordens? Quando foi que esteve numa sala de aula para acompanhar o olhar da descoberta do aluno e seu encantamento pela descoberta? Essa redução das relações pessoais, interativas, empáticas, subjetivas é o que está sendo aprofundado pelo governo, de forma irresponsável. Governos podem mudar a gestão das escolas? É claro que sim, desde que se respeite e dialogue com todos os atores envolvidos, se respeite os processos pedagógicos construídos coletivamente, pois não se trata de inventar uma nova legislação para eleger diretores, mas afetar a concepção de dirigentes escolares para ver cumprir pressupostos da gestão neoliberal. Se o projeto de lei envolve todas estas questões não dita, porque ainda assim o governo tem certeza de sua aprovação?

É que o projeto de lei não é um discurso legal mas um discurso de sedução. É de sedução porque desvia o olhar do público de onde devem estar o foco do processo de aprendizagem, coloca como elementos essenciais aquilo que sequer deveria ser considerado pelo processo pedagógico. O Prefeito sabe que não é necessário privatizar as escolas nesse momento para adequá-las ao discurso neoliberal: basta influenciar em seus conteúdos, em suas formas de gestão, os procedimentos e relações de poder dentro da escola e as concepções de ensino, que passam a funcionar com base nos dogmas do mercado. Por isso é necessário resistir a mais esta ofensiva contra a escola, ela não é inevitável como pretende o Prefeito ou seu secretário, e mais do que uma resistência surda, é preciso uma luta coletiva que tome em primeiro lugar o parlamento, onde será votada a lei, pois a consciência dos seus perigos está na mutação da vida escolar que promove.

(*) Historiador, Mestre e Doutor em Educação. Autor de O Tribunal de Contas e a Educação Municipal (Editora Fi, 2017) e “A impossibilidade do real: introdução ao pensamento de Jean Baudrillard (Editora Homo Plásticus,2018). É colaborador de Sul21, Le Monde Diplomatique Brasil, Jornal do Brasil, Folha de São Paulo e do Jornal O Estado de Direito. Mantém a página jorgebarcellos.pro.br.

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