Opinião
|
10 de outubro de 2019
|
15:52

Kit Gay e a ameaça da diversidade (João Gabriel Maracci)

Por
Sul 21
[email protected]
Kit Gay e a ameaça da diversidade (João Gabriel Maracci)
Kit Gay e a ameaça da diversidade (João Gabriel Maracci)
Bolsonaro apresentou o livro “Aparelho Sexual e Cia” como espécime do suposto “kit gay”. (Foto: Reprodução)

João Gabriel Maracci (*)

O presente cenário de forte oposição institucional às temáticas de gênero e sexualidade apresenta um largo caminho em nossa história, mas toma proporções específicas nos últimos anos. Como chegamos até aqui?

No Brasil de 2019, a diversidade sexual e de gênero parece ser assumida como temática de grande preocupação por governantes de todos os níveis da administração pública, sobretudo de modo reativo. São inúmeros os fatos políticos que podem ilustrar tal constatação, como a tentativa de Marcelo Crivella em retirar gibis que apresentavam um beijo entre dois homens da Feira do Livro do Rio de Janeiro, o recolhimento de materiais didáticos em escolas paulistanas por João Dória, ou mesmo a determinação de Jair Bolsonaro para que o MEC elabore um projeto de lei contrário à chamada “ideologia de gênero” no ensino fundamental.

Essas figuras públicas heterogêneas, que se situam até mesmo com rivalidades entre si, encontram-se em um campo político comum: a associação das temáticas de gênero e sexualidade a uma ideia de perigo e dano, principalmente quando referidas a crianças e adolescentes no âmbito escolar. Tal conexão, é claro, não aparece como uma novidade em nosso país, ainda marcado por altos níveis de desigualdade e violência contra a população LGBT. No entanto, sua elevação a um tema de interesse nacional, constantemente reiterada por muitos atores institucionais, indica algo de diferente em relação a conjunturas políticas anteriores.

Buscando compreender a atual inserção de tais assuntos na cena pública brasileira, realizei minha pesquisa de mestrado acerca de um estranho objeto, frequentemente citado na retórica de perigo sobre o gênero e a sexualidade: o famigerado Kit Gay. Após cerca de oito anos de polêmica, essa nomenclatura ocupou um lugar central na campanha de Jair Bolsonaro à Presidência da República, desencadeando uma série de respostas da mídia ou de opositores, que afirmavam falta de veracidade em suas afirmações. O então candidato costumava apresentar o livro “Aparelho Sexual e Cia” como espécime do suposto kit, esbarrando em contestações de que esse material não compunha o “verdadeiro Kit Gay”, referido à cartilha Escola sem Homofobia, vetada por Dilma Rousseff no ano de 2011.

Foi nesse desencontro argumentativo que desenvolvi minha investigação, tratando-se de um mapeamento de controvérsias no âmbito virtual sobre a polêmica do Kit Gay. A fim de compreender o objeto em sua história, selecionei materiais de ordens diversas – como notícias, colunas, vídeos e tweets – publicados entre 2010 e 2018, que forneceram informações sobre as continuidades e rupturas da querela ao longo do tempo.

De fato, foi possível perceber que, assim como afirmavam os opositores de Bolsonaro no período eleitoral, o significante Kit Gay foi apresentado inicialmente como apelido pejorativo para o programa Escola sem Homofobia, desenvolvido por organizações não governamentais com auxílio técnico e financeiro do Ministério da Educação. Antes mesmo da apresentação do projeto, o então deputado federal Jair Bolsonaro já anunciava seu repúdio em pronunciamentos na câmara e em programas de televisão aberta, resultando, em 2011, na controvérsia pública que tomou espaço principalmente pelo compartilhamento viral dos vídeos que estavam previstos como atividade pedagógica nos cadernos anti-homofobia.

Frente a tamanha tensão, é de conhecimento popular o discurso de Dilma Rousseff no ato de cancelamento do programa: “Não será permitido a nenhum órgão do governo fazer propaganda de opções sexuais”. O veto abrupto à cartilha financiada por sua própria gestão foi associado em canais jornalísticos a uma tentativa de estabilizar a relação entre a Presidência e a Câmara dos Deputados, que ameaçava convocar o então ministro da Casa Civil, Antonio Palocci, para depor sobre sua evolução patrimonial.

De todo modo, após o cancelamento do Escola sem Homofobia, não poderíamos afirmar que haviam cessado as polêmicas sobre o Kit Gay. No segundo semestre de 2011, meses após o veto de Rousseff, Bolsonaro pronunciou-se novamente em nome da controvérsia, denunciando uma conferência com a temática LGBT, que seria realizada em Brasília. Em sua fala – que está disponível em vídeos na plataforma Youtube -, o parlamentar nomeia tal evento como “Kit Gay 2”, indicando a maleabilidade semântica que pode assumir tal nomenclatura. Pelo número 2, ampliam-se as possibilidades de significação do termo, indicando não mais um material específico, mas sim um tipo de situação, compreendida como ameaça por anunciar o gênero e a sexualidade de modo plural.

Nos anos seguintes, a pesquisa apontou um movimento de aproximação e afastamento entre os significantes Kit Gay e Escola sem Homofobia, performados ora como sinônimos, ora como elementos distintos. Por exemplo, na campanha à prefeitura de São Paulo em 2012, o candidato José Serra afirmava que seu rival, Fernando Haddad, faria “apologia ao bissexualismo”, dado que fora Ministro da Educação no período da polêmica. No entanto, o tucano foi surpreendido ao longo da corrida eleitoral por uma associação da cartilha “Preconceito e Discriminação no Contexto Escolar” – elaborada em sua gestão como governador de São Paulo – ao apelido Kit Gay, visto que apresentava semelhanças ao material vetado por Rousseff. Com esse desentendimento, podemos acompanhar a complexidade do Kit Gay enquanto elemento de mobilização política: ora referindo-se diretamente à cartilha pedagógica de 2011, ora ampliando-se para outros assuntos sem qualquer relação à polêmica inicial.

Este movimento paradoxal pareceu tomar uma dimensão ainda mais significativa em 2014, frente aos debates sobre o Plano Nacional de Educação (PNE), que foi votado naquele ano. Em função de um item que manifestava a importância de combater o preconceito em salas de aula, alguns deputados levaram a público sua oposição ao projeto, referindo que esse seria uma imposição da “ideologia de gênero” – termo sem respaldo acadêmico, que indica uma suposta investida internacional contrária a padrões tradicionais de família – em solo brasileiro. Como resultado da querela, o plano foi aprovado sem qualquer menção à diversidade sexual e de gênero. Durante a votação, destacou-se a fala do parlamentar Jair Bolsonaro, referindo que o PNE seria “o Kit Gay que Dilma Rousseff disse que tinha recolhido, mas que está saindo do armário”.

Com esse ato de fala, podemos apreender com maior complexidade a relação entre ambos significantes. Se Kit Gay se expande largamente, podendo abarcar elementos sem qualquer relação com o material abandonado por Rousseff, ele mantém ainda a cartilha Escola sem Homofobia como um ponto exterior de realidade, a que é remetido como forma de veridicção. Tal qual aponta Bolsonaro, o veto presidencial não estabilizou a polêmica; pelo contrário, manteve seu perigo “dentro de um armário”, pronto para retornar e inserir a ameaça no mundo assim que as portas forem abertas.

É com essa configuração que o Kit Gay emerge na cena pública de 2018: tendo como ponto de referência o material financiado pelo MEC oito anos antes, mas se ampliando significativamente para além dele, como um “eterno retorno possível” dos perigos do gênero e da sexualidade. É por isso que contestar a veracidade do livro “Aparelho Sexual e Cia” enquanto espécime do Kit Gay, dada sua ausência nos cadernos Escola sem Homofobia – como fizeram os veículos de oposição à campanha bolsonarista -, não altera em nada as redes densas nas quais tal objeto se consolida como uma verdade. Um fato político performado nos limites entre o verdadeiro e o falso.

E o que nos informa o Kit Gay sobre o cenário de ataques que as temáticas de gênero e sexualidade vêm sofrendo nos anos recentes? Se a polêmica tomou lugar central na última eleição, não se poderia considerar surpreendente a importância dada a tais assuntos no Brasil de 2019. É corriqueiro nas redes sociais o argumento de que essas ações e discursos seriam uma “cortina de fumaça” para questões verdadeiramente importantes – sejam elas quais forem. A partir de minha pesquisa de mestrado, tendo a pensar de modo diferente. O repúdio à diversidade parece inserir-se na retórica política como um importante ator na delimitação dos campos de antagonismo, nutrindo os lados de um embate sem o qual o apoio a determinados líderes políticos não seria sustentável.

Nesse campo de disputas, que muitos acadêmicos passam a nomear como “ofensiva antigênero”, temos no Brasil um enfrentamento entre políticos que, no poder, censuram livros, materiais didáticos ou se opõem publicamente à população LGBT e, de outro lado, aqueles que, quando assumiram a administração pública, renunciaram arbitrariamente o enfrentamento ao preconceito e à discriminação. Nos bastidores da querela, seguimos sendo um país profundamente injusto e violento para minorias sexuais.

(*) João Gabriel Maracci é psicólogo e mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

§§§

As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora