Opinião
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9 de outubro de 2019
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17:08

A pauta identitária e o fim do pacto da mediocridade (por Henri Figueiredo)

Por
Sul 21
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A pauta identitária e o fim do pacto da mediocridade (por Henri Figueiredo)
A pauta identitária e o fim do pacto da mediocridade (por Henri Figueiredo)
Foto: Guilherme Santos/Sul21

Henri Figueiredo (*)

“A pé e de coração leve eu sigo pela estrada aberta,
saudável, livre, o mundo à minha frente,
(…) Daqui em diante não peço mais boa sorte, boa sorte
agora sou eu.
Daqui em diante eu não lamento mais, eu não adio mais,
De nada careço;
acabei com as queixas portas adentro, bibliotecas,
críticas rixentas;
forte e contente vou eu pela estrada aberta.
(…) Ó estrada pública, eu respondo que não receio deixar-te,
embora goste de ti,
tu me expressas melhor do que me expresso eu mesmo,
há de ser para mim mais do que meu poema.
(…) Allons! Não devemos parar aqui,
por mais doces que sejam estas coisas arrumadas,
por mais conveniente que a habitação pareça,
não podemos permanecer aqui;
por mais abrigado que seja o porto e por mais calmas
as águas,
aqui nós não devemos ancorar;
por mais acolhedora que seja a hospitalidade
à nossa volta,
não nos é permitido desfrutá-la
senão por bem pouco tempo.
Ouvi-me! Serei honesto convosco:
não ofereço os macios prêmios de sempre,
mas ofereço ásperos prêmios novos.”
Trechos do “Canto da Estrada Aberta” de Walt Whitman (1819 – 1892)

Algumas reflexões sobre como parte da Esquerda lida (ou deveria lidar) com o projeto de poder dos evangélicos neopentecostais

Há um erro estratégico e de método político que persiste em vastas parcelas da Esquerda brasileira e mundial. Um erro que precisa ser denunciado e corrigido, dentro e fora das fileiras militantes, antes que nos engesse e nos leve à repetição de erros táticos e eleitorais. Ainda mais neste momento em que é necessária a formação de uma frente democrática contra o avanço do ultraliberalismo com laivos fascistas – ou, como tem sido chamado, do neofascismo à brasileira. O erro é recorrente e carrega a ultrapassada concepção de que os movimentos classistas de cunho econômico e social são necessariamente prevalentes aos movimentos identitários –como as lutas antirracismo, pela igualdade de gênero e da comunidade LGBT. Outro erro, mais recente, é a relativização do conceito da laicidade do Estado, ou seja, da clara separação entre doutrinas de igrejas da organização da Res publica. Certos elaboradores imaginam que tratar do Estado laico (e do que dele provém) representa, por si, impeditivo para nos (re)inserirmos nos debates políticos com as crescentes populações evangélicas neopentecostais.

Estrategicamente a luta socialista integrou e ajudou a organizar o Estado laico e as pautas libertárias, feminista e da igualdade racial. Chegando nessa quadra histórica, em que os movimentos identitários ganham volume e, muitas vezes, conduzem a maioria nas manifestações antissistêmicas, (o #EleNão foi o exemplo emblemático, na eleição de 2018), o método dos Politburos modernos já não pode ser de apenas “encaixá-los” na pauta econômica.

Uma experiência muito particular

Não costumo entrar no debate negacionista da importância das organizações religiosas na política – as considero legítimas na política. Eu, por exemplo, fui um menino proletário que, aos 14 anos já estava no chão de fábrica fazendo trabalho de adulto. Tive, durante os estudos para Crisma numa Igreja Católica progressista, a primeira oportunidade de debater e tomar consciência da realidade em que estava imerso. Foi nas Comunidades Eclesiais de Base (CEB) da Teologia da Libertação.

“Fé é chamado”, dizia o padre que se tornou mais um amigo do que conselheiro espiritual. Ele exortava o povo a ocupar os espaços da igreja – os únicos lugares na região que acolhiam sem custo, por exemplo, as festas da juventude proletária e das famílias da comunidade. Eram espaços de encontro, lazer e debate político. E também, é claro, de espiritualidade e da fé – para os que tinham “o chamado” interno. Se me tornei um militante de Esquerda, antissistêmico, foi devido à acolhida de um padre progressista que abriu espaços de encontro para a juventude proletária. Por isso, eu compreendo o centro do fenômeno das neopentecostais e do seu projeto de poder. Sejamos francos: a capilaridade do grande partido popular que é o PT deve muito à sua inserção nas CEBs e à Teologia da Libertação – hoje, aliás, justamente retirada pelo Papa Francisco da proscrição imposta durante décadas pelo Vaticano. Como se diz há tempos: “se o cachorro entra na igreja é porque ela está aberta”.

O voto da massa popular e trabalhadora no PT, dos primórdios, foi conquistado nesse campo e no campo do sindicalismo combativo e politizante. Se não fossem tais vertentes, o PT seria um partido de quadros intelectuais intramuros universitários – valorosos e centrais na concepção de uma nova Esquerda plural e democrática, mas com base restrita ou quase nula.

Libertários que somos, à Esquerda, defendemos a ampla liberdade de fé e de culto e, igualmente, defendemos a tolerância aos que não têm nenhuma crença religiosa confessional. Ponto. Parágrafo.

Debate sim. Mas não a miopia de tentar cabalar voto conservador

De onde vem, então, essa miopia (para não dizer covardia) dos que acreditam que se a Esquerda não se assumir “conservadora nos costumes” não conseguirá mais recuperar as classes B, C e D cooptadas pela onda crescente das igrejas evangélicas neopentecostais?

Ora, o próprio PT conviveu (e convive) desde sempre com as contradições de parcelas militantes que defendem claramente o aborto legal e seguro, por exemplo, como uma questão de saúde pública e direito das mulheres ao seu corpo, enquanto outras parcelas foram (e são) refratárias com base em sua fé religiosa.

As tensões internas decorrentes da própria concepção democrática e plural do PT levaram a militância petista a melhor a elaborar suas teses e melhor conduzir suas práticas na sociedade. Neste tema específico, tenho certeza que as feministas ajudaram a problematizar e a situar a questão do aborto para além do dogma religioso; e, por outro lado, os(as) religiosos(as) contribuíram com uma dimensão espiritual e mística que perpassa todas as sociedades do mundo para além do dogma materialista. Eis a beleza da dialética. E a riqueza e a força da pluralidade do PT – um partido sempre em busca de sínteses.

A pauta classista e econômica foi responsável pelas conquistas que os(as) trabalhadores(as) arrancaram a ferro, fogo e sangue do sistema capitalista ao longos dos dois últimos séculos. A pauta identitária é a pauta civilizatória que deve estar no centro do debate e da disputa política contra a barbárie no século XXI.

Há quem ache ingênuo que possa haver espaço para civilização livre e libertária diante da escravidão de um sistema que mói gente. Mas vale a pena, ou faz sentido, lutar por condição de trabalho, salário e aposentadoria enquanto temos de flexibilizar a luta diante da necropolítica do feminicídio, da homofobia, do racismo e do fundamentalismo religioso? Não bastam os fatos que apontam para o sequestro do aparato do Estado e das instituições por grupos que querem impor à sociedade uma visão de mundo obscura e excludente?

Identitarismo e Realpolitik em 2019

Escrevo em outubro de 2019. Alguns defendem que o identitarismo e o embate político com certos neopentecostais é falta de proposta política e que o importante é a “vida real”, a realpolitik dos interesses econômicos e financeiros imediatos da população. São, no mais das vezes, os mesmos que não deram (nem vão dar) um pio com a gigantesca fuga de capital do Brasil a partir de 6 de outubro. Em quatro dias, estrangeiros retiraram quase US$ 2 bi do país, “levando a parcial negativa deste ano para R$ 27 bilhões, quase 10% a mais do que os 24,8 bilhões que se evadiram no ano de 2008, com a crise mundial”, segundo informou o jornalista Fernando Brito, no blog Tijolaço.

A narrativa do establishment geopolítico é que o Brasil afunda na crise financeira devido à guinada ultraconservadora, de desregulação e crime ambiental, de censura às artes, à livre expressão e ao jornalismo independente, de ameaça aos direitos civis e liberdades fundamentais. Tornamo-nos párias no cenário internacional. Narrativas à parte, não estamos vendo o que ocorre debaixo dos nossos narizes com o avanço da agenda ultraconservadora, autocrática e distópica de um governo fascistoide?

Certeza de que, nessa hora grave, precisamos é nos mostrar palatáveis ao gosto dos fundamentalistas religiosos que têm projeto de poder e ficam melindrados com nossa pauta civilizatória? Ou devemos ir para o embate público com eles? Fico com a última opção. Mas, à diferença deles, eu não quero eliminar o outro, não quero metralhar o diferente, não prego com discurso de ódio. A nossa bandeira é da vida, livre, tolerante, democrática e laica.

Assim como a agressividade doentia de um psicopata como Olavo de Carvalho é contagiosa no debate público e tendemos, nós que não temos sangue de barata, a responder na mesma moeda, o discurso conservador, falso-moralista, hipócrita e canalha também contagia.

Como escreveu recentemente a jornalista Cynara Menezes: “A esquerda não pode só pensar em ganhar a eleição. Temos um papel didático com as gerações futuras. Precisamos contribuir para conscientização da população para o que significa ser progressista; antirracista; contra a homofobia; feminista; pró- descriminalização do aborto e pró-descriminalização da maconha. Não podemos abrir mão de debater com a sociedade estes temas. Colocar a população para evoluir, não retroceder junto com ela. Ou agora teremos também que nos curvar à escola sem partido?”.

Seria bom rompermos com o pacto da mediocridade da Realpolitik míope que nivela por baixo projetos de sociedade inconciliáveis em nome de um pragmatismo covarde e inerte. Devemos encarar o trabalho pela mudança na direção dos movimentos que são as vozes e as bandeiras civilizatórias deste século.

Democracia pressupõe choque de ideias e projetos de poder

Se as nossas alas cristãs na Esquerda, caudatárias da Teologia da Libertação, entenderam alguma vez o grande quadro da geopolítica e a condição humana, não podem admitir que a Teologia da Prosperidade ou do culto ao Deus Mamon prevaleça. Como conviver com quem prega a misoginia, a homofobia, a satanização do adversário e do diferente? Quanto de ingenuidade é preciso para acreditar que grupos fundamentalistas, algum dia, venham a compartilhar poder sem que o conquistemos pela luta? Como conciliar o necessário combate às práticas antidemocráticas e bárbaras com o respeito ao princípio da liberdade religiosa e de culto?

Nesse caldo, a tradição marxista é importante porque dá a liga entre teoria e práxis nos voluntarismos dispersos. Por isso, atacam o que chamam de “marxismo cultural” e, com isso, vão avançando sobre as universidades, sobre o jornalismo, sobre a livre expressão e sobre as liberdades num movimento anti-intelectual e anticientífico. Che Guevara, cuja execução pelos lacaios bolivianos da CIA completa 52 anos, disse que o conhecimento nos faz responsáveis. E, por isso, abri este breve ensaio com uma citação de Walt Whitman, um dos poetas favoritos de Che, que fala da estrada pública, da estrada aberta e do não conformar-se.

Nesta semana, em entrevista ao Roda Viva, o ministro do STF Gilmar Mendes, à guisa de justificar sua opinião jurídica que muda com o vento, parafraseou um pensador espanhol que fundou a Escola de Madri. Mendes, porém, sem honestidade intelectual, só soberba, não citou a fonte. O amigo jornalista Adriano Marcello Santos marcou em cima e indicou o autor – José Ortega y Gasset, no livro “Meditações do Quixote”: “Eu sou eu e minha circunstância, e se não salvo a ela, não me salvo a mim”. Salvemo-nos, portanto.

(*) Henri Figueiredo é jornalista, ativista digital e militante do Partido dos Trabalhadores.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.

 


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