Opinião
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17 de setembro de 2019
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17:24

Violência contra a terra (por Baltasar Garzón)

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Sul 21
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Violência contra a terra (por Baltasar Garzón)
Violência contra a terra (por Baltasar Garzón)
“O Brasil é o epicentro de um desastre de insuspeitas consequências que deveriam nos alarmar a todos”. (Arquivo/EBC)

Baltasar Garzón (*)

“Vocês têm Deus, nós temos Omama. Ela criou a vida, criou os yanomamis, permite tudo o que acontece. Nós nos comunicamos com ela permanentemente”. Quem no mundo secularizado falaria de coração desta forma? (Palavras de um indígena yanomami Miguel Xapuri Lanomâni, citado por Leonardo Boff)

Como sempre, regresso da América com o coração alimentado da generosidade de sua gente, mas com o ânimo entristecido ao comprovar como a violência agride cada dia o espírito livre dos povos que não merecem padecer uma realidade de tal calibre. As mulheres, as crianças, os indígenas, os mais vulneráveis, seguem sendo as vítimas eternas de uma situação que clama à consciência e que parece se eternizar em uma série de assassinatos, desaparições forçadas e demasiada impunidade. Comprovei isso in loco, desde minha posição privilegiada de visitante que logo volta a seus assuntos, a muitos quilômetros do medo. Mas, desta vez, pude sentir a inquietude por uma nova violência que se assenta na América Latina, e que tem sua máxima expressão na Amazônia, contra a qual está se perpetrando sem sigilo e à luz do dia um autêntico crime, um Ecocídio.

Estamos falando de quase sete milhões de quilômetros de um território que equilibra a atmosfera do planeta e nutre o sistema hidrológico andino, no qual suas populações originárias estão sofrendo uma extinção silenciosa. Os incêndios já afetaram quase 150 zonas habitadas por indígenas. O fogo é um meio utilizado para deflorestar e alimentar o lucrativo negócio de empresas que atual com total impunidade. O Brasil é o epicentro de um desastre de insuspeitas consequências que deveriam nos alarmar a todos e ser objeto de atenção da Europa e do mundo inteiro. Não sei se destruição da Amazônia pode agitar as consciências e reverter esta situação, mas sou consciente de que, no momento, enquanto se espera essa convulsão urgente e imprescindível, estão matando a Mãe Terra. A devastação se expande por outros lugares, como na Bolívia, onde em apenas uma quinzena, 400 mil hectares foram destruídos pelo fogo provocado de forma intencional.

Vivemos tempos duros para o ser humano, onde os maus tratos, as torturas, as execuções, as desaparições forçadas e os crimes de gênero estão na ordem do dia e o fato de ter nascido “índio” é motivo de rechaço. Diante desse quadro, é difícil pensar que os líderes políticos e empresariais vão respeitar a natureza, mesmo que isso nos custe a vida, a nossa e a das demais espécies do planeta. É uma atitude completamente suicida, homicida e ecocida.

O mau exemplo de Bolsonaro

Desde minha experiência acumulada sei que as coisas não acontecem por acaso. Há aqui um pano de fundo muito grave de cumplicidades. Sempre subjaz um componente econômico e político em toda catástrofe provocada pelo homem. Os grandes interesses econômicos requerem a colaboração imprescindível dos políticos que fazem sua a missão de pressionar os recursos naturais e destruí-los, geralmente a partir das mãos de um ditador ou de um ultradireitista surgido das urnas. Os golpes de Estado já não são necessários, pois os políticos de turno cedem frente ao dinheiro das multinacionais e de suas potentes campanhas de marketing, inclusive quando pretendem o massacre da terra.

O Brasil se converteu em um exemplo paradigmático. Jair Bolsonaro torna-se, de fato, a voz executiva de interesses ligados à exploração abusiva de madeira, à pecuária, à agricultura, às hidroelétricas e mineradoras que se esforçaram para garantir a sua chegada ao poder. A partir da Presidência do país, o mandatário avaliza e fomenta a exploração ilimitada da Amazônia, permitindo-se lançar pérolas tão sofisticadas como: “vamos despedaçar a reserva indígena de Raposa Serra do Sul. Vamos dar armas a todos os fazendeiros”. Isso para não falar de sua decisão de remover os membros da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (Cemdp) durante a ditadura militar (1964-1985), com a explicação de que seu governo “é de direitas” ou de sua animosidade doentia contra os organismos de direitos humanos e ONGs defensoras do meio ambiente. Isso dá uma pista de quem encabeça a possível lista de responsáveis pelo que acontece no Brasil onde somente este ano vinte defensores do meio ambiente já foram assassinados.

Federico Finchelstein disse em uma recente entrevista sobre Bolsonaro: “é um dos populistas mais próximos ao fascismo que já vi”. E acrescentou: “combina o neoliberalismo com inclinações fascistas”. Potente afirmação de um historiador especialista em populismo e fascismo. As trágicas consequências das políticas do atual presidente do Brasil são uma demonstração do perigo que envolve um governo de extrema-direita.

Corrupção

Mas isso não ocorre só na América Latina. Também a necessidade de expandir a agricultura e a extração abusiva de recursos naturais é a tocha acesa em outra das zonas de floresta tropical mais importante da Terra, o Congo, coração de uma África esquecida, explorada e massacrada por mil conflitos pós-coloniais nunca resolvidos e interesses corporativos e políticos que alimentam diariamente uma espécie de desastre sustentável. Do mesmo modo, a Sibéria arde com o perigo adicionado por sua proximidade com o Ártico, facilitando seu derretimento e o despejo de CO2 nos oceanos, tornando as águas mais ácidas e, como consequência fatal, levando à extinção de espécies como os corais, habitat de 25% da vida marinha, como assinala Rosa Castizo em um interessante artigo.

Promovida pela ONU, em dezembro ocorrerá em Santiago do Chile a maior cúpula mundial sobre a crise climática, a COP 25, na qual 30 mil pessoas representando 200 países debaterão sobre a situação de nossos mares, energias renováveis, ecossistemas e biodiversidade. Os acordos que podem ser alcançados poderiam significar um respiro para a Terra, afogada pela má gestão de nossos dirigentes. Mas de pouco servirá esse acordo se logo ceder a interesses espúrios, condicionados pelas contas de resultados das empresas e as exigências dos acionistas que as comandam. Como disse há alguns dias o Papa Francisco, há uma palavra para toda esta catástrofe ambiental: corrupção.

A resposta cidadã

Devemos ir mais além, garantindo uma sólida formação a crianças e jovens, que já demonstram ter maior clareza de ideias sobre esse tema que os adultos. Nós devemos ser reeducados para cuidar melhor do nosso planeta e dar valor ao legado que transmitiremos às seguintes gerações. Esta educação deverá se refletir em uma maior ação política e cidadã inspirada nos valores democráticos que fazem da política uma vocação de serviço em favor do bem comum e do bem maior e não do exercício bruto do poder em favor das elites e seus proveitos econômicos. A participação cidadã é uma força capaz de frear os apetites vorazes dos poderosos. Mas também é preciso dar passos definitivos no âmbito legislativo, local e internacional, e no da Justiça, acima de interesses econômicos ou políticos conjunturais que acabam nos anulando por seu caráter fictício.

Devemos desenhar esses novos espaços, por exemplo, por meio da jurisdição universal, ampliando sua esfera de proteção à natureza. Como diz o teólogo Leonardo Boff: “O tempo das nações está passando; agora é o tempo da Terra e temos que nos organizar para garantir os meios que sustentarão nossa vida e a da natureza”.

Trata-se de prioridades reais e não entender isso significa perder tempo escasso em discussões estéreis e diálogos de surdos que nos convertem, quando menos, em cúmplices dos desastres que se avizinham. É a ação responsável e coordenada de todos e a conscientização ante a emergência na qual nos achamos, que devem nos ativar deixando de lado, de uma vez por todas, a indolência e a paralisia que nos envolvem.

E isso me conduz a uma última reflexão: necessitamos analisar quem são os que nos governam, para quem trabalham e para onde nos conduzem. É preciso ter isso presente a cada dia, contestar com firmeza quando detectarmos o desvio, pensar muito que voto depositamos nas urnas e pressionar nossos dirigentes para que defendam o meio ambiente se quisermos seguir desfrutando do presente e garantir um futuro sustentável no planeta Terra. É nossa resposta cidadã mais imediata à violência contra a natureza.

(*) Jurista. Presidente da Fundação Internacional Baltasar Garzón (FIBGAR), integrante do Conselho Programático do Instituto Novos Paradigmas (INP). Artigo publicado originalmente no jornal El Diario (15/09/2019).

Tradução: Marco Weissheimer

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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