Opinião
|
16 de setembro de 2019
|
14:36

Vacinas x epidemias. Dos esforços do passado à ameaça do presente (por Jaqueline Brizola)

Por
Sul 21
[email protected]
Vacinas x epidemias. Dos esforços do passado à ameaça do presente (por Jaqueline Brizola)
Vacinas x epidemias. Dos esforços do passado à ameaça do presente (por Jaqueline Brizola)
(Foto: Marcello Casal Jr/Arquivo Agência Brasil)

Jaqueline Brizola (*)

Ao longo da história da humanidade, eventos epidêmicos ceifaram mais vidas que a pólvora, arrasaram populações inteiras, causando terror e medo entre as pessoas. É bem conhecido o significado devastador das epidemias de varíola, cólera, gripe, febre amarela, meningite, entre outras, que assolaram o Brasil e outras partes do mundo até meados do século XX. Essa realidade, lembrada nos livros de História, pode não estar tão distante no tempo quanto parece, frente a ameaça de ideias contrárias às vacinas, e ao corte de verbas para as campanhas de imunização do SUS proposto pelo atual governo do Brasil para 2020, segundo denúncia feita no início de setembro pelo ex ministro da saúde Alexandre Padilha, na Câmara dos Deputados

Talvez nem todos saibam, mas ser contra a imunização através da vacina era uma postura comum entre os brasileiros que viveram no passado. Os conflitos entre governo e populares eram constantes em razão disso. Os mais atentos irão lembrar da Revolta da Vacina, que ocorreu em 1904, na cidade do Rio de Janeiro, quando o então diretor de Saúde Pública, Oswaldo Cruz, convenceu o presidente Rodrigues Alves a tornar a vacina contra a varíola obrigatória. Milhares de pessoas se ergueram contra a imunização, acreditando, alguns, que o governo inocularia a varíola em seus corpos, como estratégia para exterminá-los, outros, não aceitavam expor seus braços aos comissários vacinadores, questão de resistência entre as mulheres, principalmente. Todos, entretanto, compartilhavam do mesmo dilema que, ao final, expunha toda a população ao risco de morte; a ignorância dos potenciais benefícios da medida.

Em uma rápida mirada em nossa história, não seria exagero afirmarmos que o serviço de vacinação coordenado por agentes do governo, no Brasil, está entre os mais antigos do mundo. Foi o próprio D. João VI, príncipe regente, que instituiu os primeiros esforços de imunização contra a varíola já em 1811, quando ainda éramos colônia de Portugal, apenas 15 anos depois de a primeira vacina ter sido inventada pelo médico britânico Edward Jenner. D. João havia perdido um irmão pela doença, o príncipe D. José “um mancebo jovem de apenas 27 anos”, como consta nas fontes históricas. Seria ele, aliás, o herdeiro do trono dos Bragança, caso não tivesse morrido prematuramente em uma época em que não existia vacina.

Mesmo com apelos pela ampla difusão da profilaxia, por parte da família real portuguesa, mas também pelos Presidentes das Províncias e médicos destacados no Brasil, a varíola continuou causando estragos, e a baixa adesão da população à vacinação gerou epidemias da doença em cidades como Porto Alegre, em 1874, quando 1% da população faleceu em função do contágio. Na ocasião, morreram ricos e pobres, senhores e escravos e muitas crianças. Sem recursos disponíveis para conter a epidemia, os vereadores, à época, mandaram construir um lazareto, às pressas, em uma chácara nos Moinhos de Vento, distante da cidade, para que homens, mulheres e crianças infectados não ameaçassem a existência dos demais. Como nem todos eram obrigados ao isolamento, a medida surtiu pouco efeito, e a população padeceu em massa.

Do século XIX ao século XXI, vacinas contra outras doenças foram disponibilizadas à população, graças aos esforços de pesquisadores, que, seguindo a lógica de Jenner, contribuíram para salvar milhares de vidas. Campanhas de vacinação eram medidas corriqueiras dos governos no Brasil republicano, tanto que nos tornamos referência em imunização contra doenças como a poliomielite ou a febre amarela, ambas endêmicas por séculos entre a população de norte a sul do país. As vacinas, como o antibiótico foram uma revolução em nosso modo de vida, e embora muitos expertos discutam os perigos do uso indiscriminado desses benefícios na contemporaneidade, poucos médicos, higienistas e profissionais da área de saúde discordariam da importância da imunização contra doenças que podem ser facilmente evitadas através da vacinação.

A novidade que, seguramente, não tem precedentes na história do Brasil, é o próprio governo atacar a política de vacinação, propondo o corte de verbas no estrondoso valor de 1 bilhão de reais para a Campanha Nacional do SUS, referente a medida, em 2020. Isso significa expor a população a riscos incalculáveis. As muitas epidemias que ocorreram no passado, frequentemente investigadas e bem conhecidas por acadêmicos da área de ciências humanas e ciências da saúde em todo o mundo, nos ensinaram que os germes invisíveis, estes que existem na natureza e que causam adoecimento e morte, não escolheram classe social, cor, posição política. Bastava não estar imunizado.

Para ter certeza disto, qualquer pessoa interessada pode acessar os arquivos hospitalares ou os registros de óbitos do Brasil do século XIX e princípios do século XX. Nestes documentos, encontramos dados sobre as pessoas, seus nomes, idades, a causa mortis, sua condição jurídica, seu local de enterramento e sua profissão, em alguns casos. Encontramos, enfim, pessoas que enfrentaram os conflitos de seu tempo, e que poderiam ter sobrevivido, no caso do adoecimento por varíola, se conferissem legitimidade à vacina. Não há evidencias da segurança de não vacinar, todas as informações que chegam até nós sobre o comportamento de pessoas que rechaçaram a vacinação no passado, apontam para o contrário.

O fato de o atual governo ignorar a História, essa em especial, embora já não cause espanto, agora, mais do que nunca, nos causa preocupação e medo. Com o corte de recursos para campanhas de vacinação e, principalmente, com a falta de vacinas nos postos de saúde, que será o resultado óbvio desta medida, abriremos uma porta perigosa para o regresso de eventos epidêmicos devastadores. Nesses tempos estranhos, em que questões como essa nos assombram de perto, nunca é demais lembrarmos a célebre frase atribuída ao pensador irlandês Edmund Burke: um povo que não conhece sua história, está condenado a repeti-la.

(*) Jaqueline Brizola é mestra em História pela UFRGS, doutoranda em História da Ciência e da Comunicação Científica pela Universidade de València, Espanha, e UFRGS, Brasil. Autora da dissertação premiada pela Sociedade Brasileira de História da Ciência em 2016 intitulada; A Terrível Moléstia. Vacina, epidemia, instituições e sujeitos. A história da varíola em Porto Alegre no século XIX.

§§§

As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora